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  • Lucas Sousa

O Cristianismo é a Religião da Imagem por Excelência.

"Ele é a Imagem do Deus Invisível (εἰκὼν τοῦ θεοῦ τοῦ ἀοράτου [Eikon tou Theou tou Aoratou]), o Primogênito, anterior a qualquer criatura." (Cl 1,15)



Na introdução do seu aclamado "The Book of J", Harold Bloom lembra-nos até que ponto uma posição Cristã particular persiste na própria terminologia que usamos para as Escrituras Judaicas. Bloom escreve:


"Os Cristãos chamam a Bíblia Hebraica de Antigo Testamento, ou Aliança, a fim de substituí-la pelo Novo Testamento (...) Eu mesmo sugiro que os críticos e leitores judeus possam falar de suas Escrituras como o Testamento Original, e da obra Cristã como o Testamento tardio, pois isso, afinal, é o que é, uma obra revisionista que tenta substituir um livro, a Torá, por um Homem, Jesus de Nazaré, proclamado Messias da Casa de David pelos Crentes Cristãos."¹

A noção de que a Aliança de Deus com Israel foi substituída por uma Aliança Nova e mais Perfeita é, naturalmente, introduzida no próprio Novo Testamento. Lá, a Vida de Cristo não apenas completa os eventos e Profecias descritos na Bíblia Hebraica – o que deve ser feito para que Jesus seja reconhecido como o Messias – mas também substitui os pactos de Deus com o Povo Escolhido. A Epístola aos Hebreus apresenta o caso claramente.


"O culto que estes celebram é, aliás, apenas a imagem, sombra (σκιᾷ [skia]) das realidades Celestiais, como foi revelado a Moisés quando estava para construir o Tabernáculo: 'Olha, foi-lhe dito, faze todas as coisas conforme o modelo que te foi mostrado no Monte' (Ex 25,40). Ao nosso Sumo Sacerdote, entretanto, compete ministério tanto mais excelente quanto ele é mediador de uma aliança mais perfeita, selada por melhores promessas. Porque, se a primeira tivesse sido sem defeito, certamente não haveria lugar para outra." (Hb 8,5-7)
"A Lei, por ser apenas a sombra (Σκιὰν [Skian]) dos bens futuros, não sua expressão real, é de todo impotente para aperfeiçoar aqueles que assistem aos sacrifícios que se renovam indefinidamente cada ano." (Hb 10,1)

Consequentemente, não apenas as visões explícitas de eventos futuros que os judeus também consideravam serem profecias messiânicas, mas qualquer passagem do Antigo Testamento tornou-se uma prefiguração se lida atentamente com o conhecimento da vida de Cristo. Para os Cristãos, cada pessoa, evento e objeto nas Escrituras Hebraicas era uma predição enigmática de Jesus e, portanto, todo o Antigo Testamento era um vasto campo a ser pesquisado em busca de evidências do plano de Deus conforme eles o entendiam. Orígenes, oferece um bom exemplo. Impressionado com a identidade dos nomes Josué e Jesus (ambos Iesous [Ἰησοῦς] em grego e Yehoshua [יהושע] em Hebraico), ele escreveu um tratado de 200 páginas no qual demonstrou sua crença de que o Livro Hebraico de Josué havia sido escrito "muito menos para nos informar dos feitos de Josué, filho de Nun, do que descrever os Mistérios de Jesus, Nosso Salvador."


O versículo 21 do Salmo 68 (69) sugere como procedeu a leitura Cristã. O lamento abrasador do Rei David: "Puseram fel no meu alimento, na minha sede deram-me vinagre para beber", torna-se nada mais do que uma referência ao vinho azedo misturado com fel oferecido a Cristo na Cruz. Como o Evangelista João já reconheceu, "Em seguida, sabendo Jesus que tudo estava consumado, para se cumprir plenamente a Escritura, disse: 'Tenho sede'. Havia ali um vaso cheio de vinagre. Os soldados encheram de vinagre uma esponja e, fixando-a numa vara de hissopo, chegaram-lhe à boca. Havendo Jesus tomado do vinagre, disse: 'Tudo está consumado'." (Jo 19,29) Muitas das leituras alegóricas da Bíblia Hebraica nos parecem ridiculamente indisciplinadas. Durante a Idade Média, porém, a própria dificuldade de encontrar um significado Cristão no Antigo Testamento apenas contribuiu para o sentido do Mistério do Plano de Deus. Discernir a verdadeira mensagem nas palavras das escrituras foi um ato espiritual; animar o Texto Sagrado era uma forma de se aproximar de Deus.


A Sarça Ardente descrita no Livro do Êxodo (3,2), por exemplo, onde Moisés foi instruído a libertar o seu povo da escravidão no Egito, passou a ser entendida como um sinal do nascimento milagroso de Cristo. Como? A sarça não consumida pelas chamas foi tomada como sinal da virgindade de Maria, inalterada pela concepção Divina.


"Parece-me que, já, o grande Moisés conhecia este mistério por meio da luz em que Deus lhe apareceu, quando viu a sarça arder sem se consumir (cf Ex 3,1). Pois Moisés disse: 'Vou me aproximar para contemplar esse extraordinário espetáculo.' (Ex 3,3) Acredito que o termo 'aproximar-se' não indica movimento no Espaço, mas uma aproximação no Tempo. O que foi então prefigurado na chama da Sarça manifestou-se abertamente no mistério da Virgem, passado um espaço de tempo intermediário. Como no Monte a Sarça ardia, mas não se consumia, assim a Virgem deu à luz e não se corrompeu. Nem você deve considerar a comparação com a Sarça embaraçosa, pois prefigura o corpo portador de Deus da Virgem."
- São Gregório de Nissa, "In Diem Natalem Christi" (PG 46,1136).

Lido literalmente, Êxodo fala apenas da missão de Moisés de libertar os israelitas, de pouco interesse para os gentios. Lida como Profecia – com a Vida de Cristo em mente – a antiga Escritura Judaica revela um Mistério Cristão com apelo universal. O Novo Testamento abraça a Imagem como um meio de fornecer leituras espirituais do Antigo Testamento e, portanto, de tornar acessível a exegese bíblica.


Foi a capacidade de abranger mais de um relato textual numa narrativa coerente e plausível que deu às Imagens o seu apelo especial no processo de Interpretação Cristã. A Imagem podia apresentar a história judaica intacta e, ao mesmo tempo, revelar o seu significado oculto, não apenas em associação com textos ou através de interpolações simbólicas – mas em abordagens totalmente unificadas que pareciam reais e verdadeiras.


