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  • Jadson Targino Junior

S. Gregório Magno, o Papa que Calvino amava

Por diversas vezes, encontrei referências que diziam que o dito reformador J. Calvino tinha uma grande admiração por Gregório Magno (540-604), considerando-o "o último dos bons papas". Procurei em diversos lugares a referência primária onde Calvino teria afirmado tal coisa, mas não consegui localizar de nenhuma maneira. Até nas Institutas, onde o genebrino o cita nominalmente, não logrei êxito em achar esse trecho. Ainda assim, até fontes reformadas (ou seja, aparentemente não tendenciosas) colocam essas palavras na boca do mesmo:


"João Calvino chamou Gregório de 'o último bom papa', e ele é a segunda fonte patrística mais citada nas Institutas de Calvino."[1]


Há um artigo intitulado "Calvin's Appreciation of Gregory the Great", de Lester K. Little, publicado pela Harvard Theological Review em 2011, que supostamente traz a referência, mas não consegui acessá-lo, nem mesmo o trecho específico. De qualquer modo, seria no mínimo irônico que Calvino o considerasse "o último dos bons papas", sendo que ele é considerado um dos teólogos da igreja primitiva que mais canonizou e oficializou, com seu poder episcopal, justamente aquelas doutrinas que o dito reformador mais abominava, como o Sacrifício da Missa propiciatório e o Purgatório com pagamento de penas temporais.


Não é novidade que Calvino considerava o Purgatório uma terrível heresia que atentava contra a suficiência do Sacrifício de Cristo, e o Sacrifício da Missa, por sua vez, como "a culminância da horrenda abominação.. erro pestilentíssimo", algo que "sufoca e soterra a cruz e a paixão de Cristo" (Cf. Institutas, Livro IV, 18, 1-3). O então luterano (e posteriormente ortodoxo) Dr. Jaroslav Pelikan, por exemplo, comenta sobre as crenças de S. Gregório, em contrapartida:


"Alguns dos elementos na herança patrística foram reprocessados no pensamento de Gregório. Dois foram a doutrina do purgatório e a doutrina do sacrifício da missa. [...] Não se pode dizer que alguma dessas doutrinas são unicamente ocidentais, pois há equivalentes de ambas nos teólogos gregos; mas na teologia latina, «conforme sistematizada por Gregório, recebeu uma forma definitiva.» [...] Agostinho, embora se opusesse às especulações de Orígenes sobre a salvação universal de todos os homens e do demônio (Ag. Civ. 21.23 [CCSL 48:787-89]), não obstante, acreditava que havia “punições temporárias depois da morte” (Ag. Civ. 21.13 [CCSL 48:779]) e que era apropriado orar para que fosse garantida remissão dos pecados para alguns dos mortos (Ag. Civ. 21.24 [CCSL 48:789]). Essas sugestões sobre o fogo do purgatório, feitas de forma hesitante e passageira, acabaram «por se tornar “algo que tem de ser crido [credetidus]” em Gregório» (Gr. M. Dial. 4.39 [PL 77:396]). Mais uma vez, “tinha de ser crido [credendum est] que as orações dos fiéis ajudavam na obtenção da libertação do fogo do purgatório daqueles que tinham pecado” não por malícia, mas por ignorância” (Gr. M. Dial. 4.40 [PL 77:397]). [...] O sacrifício da missa [para Gregório] era um tipo especial de intercessão. “Se os atos culpados não estão além da absolvição mesmo após a morte, a oferta sagrada da Vítima salvadora ajuda de forma consistente as almas mesmo após a morte, de modo que as próprias almas dos que se foram parecem às vezes desejar isso” (Gr. M. Dial. 4.55 [PL 77:416-17]). A liturgia e a teologia da igreja, nas quais ela cria e as quais ensinava havia muito tempo, era de que a Eucaristia era o sacrifício do corpo e do sangue de Cristo. Mas Gregório, no curso da dissertação sobre o purgatório que acabamos de mencionar, afirmou a interpretação sacrificial da eucaristia com nova certeza e detalhe: “Temos de imolar a Deus [...] os sacrifícios diários de nossas lágrimas, as ofertas diárias da carne e do sangue dele [de Cristo]. [...] Pois quem entre os fiéis tem alguma dúvida de que na hora exata da imolação, em resposta à voz do sacerdote, os céus são abertos e o coro de anjos estão presentes nesse mistério de Jesus Cristo?” (Gr. M. Dial. 4.58 [PL 77:425-28])... A doutrina do sacrifício da missa, graças pelo menos em parte a Gregório, passou a ser um ensino instituído."[2]