Somente por meio de Imagens a compreensão Cristã poderia ser assimilada plena e naturalmente aos diversos Textos Sagrados. São Cirilo de Alexandria, tentando explicar como as Escrituras Judaicas são "muito menos que a verdade e uma indicação incompleta das coisas significadas", voltou-se diretamente para a Arte.


"Deveríamos permitir que os exemplos fossem considerados de acordo com a explicação que lhes convém. Pois os exemplos são muito menos que a verdade e são indicações incompletas das coisas significadas. Mas dizemos que a Lei era uma Sombra (σκιὰ [skia] - Hb 10,1) e um Tipo, e semelhante a um quadro colocado como algo a ser visto diante daqueles que observam a realidade. Mas as silhuetas (σκιαὶ [skiai]) da habilidade dos artistas são os primeiros elementos das linhas nos quadros e, se a estes se acrescenta o brilho das cores, a beleza do quadro brilha. Convinha, portanto, que a Lei dada por meio de Moisés, visto que pretendia delinear o Mistério de Cristo, não O apresentasse por meio de um dos bodes ou de uma das aves, morrendo e vivendo ao mesmo tempo, para que o feito não pode parecer de alguma forma um espetáculo milagroso, mas em um deles O considera como sofrendo sua imolação, e no outro O apresenta como vivo e libertado."
- Epistola XLI (PG 77,217).

Cirilo sub-repticiamente substituiu "sombra" (skia) aqui (skiagraphia em grego) no texto de Hebreus. O resultado é que as Escrituras Judaicas são comparadas a um esboço preliminar de um artista, bloqueando o essencial; a Aliança de Cristo torna-se a pintura precisa e brilhante colocada no topo. E assim como uma pintura não obscurece totalmente os seus delineamentos preparatórios, o Cristianismo não destrói as Escrituras Hebraicas; antes, o Cristianismo aperfeiçoa as formas gerais da Lei Judaica, esclarecendo o significado na Economia Teológica ampliada. Em contraste com os judeus, que lêem a Bíblia como um documento escrito fechado e rígido, os Cristãos a entendem como Arte. Para citar novamente Cirilo, "A Lei era uma Imagem (Γραφὴ [Grafi]) e, na Lei os Tipos das coisas eram férteis com a Verdade".²


O uso do processo artístico por Cirilo para explicar como os Cristãos se apropriaram das Escrituras Hebraicas para seus próprios propósitos passou a ser utilizado a partir do século VIII como um argumento real em apoio à Iconografia Cristã. A sua interpretação metafórica foi considerada especialmente vigorosa durante este período contra um grupo crescente de críticos que atacavam cada vez mais as Imagens e, por volta de 730, instituíram a verdadeira iconoclastia nas terras bizantinas, ou seja, a destruição sistemática de toda a arte religiosa. O argumento de Cirilo ofereceu munição contra uma das acusações dos iconoclastas, a saber, que as Imagens não são autorizadas em parte alguma das Escrituras; Afinal, sua comparação do Novo Testamento com uma pintura completa foi baseada na Epístola aos Hebreus. O Comentário de Cirilo foi lido no Segundo Concílio de Nicéia reunido em 787³, a primeira vez que um Corpo da Igreja se reuniu com o propósito expresso de definir formalmente o lugar dos Ícones no Culto da Igreja. Ainda antes, São João Damasceno reduziu-o a um aforismo no seu importante tratado Sobre as Imagens Divinas. "Assim como a Lei é um esboço preliminar da imagem colorida, a Graça e a Verdade são a imagem colorida" (parafraseando São João Crisóstomo [PG 94,1368]). E nesta versão, uma segunda escritura adicionada à mistura aumentou a autoridade da metáfora, João 1,17: "Pois a Lei foi dada por (meio de) Moisés, a Graça e a Verdade vieram por Jesus Cristo." O tropo foi reciclado em numerosos escritos posteriores sobre Imagens, fundindo completamente o Antigo Testamento com um esboço preparatório e os Evangelhos com a Imagem completa.


Na vida do Patriarca São Tarasios, escrita por Inácio, o Diácono, no século IX, por exemplo, as Imagens são defendidas precisamente como um meio de explicar o Antigo Testamento e de apresentar o Novo.


"Quem não veneraria uma representação colorida ilustrando exemplos de piedade, através da qual se podem aprender as antigas lições sobre o mundo, a Lei e os Profetas, completando a compreensão da antiga aliança e do pensamento arcaico? Através dela (a Imagem) aprende-se perfeitamente o Divino e as grandes maravilhas, que levam os espectadores à Glória de Deus."
- "Sancti Tarasii Constantinopolitani Vita", Cap. IX (PG 98,1415).

São Nicéforo, tal como São Tarásios, Patriarca de Constantinopla, foi franco, chamando aqueles que ousavam destruir imagens de "perseguidores da Cor, ou melhor, perseguidores de Cristo".⁴ Este ponto é evidenciado no Saltério de Chludov (figura abaixo). Os iconoclastas "Crucificam" um Ícone, tal como o soldado que leva aos lábios uma esponja embebida em vinagre tortura o próprio Cristo, não quebrando ou desfigurando a imagem, mas cobrindo a sua cor com cal.


No fundo há uma representação da crucificação de Jesus no Gólgota. O artista compara os soldados romanos maltratando Jesus com os patriarcas iconoclastas João Gramático e Antônio I de Constantinopla, destruindo o Ícone de Cristo.


O que na Epístola aos Hebreus é simplesmente uma metáfora para descrever os níveis da Revelação de Deus - Sombra/Imagem/Realidade Celestial - foi transformado, por meio da elaboração de Cirilo, numa poderosa defesa dos Ícones. Pode-se dizer agora que as imagens foram de fato fundamentadas na Bíblia, tanto nos Evangelhos quanto nas Epístolas. E como os Evangelhos, as Imagens foram construídas como meditações teológicas do Antigo Testamento. Assim como Cristo cumpriu e aperfeiçoou as Profecias Judaicas, também as imagens Dele completaram as simples palavras da antiga Lei e resolveram os enigmas que elas continham. Devido à sua plenitude e presença, as Imagens pertencem a uma fase Cristã posterior e melhor da história sagrada, na qual a verdade é conhecida diretamente.


A partir do século X, esta oposição entre Revelação escrita e Imagem Cristã foi introduzida em certos livros evangélicos que, anormalmente, incluíam frontispícios de Moisés Recebendo os Mandamentos e justapunham-nos com imagens de Cristo em Majestade. O códice do final do século XII/início do século XIII em Florença é típico.


(Laurenziana, Cod. Plut 6, 32, fols. 7v-8)


À esquerda, Moisés é mostrado caminhando pelo vale do Sinai e recebendo as Tábuas de uma mão que emerge de um arco celestial, um símbolo do Deus invisível conhecido apenas por meio de palavras. À direita está retratado Cristo, Deus feito homem e fonte dos quatro Evangelhos. A legenda cita João 1,17 para esclarecer o significado: "Pois a Lei foi dada por Moisés, a Graça e a Verdade vieram por Jesus Cristo." Aqui, exatamente, está o contraste entre a Torá e o Homem feito por Harold Bloom. Aqui também está a oposição evoluída da Revelação Judaica trancada na História e na Lei, em oposição à Aliança Cristã continuamente acessível, disponível nas efígies de Cristo. São Germano, Patriarca de Constantinopla do século VIII, explicou desta forma:


"O Evangelho é a vinda (Parousia [παρουσία]) de Deus, quando Ele foi visto por nós; Ele não está mais falando conosco como através de uma nuvem e indistintamente, como fez com Moisés através de trovões e relâmpagos e animais de estimação, por meio de uma voz, pelas trevas e pelo fogo na Montanha. Mas Ele apareceu visivelmente como um homem verdadeiro e vimos a Sua Glória como o Filho unigênito, cheio de Graça e de Verdade. Através Dele, o Deus e o Pai nos falou face a face, e não por meio de enigmas."
- "Rerum Ecclesiast. Contemplatio." (PG 98,412-413).

Na tentativa de incorporar este argumento notável no Direito Canônico, um Concílio da Igreja em 692 já havia exigido muito antes que todos os símbolos fossem substituídos por representações completas:


"Em algumas imagens veneráveis está representado um Cordeiro, símbolo da Graça que nos mostra antecipadamente, através da Lei, o verdadeiro Cordeiro, Cristo Nosso Senhor. Ao abraçarmos os antigos símbolos e sombras enquanto sinais e traçados antecipatórios transmitidos à Igreja, damos preferência à Graça e à Verdade que recebemos como cumprimento da Lei. Conseqüentemente, para que o perfeito seja apresentado aos olhos de todos, mesmo na pintura, decretamos que Cristo Nosso Senhor seja doravante instituído em forma humana em Imagens no lugar do antigo cordeiro."
- Mansi, Sac. Conc., 11, 977.

De acordo com este edito, a arte não deveria mais simplesmente substituir a exegese bíblica, ela deveria realmente apresentar a interpretação. A Epístola aos Hebreus fundamenta a linguagem deste Cânon do século VII, e suas reformulações, nos contrastes aqui das sombras e traços do Antigo Testamento com as Imagens aperfeiçoadas de Cristo.


Cerca de setecentos anos mais tarde, o argumento foi elaborado numa representação de Moisés diante da Sarça Ardente, num manuscrito infelizmente destruído no grande incêndio de Esmirna em 1922 e hoje conhecido apenas por fotografias (Imagens a seguir). Representando as palavras de Êxodo 3,6, "Moisés escondeu o rosto, e não ousava olhar para Deus", a miniatura representava o Profeta protegendo os olhos enquanto ouvia a voz Divina simbolizada pela Mão. Tal como no ícone do século XIII, o espectador da miniatura vê o mistério da Teofania de Moisés nas figuras da Virgem com o Menino, algo que o próprio profeta não pôde ver. Aqui, porém, a visão Cristã é introduzida não simplesmente através de um motivo inserido, mas por um ícone.


Á direita, Moisés em Horeb (Smyrna, Library of the Evangelical School, Cod. B 8, p. 166); à esquerda Moisés recebendo a Lei, e logo abaixo Moisés e Aarão a depositam na Arca (Ibid. 167).


Maria e Cristo retratados acima da narrativa do Antigo Testamento não apenas transmitem a mensagem de que a Sarça Ardente simbolizava o plano de Deus para libertar o seu povo escolhido através de um Filho nascido de uma Virgem; apresentados num retrato emoldurado, afirmam também que esta mensagem se encontra nas imagens. Um hino atribuído a São Teodoro Estudita, cantado na festa que comemora o Culto das Imagens na Liturgia Oriental – que não apenas incidentalmente é celebrado no dia da Festa de Moisés e Aarão – proclama a mesma revelação.


"Moisés foi considerado digno de te contemplar, Mãe de Deus. manifestado misticamente na sarça ardente; fomos apresentados a você com mais clareza, vendo a imagem de sua forma, julgados dignos de venera-la, recebemos diretamente a Graça emanada de sua proteção que nela reside."
- J. Johannet, "Nicée" II, p. 149

Tal como Cristo em Majestade nos Evangelhos de Florença, o Ícone da Virgem com o Menino lembra aos fiéis que, enquanto no passado Deus se tornou disponível apenas através de palavras enigmáticas proferidas a alguns Profetas escolhidos, um Deus vivo está agora sempre acessível em todos os lugares através da Sua Imagem.


O Sinai, deve ser lembrado, é onde Deus concedeu a escrita à humanidade, inscrevendo as Tábuas entregues a Moisés com Seu próprio Dedo e ditando a Torá para o Profeta transcrever. A miniatura sugere que foi também no Sinai que Deus inaugurou imagens, ou pelo menos é essa a possibilidade levantada pela legenda da miniatura: “Monte Sinai, a verdadeira contemplação” (Alethes Theoria). A referência é propositalmente ambígua. No uso grego, "Theona" significa tanto a contemplação real das coisas perceptíveis como também uma atividade intelectual profunda que vai além da percepção sensível para penetrar no significado dos acontecimentos. Como visão física, "Theoria" aqui alude ao encontro de Moisés com Deus e à visualização do ícone, à importante Teofania que culminou no Êxodo dos Israelitas e na promulgação de Leis, mas também à contínua Teofania disponível aos Cristãos em Imagens. Como interpretação, refere-se ao processo demonstrado na miniatura, a revelação de que Maria e Cristo são a verdadeira Teofania velada nesta história do Antigo Testamento. Mais uma vez, Cirilo de Alexandria vem à mente. Ao tentar explicar como o Livro de Josué pode ser lido tanto como um relato das conquistas de Josué como como uma prefiguração da vida de Cristo, Cirilo recordou uma lenda sobre a morte de Moisés.⁵ Calebe, um Israelita, viu apenas uma ocorrência natural: Moisés foi levado para uma caverna e enterrado; mas Josué, isto é, Jesus, percebeu um acontecimento sobrenatural: anjos desceram para levar a alma do Profeta ao Céu. Os judeus compreendem com sentidos carnais, veem apenas o acontecimento histórico; os Cristãos leem as mesmas palavras e testemunham os mesmos acontecimentos, mas compreendem o verdadeiro significado.