Como não bastasse, embora rejeitasse o título de "bispo universal" (que aliás, nenhum papa deu a si mesmo, tampouco a Igreja oficialmente o deu), São Gregório teria lançado as bases para o amadurecimento definitivo da doutrina da supremacia papal, como a conhecemos hoje, que era igualmente abominada pelo genebrino. Conforme Pelikan, embora não considerasse lícito que alguém se intitulasse por si e soberbamente "bispo universal", Gregório reconheceu que os pais calcedonianos ofereceram um título universal aos bispos romanos, e, em sua doutrina (ou seja, na gregoriana), todas as igrejas particulares, até mesmo as orientais, foram "tornadas sujeitas à Roma":


"Gregório, citando os eventos de 451, declarou que “os prelados dessa sé apostólica, em que servi pela providência de Deus, tiveram a honra de oferecer a eles ser denominados ‘universais’ pelo venerável Concílio da Calcedônia” (Gr. M. Ep. 5.44 [MGH 1:341]). Esse título “universal [oikoymeniko] não podia, portanto, ser reivindicado por Constantinopla, embora ela fosse a nova Roma. A igreja de Roma era a mãe de outras igrejas no Ocidente latino, que estavam sujeitas a ela (Gr. M. Ep. 9.26 [MGH2:59]). As igrejas do Oriente grego também deviam obediência especial a Roma. Até o ponto em que envolvia a igreja de Constantinopla “quem duvidaria que ela foi tornada sujeita à sé apostólica” (Gr. M. Ep. 9.26 [MGH2:60]), ou seja, é claro, a Roma? [...] Roma desfrutava de uma posição especial. O bispo de Roma tinha o direito por sua própria autoridade de anular os atos de um sínodo (Gr. M. Ep. 5.44 [MGH 1:338-43]). Na verdade, quando houve conversas sobre um concílio para acertar as controvérsias, Gregório afirmou o princípio de que “sem a autoridade e o consenso da sé apostólica nenhum dos assuntos geridos [por um concílio] têm alguma força de coerção” (Gr. M. Ep. 9.156 [MGH 2:158]). Embora Gregório estivesse disposto a traçar um paralelo entre os quatro evangelhos e os quatro concílios ecumênicos, ele já tinha começado a formular uma doutrina da autoridade dogmática de Roma, fundamentada na primazia de Pedro e corroborada pelo registro e reputação da ortodoxia doutrinal."[3]

Em adicional, conforme o renomado patrólogo presbiteriano Philip Schaff, S. Gregório Magno equiparou a autoridade das decisões do magistério da Igreja à autoridade do Evangelho, algo igualmente impensável, para Calvino:


"E o Papa Gregório Magno ainda coloca os quatro primeiros Concílios, que refutaram e destruíram, respectivamente, as heresias e impiedades de Ário, Macedônio, Nestório e Eutiques, no mesmo nível que os quatro evangelhos canônicos."[4][5]

É difícil para mim acreditar que um Pai da Igreja e Bispo de Roma como S. Gregório possa ter instituído tantas heresias e impiedades doutrinárias conforme Calvino e ainda ser visto pelo mesmo como "o último dos bons papas".


Referências:


[1] NESTE, Ray Van. What Pope Gregory Can Teach Us About Pastoral Ministry. TGC. Disponível em: https://www.thegospelcoalition.org/article/pope-gregory-pastoral-ministry/. Acesso em 04 de Julho de 2023.


[2] PELIKAN, Jaroslav. A Tradição Cristã - Vol. 1: O surgimento da tradição católica 100-600. São Paulo: Shedd Publicações. 2014, p. 356-357.


[3] Idem, p. 355.


[4] SCHAFF, Philip. History of the Christian Church - Vol. III, p. 290. Disponível em: https://www.ccel.org/ccel/s/schaff/hcc3/cache/hcc3.pdf. Acesso em 04 de Julho de 2023. [Tradução minha]


[5] "Recebemos os quatro sínodos da santa igreja universal da mesma maneira que recebemos os quatro livros dos santos evangelhos." (São Gregório Magno. Epistola III, 10).

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