O Ícone nesta miniatura é um Theona em ambos os sentidos da palavra. Esclarece o Mistério da Sarça não consumida pelo fogo e oferece uma contemplação material da Revelação de Deus. Em contraste com os judeus que não conseguiram desenterrar a verdade da Lei – até mesmo Moisés, a quem foi permitido falar com Deus na Montanha Sagrada e vislumbrar as suas costas – aos Cristãos é concedido o privilégio de ver Deus, porque Cristo resolveu os enigmas das Profecias bíblicas e ao entrar na Matéria, Deus se tornou visível.


O argumento pictórico é ampliado ainda mais nas Imagens acima, que confronta o ícone e o episódio da Sarça Ardente com mais duas cenas da história de Moisés. Na esquerda, ao topo, Moisés recebe as Tábuas da Mão de Deus (como era comum na arte bizantina, estas são mostradas como placas retangulares de mármore com veios, mas aqui invulgarmente grandes e amarradas umas às outras). Abaixo, com Aarão e os israelitas, ele deposita os Mandamentos ocultos na Arca da Aliança, transformada em um baú semelhante a um túmulo. As Tábuas da Lei seladas e evocando uma sensação de Morte, contrastam com a Tábua pintada da Mãe e do Filho vivificantes, aberta a todos. A Verdade de Deus, anteriormente envolta nos Mistérios obscuros do Antigo Testamento - em sons e palavras, em símbolos e traços obscuros - torna-se visível agora através de Cristo, que cumpriu as Profecias e permitiu que imagens completas e coloridas libertassem o verdadeiro sentido das palavras nas Escrituras Hebraicas.


§. O Hebraísmo


Mas e a proibição explícita de imagens na Lei que Moisés recebeu de Deus no Sinai? Como poderiam os Cristãos contornar a injunção incondicional do Segundo Mandamento de toda representação pictórica?


"Tende cuidado com a vossa vida. No dia em que o Senhor, vosso Deus, vos falou do seio do fogo em Horeb, não vistes figura alguma. Guardai-vos, pois, de fabricar alguma imagem esculpida representando o que quer que seja, figura de homem ou de mulher, representação de algum animal que vive na terra ou de um pássaro que voa nos céus, ou de um réptil que se arrasta sobre a terra, ou de um peixe que vive nas águas, debaixo da terra. (...) deuses feitos pela mão do homem, deuses de madeira e de pedra, que não podem ver, nem ouvir, nem comer, nem sentir." (Dt 4,15-28)

Como sugeriu São Teodoro o Estudita no seu influente tratado, "Sobre os Santos Ícones", o Segundo Mandamento poderia ser descartado como irrelevante para os Cristãos ou poderia ser submetido a uma leitura espiritual.


"Tudo o que a Lei diz, ela diz aos que estão sob a Lei. Os mandamentos antigos não deveriam ser impostos àqueles que estão sob a Graça (...) Mas devemos entender essas coisas apenas como um prenúncio. O Apóstolo diz que a Lei é uma Sombra, mas não a verdadeira Imagem das realidades." - "Antirrheticus II.", XXXVI (PG 99,376).

Ao contrário das histórias Proféticas e em contraste com os 613 regulamentos levíticos que rejeitaram como paroquiais, no entanto, os Cristãos mantiveram o Decálogo, acreditando que os Dez Mandamentos coincidiam com a Lei Natural. Tal como a condenação do roubo e do adultério e os requisitos para Honrar a Deus e aos pais eram considerados regras inerentes que governavam o comportamento social, também era a proibição de imagens. Feitas pelos homens de matéria morta, as imagens nunca poderiam merecer a veneração devida apenas a Deus, o criador do homem. Aqueles que se opuseram ao culto das imagens sempre invocaram o Segundo Mandamento; a proibição judaica é o ponto de partida de toda polêmica iconoclasta.


§. A Torá e os Ídolos


O debate em torno do surgimento e do significado do aniconismo bíblico tende a nos fazer esquecer que muitas coisas podem assumir as funções de um Ícone. A questão não é, ou não apenas, se os israelitas cultuavam imagens, mas se eles tinham símbolos que, para todos os efeitos práticos, serviam como Imagens Divinas para eles. Este foi o caso, afirmo, da Lei Mosaica ("Torá" [תורה]). No Livro do Deuteronômio há uma relação direta entre a proibição das imagens e a propagação da Lei escrita. Enquanto outros povos carregavam selos esculpidos e decorações figurativas como amuletos, os israelitas foram instruídos a carregar porções da Torá consigo. Muitas casas babilônicas tinham um chefe de Huwawa ou uma figura de Kusarikku para dissuadir os demônios de entrar, enquanto a casa israelita tinha versos das Escrituras nas ombreiras das portas (a "Mezuzá" [מזוזה - "batente"]⁶); e em vez de um santuário com a imagem do seu Deus, os Sacerdotes israelitas carregavam uma Arca contendo um exemplar do Livro da Lei.


"Os Mandamentos que hoje te dou serão gravados no teu coração. (...) Tu os escreverás nos umbrais (מְזוּזֹ֥ת [Mezuzot]) e nas portas de tua casa."(Dt 6,9)
"Gravai, pois, profundamente em vosso coração e em vossa alma estas Minhas Palavras; (...) Escreve-as nas ombreiras (מְזוּז֥וֹת [Mezuzot]) e nas portas de tua casa" (Dt 11,18-20)

Mezuzá tradicional


Estas comparações sugerem uma correspondência funcional entre os Ídolos entre as nações vizinhas e a Torá entre os israelitas. A Torá serviu talvez como uma imagem substituta? A função icônica da Torá não é irrelevante para o debate sobre o aniconismo israelita. O aniconismo foi durante muito tempo considerado superior ao culto de imagens porque foi considerado o sinal de uma visão mais elevada e espiritual da Divindade. Sendo o Deus verdadeiro invisível ao olho humano, todas as tentativas de representá-lo, em qualquer formato ou formato, foram consideradas fatalmente falhas e enganosas. A forma mais elevada de religião, de acordo com esta linha de raciocínio, é conceitual. Os humanos devem procurar conhecer a Deus através da palavra escrita e falada. A Imagem foi contrastada com a Palavra, uma dirigida aos sentidos e a outra ao intelecto; a Fé deve ser o resultado de ouvir, não de ver. Contudo, se for possível demonstrar que a Palavra escrita e canonizada serviu, de fato, numa capacidade semelhante à do ícone religioso, a suposta superioridade da religião anicônica tem de ser baseada noutros fundamentos - se não se quiser abandoná-la completamente.


Uma vez que o debate sobre o aniconismo israelita pode beneficiar de uma abordagem que destaque o papel da Torá como um ícone, esta contribuição irá explorar a analogia funcional entre o culto das imagens, por um lado, e a veneração israelita da Torá, no outro. A analogia manifesta-se em diferentes níveis; além das analogias entre o próprio culto às imagens e os ritos que cercam a Torá, há também uma analogia contida nos mitos sobre a origem da imagem e, no caso de Israel, do livro. Antes de prosseguirmos na investigação destas analogias, no entanto, é útil recordar-nos do clima espiritual em que o debate sobre o aniconismo tem ocorrido há muito tempo. Volto-me, portanto, em primeiro lugar, para a incipiente ciência da religião do final do século XIX, para mostrar as implicações apologéticas na identificação da Religião Israelita como anicônica.


§. Religião do Livro e Religião Ritual


Os manuais sobre o estudo comparativo da religião apresentam frequentemente Friedrich Max Muller como o pai da moderna ciência da religião. Muller (1823 - 1903), alemão de nascimento, mas que trabalhou a maior parte de sua vida na Inglaterra, é lembrado principalmente por suas realizações como estudioso das religiões orientais. Editou uma série de cinquenta volumes, publicados entre 1879 e 1910, sob o título "The Sacred Books of the East". O nome da série é revelador, porque Muller acreditava que o livro sagrado era um veículo superior para transmitir verdades religiosas. As religiões sem livro eram, da mesma forma, menos dignas do que aquelas que ele chamava de “religiões do livro”. Uma citação revela prontamente os sentimentos de Muller a este respeito:


"Mas quão poucas são as religiões que possuem um cânone sagrado, quão pequena é a aristocracia das verdadeiras religiões do livro na história do mundo."⁷

A origem protestante de Muller dificilmente está escondida neste julgamento. Vindo de uma tradição que considerava a palavra o principal meio de comunicar a verdade religiosa, Muller aplicou a visão protestante como se fosse um princípio geral dos estudos religiosos.


Mas e as religiões que não pertenciam ao que Muller chamara de “a aristocracia das verdadeiras religiões do livro”? Elas foram definidas apenas pelo que lhes faltava? Não de fato. Muitos autores da época de Muller mantiveram uma divisão entre religiões do livro e religiões ritualísticas. Num estudo das origens e da essência da religião do livro, Siegfried Morenz postula o contraste de forma bastante explícita. As religiões do livro, como o Judaísmo, são o oposto das religiões que giram inteiramente em torno de rituais, como a maioria das religiões pré-Cristãs.⁸ Esta distinção, no entanto, não pode ser conciliada com a existente entre as religiões praticadas por civilizações alfabetizadas e pré-alfabetizadas. É bem possível que uma religião tenha tido uma tradição escrita, sem por isso ser uma religião livresca; enquanto os escritos nada mais fossem do que um manual para os sacerdotes na execução dos seus rituais, a religião em questão não tem o direito de entrar na liga das principais religiões. Esta inimizade descarada contra as religiões rituais (ou "Kultreligionen", para usar o termo alemão) tem sido o complemento de longa data da estima professada pelas religiões do livro.⁹


Mas o que há de tão errado no ritual e de tão certo nos livros? O ritual, na opinião de muitos estudiosos religiosos até cerca da década de 1960, era um ato exterior de fé religiosa que não penetrava além da superfície da mente humana. Poderia ser realizado mecanicamente, deixando o espírito frio e inalterado. O livro sagrado, por outro lado, só poderia ser apropriado por um esforço consciente da mente; assim, envolveu, forçosamente, o cerne da pessoa humana. A religião ritual e a religião do livro estavam ambas associadas a órgãos humanos específicos; o ritual, por exemplo, dirigia-se aos olhos, enquanto o livro estava ali para ser lido em voz alta para os ouvidos ouvirem.¹⁰ As religiões rituais são religiões do visível, na medida em que oferecem imagens para a contemplação dos seus fiéis. As religiões do livro, por outro lado, oferecem palavras que são veículos para conceitos. E porque os conceitos são mais difíceis de compreender do que as imagens, as religiões do visível deveriam ser consideradas como representando um estágio inferior no desenvolvimento da raça humana, do que as religiões do livro. A ordem de classificação coincide, portanto, com a ordem de desenvolvimento: enquanto as nações incivilizadas adoravam imagens, as pessoas desenvolvidas ouviam a Palavra Sagrada.


Em 1968, um historiador britânico da religião ainda podia escrever que


"Muito antes da concepção de um Livro Sagrado, existia um 'Ícone Sagrado". Em outras palavras, muito antes de os homens acreditarem que a divindade pudesse se revelar por escrito, eles acreditavam que a forma da divindade poderia ser revelada na arte linear ou plástica."¹¹

Esta visão da imagem religiosa, como se fosse uma relíquia da infância da raça humana, a ser desprezada pelo homem educado, teve uma vida tenaz e ainda não desapareceu completamente. Embora poucos hoje o digam de forma tão direta como o autor que acabamos de citar, a ideia de que as religiões com imagens são de alguma forma mais grosseiras e atrasadas do que aquelas sem elas mancha todo o debate sobre o aniconismo.


Para purificar a discussão dos julgamentos de valor muitas vezes não confessados, não basta simplesmente denunciá-los. Parece mais útil expor alguns dos equívocos implícitos que informam o debate. Ao destacar a analogia funcional entre a imagem na religião babilônica e a Torá na Religião israelita tardia ou no judaísmo primitivo, desejo desafiar a ideia segundo a qual a imagem religiosa se dirige apenas aos sentidos, enquanto a palavra escrita se dirige à mente humana. As imagens, por exemplo, não são apenas objetos para olhar, mas também portadoras de informações a serem processadas pela mente. Os livros, por outro lado, tendem a ser tratados como Imagens; o cânone é um ícone. Tanto a imagem sagrada como o livro sagrado atendem à necessidade humana do absoluto, uma refração do outro mundo. Como símbolo, o valor informativo do Ícone ou do cânone torna-se subserviente ao seu valor como objeto sagrado.


§. A Torá como Ícone de Israel.



A passagem do Egito para a Terra Prometida constitui um grande salto para aniconismo da Religião Israelita. A Religião Mosaica propagou um duplo ideal: a centralização do Culto (Dt 12) e a supressão do culto das imagens (Dt 4,16-18,23, 25; 7,25-26). Segundo a visão Judaica, a existência de uma multidão de santuários locais era incompatível com a singularidade de Javé; Deus não poderia ser refratado em lugares diferentes. Além disso, todas as representações visuais de Deus eram condenadas como ilegítimas.


A iconoclastia estava intimamente ligada à promoção do Livro da Lei (Sepher HaTorá) como a Letra da Religião formada de Israel. A Torá deveria fornecer aos Hebreus uma nova identidade: de agora em diante eles seriam o Povo da Lei. A proibição das imagens e a ênfase na Torá são complementares: a Torá deveria tomar o lugar da Imagem. Não havia espaço para ídolos domésticos. O vazio deixado pelos ídolos foi preenchido pela palavra escrita: nos umbrais e nos portões, onde anteriormente haviam sido colocadas imagens, os israelitas doravante escreveriam porções da Torá. A prática remonta á prescrição segundo o qual as palavras da Torá deveriam ser amarradas como um sinal na mão e como uma faixa entre os olhos naquilo que os Targumim e a Peshitta chamaram de Tefilin (תפלין/ ܬܦܠܝܢ‎), e o texto grego do Novo Testamento de Filactérion (φυλακτήριον).


"O Senhor disse a Moisés: 'Tu me consagrarás todo primogênito entre os israelitas, tanto homem como animal: ele será meu'. Moisés disse ao povo: 'Conservareis a memória deste dia, em que saístes do Egito, da casa da servidão, porque foi pelo poder de sua mão que o Senhor vos fez sair deste lugar; não comereis pão fermentado. Vós saís hoje do Egito, no mês das espigas. Assim, pois, quando o Senhor te houver introduzido na terra dos cananeus, dos hiteus, dos amorreus, dos heveus e dos jebuseus, que jurou a teus pais te dar, terra que mana leite e mel, observarás este rito neste mesmo mês. Durante sete dias, comerás pães sem fermento e, no sétimo dia, haverá uma festa em honra do Senhor. Serão comidos pães sem fermento durante sete dias. Não se verão em tua casa, em toda a extensão do território, nem pães fermentados nem fermento. Explicarás então a teu filho: isso é em memória do que o Senhor fez por mim, quando saí do Egito. Será isso para ti como um sinal sobre tua mão, como uma marca entre os teus olhos, a fim de que tenhas na boca a lei do Senhor, porque foi graças à sua poderosa mão que o Senhor te fez sair do Egito. Observarás a cada ano essa prescrição no tempo prescrito'. 'Quando o Senhor te houver introduzido na terra dos cananeus, como ele jurou a ti e a teus pais, e te houver dado essa terra, consagrarás ao Senhor todo primogênito; mesmo os primogênitos de teus animais, os machos, serão do Se­nhor. Entretanto, resgatarás com um cordeiro todo primogênito do jumento; do contrário, lhe quebrarás a nuca. Todo primogênito dos homens entre teus filhos, o resgatarás igualmente. E, quando teu filho te perguntar um dia o que isso significa, lhe dirás: é que o Senhor nos tirou do Egito com sua mão poderosa, da casa da servidão. E, como o faraó se obstinasse em não nos deixar partir, o Senhor matou todos os primogênitos do Egito, desde os primogênitos dos homens até os dos animais. Eis por que sacrifico ao Senhor todos os primogênitos machos dos animais, e devo resgatar todo primogênito entre meus filhos. Isso será como um sinal sobre tua mão e como uma marca entre teus olhos, porque foi pelo poder de sua mão que o Senhor nos tirou do Egito.'" (Ex 13,1-16)

"Os Mandamentos que hoje te dou serão gravados no teu coração. Tu os inculcarás a teus filhos e deles falarás, seja sentado em tua casa, seja andando pelo caminho, ao te deitares e ao te levantares. Hás de prendê-los à tua mão como sinal, e os levarás como uma faixa frontal diante dos teus olhos." (Dt 6,6-9)

"Gravai, pois, profundamente em vosso coração e em vossa alma estas Minhas Palavras; prenderás às vossas mãos como um sinal, e levarás como uma faixa frontal entre os vossos olhos." (Dt 11,18)

À esquerda (Fig. 1); caixa de um Tefilin aberta contendo as Parshiot ([פרשיות] porções da Torá) referentes à prescrição de seu uso; e (Fig. 2) o seu uso tradicional - ambos conforme o Talmud.¹² À direita (Fig. 3), Tefilins datados do Século II a.C. e uma Minúscula Porção da Torá que tinha a função de ser guardada dentro de um, encontrados no Mar Morto.¹³




O exemplo mais impressionante da Torá substituindo o ícone da divindade é o registro Deuteronômico da Arca. De acordo com Deuteronômio 10,1-5, Moisés teve que colocar as Tábuas da Lei de Deus na Arca. O Professor de Bíblia da Universidade de Jerusalém, Moshe Weinfeld, interpreta esta passagem como uma degradação do significado religioso da Arca, dizendo que "o vaso mais sagrado do culto israelita desempenha, na visão deuteronômica, nada mais do que uma função educacional: ele abriga as tábuas sobre as quais as Palavras de Deus estão gravadas...".¹⁴ É tentador inverter a linha de raciocínio de Weinfeld, na medida em que é evidente, a partir de uma série de passagens bíblicas, que a Arca era para os israelitas o que os ídolos eram para as nações.¹⁵ Enquanto os filisteus carregavam os seus ídolos quando marchavam para o campo de batalha (2Sm 5,21), os israelitas carregavam a Arca (1Sm 4,1-11). Capturada, a Arca foi colocada no templo de Azoto, junto ao ídolo de Dagon.¹⁶



"Os filisteus apoderaram-se, pois, da Arca de Deus e levaram-na de Eber-Ezer para Azoto. Tomaram a arca de Deus e a introduziram no templo de Dagon, colocando-a junto do ídolo. No dia seguinte, levantando-se pela manhã, os habitantes de Azoto viram Dagon estendido com o rosto por terra diante da arca do Senhor. Levantaram o ídolo e repuseram-no no seu lugar. Na manhã seguinte, ao se levantarem, encontraram de novo Dagon estendido com o rosto por terra diante da arca do Senhor; a cabeça do deus e suas duas mãos estavam desprendidas e jaziam perto do limiar. Dele só restou o tronco." (1Sm 5,1-4)

Javé e Arca não são contíguos (cf. 1Sm 3,2-18; 4,5-11); nem a Divindade e a sua imagem estão presentes no mundo que rodeia Israel.¹⁷ Tal como as imagens das divindades noutras civilizações do Oriente Próximo, a Arca serviu como ponto focal da Presença Divina. A explicação mais plausível para este fenômeno, na minha opinião, é que a Arca continha uma Imagem ou um símbolo material de Javé. Quando se tornou Santuário da Palavra Revelada de Deus, a sua nova função não diminuiu a sua Santidade; a Lei escrita tinha, com efeito, tomado o lugar da imagem.


Embora a substituição da imagem pelo livro tenha tido um efeito tremendo sobre a natureza da Religião dos Hebreus, as consequências de sua revolução não devem cegar-nos para as semelhanças ainda mais fundamentais que existem entre o culto das imagens e a veneração do Livro. Os Judeus foram, em última análise, bastante sucedidos na execução do seu programa com detalhes precisos, porque a imagem sagrada e o livro sagrado serviam a mesma função: cada um deles era uma personificação do sagrado, e ambos eram percebidos como encarnações de Deus. Tal como o Ícone, o Livro é ao mesmo tempo um meio e um objeto; como meio, remete o leitor a uma realidade além de si mesmo, enquanto como objeto é sagrado em si. Apresentado como uma Revelação Divina, o símbolo do culto, seja uma imagem ou um livro, tende a ser percebido como consubstancial a Deus. É por isso que a correta compreensão da mensagem de um Livro Sagrado não é um pré-requisito para acreditar nele. O cínico poderia até argumentar que a verdadeira compreensão do livro só poderia ser prejudicial à sua veneração incondicional.


A analogia funcional entre o Ícone e o Livro implica diversas outras analogias na forma como os Crentes abordam e usam esses símbolos. Por sua ligação íntima com Deus, o Livro da Lei é Santo. A Santidade da Torá é tal que "torna as mãos impuras", segundo uma expressão estereotipada.¹⁸ A impureza não é causada por contágio; é o efeito de uma justaposição do profano (o ser humano) e do Sagrado (a Palavra de Deus). O contato entre os dois transforma uma pureza relativa em impureza. As mãos devem ser lavadas após cada contato e é proibido tocar no pergaminho onde está escrita a Torá.¹⁹ É por isso que o Rolo da Torá é embrulhado em um pano enquanto é lido, e o leitor segue o texto não com a mão, mas com uma vara em forma de mão. Tal reverência à Torá decorre da Natureza Divina que lhe é atribuída; possui uma Santidade comparável à Santidade de uma Imagem Divina - qualquer pessoa que a tocasse estava exposta ao perigo.



"Quando chegaram à eira de Nacon, Oza estendeu a mão para a Arca do Senhor e susteve-a, porque os bois tinham escorregado. Então a cólera do Senhor se inflamou contra Oza; feriu-o Deus por causa de sua imprudência e Oza morreu ali mesmo, perto da Arca de Deus." (2Sm 6,6-7)

Sendo a personificação da Palavra de Deus, a Torá é objeto de uma devoção que tem o seu paralelo mais próximo no culto da imagem divina. A liturgia da Sinagoga oferece um exemplo notável da veneração cultual da Torá. No momento marcado, todos os presentes levantam-se para demonstrar o seu respeito pelo Livro. O rabino vai até o baú que contém a Torá (a tebah), abre as portas e retira o pergaminho sagrado. Ele então o carrega em procissão entre os fiéis. À medida que o pergaminho passa por eles, os adoradores inclinam-se para a frente e tocam-no com os Talits, com os quais tocaram primeiro os lábios. A leitura é precedida pela prática da elevação do pergaminho (a "Hagbahah" [הגבהה]): o rabino levanta a Torá para toda a congregação ver.²⁰


Hagbahah


Após a leitura e a exposição, o pergaminho é colocado de volta na tebah e as portas são fechadas. A analogia com a procissão de Imagens, trazidas de seus Santuários e mostradas aos fiéis, é no mínimo surpreendente. A congregação presta homenagem à Torá como faria com um ícone.


De acordo com a Carta de Aristéias, o rei que ordenou a tradução da Septuaginta saudou o livro sagrado com uma genuflexão sétupla. Para ele, como para muitos outros, o livro representava Deus:


"Quando eles descobriram os rolos e desenrolaram os pergaminhos, o rei parou por um espaço considerável e, depois de se curvar profundamente (Proskynisas [προσκυνήσας]) umas sete vezes, disse: 'Agradeço a vocês, bons senhores, e àquele que os enviou ainda mais, mas acima de tudo, agradeço. Deus, cujas Santas Palavras são estas'."
- "Aristeas to Philocrates (Letter of Aristeas), Edited and Translated by Moses Hadas", Harper & Brothers, New York, 1951, página 168.

Outros costumes confirmam a analogia funcional entre a Imagem e o Livro. Limito-me a quatro outros exemplos:


  1. Numa religião de imagens, como a babilônica, os crentes prestavam juramento tocando uma estátua ou símbolo de seu deus. Numa religião do livro, como o judaísmo, as pessoas fazem seu juramento solene sobre o Livro sagrado: o contato físico com o objeto sagrado expõe o jurado ao castigo Divino caso ele não fale a verdade.

  2. O exército babilônico nunca embarcou nas suas actividades militares sem seus ídolos, que eram transportadas à frente das tropas para mostrar aos soldados que eram seus deuses que realmente os conduziam para a batalha.²¹ Para os judeus, é o Livro Sagrado que acompanha os seus exércitos. A Mishná diz que o rei, na qualidade de chefe do exército, deve trazer consigo uma cópia da Torá.²² Nesta ocasião, o livro não é utilizado como fonte de informação, mas como símbolo da presença de Deus.

  3. Um terceiro ponto de comparação diz respeito ao transporte de um novo rolo da Torá da oficina do escriba para a sua residência permanente. O livro é transportado em procissão pelas ruas e protegido do sol por um dossel, é saudado pela multidão com cantos e danças. Tais manifestações de devoção têm a sua analogia mais próxima no entusiasmo desencadeado pela procissão da estátua do deus, de e para o templo.

  4. Outra semelhança diz respeito ao destino de um pergaminho ao final de seu uso: ele não é destruído, mas enterrado, como antigamente se enterravam suas estátuas de culto irreparáveis.²³


As várias analogias que acabamos de comentar decorrem do fato de que o Livro Sagrado (a Torá, no caso) é visto pelos crentes como uma Manifestação de Deus, pelo que é creditado com uma natureza Divina. A veneração da Torá como símbolo Divino deu origem a uma mitologia que se assemelha fortemente à mitologia mesopotâmica dos ídolos. O objetivo principal desta "Mitologia" é negar a origem humana (e até mesmo temporal?) á Torá; tendo em conta a sua natureza, o Livro Sagrado deve ter vindo de outro mundo mais antigo, muito superior ao deles. A história bíblica da descoberta do Livro da Torá pelo Sacerdote Hilquias é o primeiro passo em direção à doutrina do outro mundo da Torá (2Rs 22). A atribuição da Torá a Moisés baseia-se no fato de que o período de Moisés, situado num passado "Mitológico"²⁴, é apresentado como a era da Revelação. Neste aspecto, assemelha-se à era antediluviana que os babilônios consideravam como a Idade de Ouro das imagens. É revelador que um rei babilônico aplique o topos da descoberta casual a uma imagem, e os Judeus a um livro.


Embora Moisés possa ter sido um ser humano extraordinário, ele não era Deus. Enquanto ele for apresentado como o autor final da Torá, esta permanecerá um documento humano. Contudo, se a Torá é uma personificação de Deus, a sua origem deve estar no Céu. Na verdade, na doutrina oficial do Judaísmo posterior, os rabinos ensinam que a Torá é "do Céu" (min ha-samayim²⁵), sendo o Céu um eufemismo para Deus. O Talmud especifica que nenhum versículo é de Moisés; tudo na Torá, até o menor ponto, é obra de Deus.²⁶ Moisés foi simplesmente um intermediário: "O Santo, Bendito seja, ditou, Moisés repetiu, e Moisés escreveu".²⁷ Na qualidade de secretário, Moisés pode ser comparado a Baruc, o servo de Jeremias que registrou fielmente as palavras de seu senhor. Moisés não foi um autor; ele foi o escriba que repetiu a mensagem que lhe foi falada e depois a registrou por escrito.


A preocupação de sublinhar a natureza muito especial da Torá levou as autoridades religiosas a manter a sua pré-existência. De acordo com a Tradição (ecoada no Novo Testamento), os judeus receberam a Torá através da intermediação de Anjos (At 7,53; cf. Hb 2,2). A noção sugere que a Lei existia no Céu antes de ser dada aos Israelitas. A noção de uma pré-existência Celestial da Torá é explicitamente formulada na Mishná. O rabbi Akiva (Séc. II) coloca a origem da Torá antes da origem do Cosmos e afirma que a Torá foi o instrumento por meio do qual o mundo foi criado.²⁸ O Midrash Rabbah do Gênesis elabora esta frase comparando Deus, o Criador, a um artesão.


"O costume atual neste mundo é que um rei de carne e osso que constrói um palácio não confia no seu julgamento, mas no de um artesão. Agora o artesão também não confia no seu próprio julgamento, mas tem pergaminhos e tabuinhas que lhe dizem como fazer os quartos e as entradas. Foi assim com o Santo, Bendito seja: Ele consultou a Torá e (só então) criou o mundo."
- "Bereshit Rabbah" 1,1 ("מדרש רבה על חמשה חומשי תורה וחמש מגלות", Hotsa'at Sefer, 1969, página 10).

A imagem de Deus "consultando a Torá" também ocorre no Talmud. Normalmente, Deus passa as primeiras horas do dia "estudando a Torá"; depois Ele administra a justiça, Sustenta o Mundo e termina o dia "brincando com o Leviatã".²⁹


§. A Sabedoria

"Eu, a Sabedoria, sou amiga da Prudência, possuo uma Ciência profunda. (...) O Senhor me criou, como primícia de suas obras, desde o princípio, antes do começo da terra. (...) junto a Ele estava Eu como artífice" (Pr 8,12-30)

Sophia de Yaroslavl


  • Definição; o que, e quem é a Sabedoria.


A noção da pré-existência da Torá deriva diretamente das especulações sobre a pré-existência da "Sabedoria" (Chokhmah [חכמה] no Hebraico, e Sophia [σοφία] na tradução dos Setenta), a "Persona Divina feminina" da literatura Sapiencial, identificada com a própria Lei ainda no período pós-exílico:


"A busca da sabedoria é comum a todas as culturas do Antigo Oriente, Coletâneas de literatura sapiencial nos foram legadas pelo Egito como pela Mesopotâmia, e os sete Sábios eram legendários na Grécia Antiga. Esta Sabedoria tem uma finalidade prática: trata-se de o homem se conduzir com prudência e habilidade para ter sucesso na vida. Isso implica uma certa reflexão sobre o mundo; leva também à elaboração de uma moral, de que não está ausente a referência religiosa (notadamente no Egito). Na Grécia do século VI a reflexão tomará um rumo mais especulativo, e a Sabedoria se transformará em filosofia. Ao lado de uma ciência embrionária e de técnicas que te vão desenvolvendo, a Sabedoria constituí, portanto, um importante elemento da civilização. É o humanismo da Antiguidade.
Na Revelação Bíblica, a Palavra de Deus toma também forma de Sabedoria. Fato importante, mas que é preciso interpretar corretamente. Não significa que a Revelação, num certo estágio de seu desenvolvimento, se transforma em humanismo. A Sabedoria inspirada, mesmo quando integra o melhor da sabedoria humana, é de uma outra natureza que esta última. Perceptível desde o AT, esse fato esplende no NT.

I. Sabedoria humana e Sabedoria segundo Deus

A Implantação da Sabedoria em Israel — Prescindindo das exceções que São José (Gn 41,39s.) e Moisés (Ex 2,10; cf. At 7,21s), Israel não tomou contato com a sabedoria do Oriente senão depois de sua instalação em Canaã, e tem-se que esperar a época dos reis para ver Israel se abrir amplamente ao humanismo do tempo, Salomão é aí o iniciador: 'A Sabedoria (חָכְמַ֣ת [Chokhmat]) de Salomão foi maior que a de todos os orientais e que toda a do Egito' (1Rs 5,9-14; cf, 10,6s - 23s). O termo tem em vista do mesmo tempo sua cultura pessoal e sua arte de bem governar. Ora, para os homens de Fé esta Sabedoria régia não é problema: é um dom de Deus que Salomão obreve por sua oração (1Rs 3,6-14), Apreciação otimista, da qual se encontram ecos alhures: enguanto os escribas da corte cultivam os gêneros sapienciais (C.f. os elementos antigos de Pr 10-22 e 25-29), os historiadores sagrados fazem o elogio de José, o administrador atinado que devia a Deus a sua sabedoria (Gn 41,47).
2. A Sabedoria em questão - Mas há Sabedoria e sabedoria. A verdadeira vem de Deus; é Ele que dá ao homem 'um coração capaz de discernir o bem do mal' (1Rs 3,9), Mas todos os homens são tentados, como seu primeiro pai, a usurpar esse privilégio Divino, a adquirir por suas próprias forças 'o conhecimento do bem e do mal' (Gn 3,5s). Sabedoria falaciosa, à qual os atrai a astúcia da Serpente (Gn 3,1). Tal sabedoria é a dos escribas que julgam de tudo segundo opiniões humanas e 'mudam em mentira a Lei de Javé' (Jr 8,8), é a dos conselheiros régios que executam uma política meramente humana (cf. Is 29,15ss.). Os Profetas se levantam contra tal sabedoria: 'Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, atilados segundo seu próprio senso' (Is 5,21). Deus fará que a sabedoria destes não dure (Is 29,14). Serão apanhados na armadilha por terem desprezado a Palavra de Javé (Jr 8,9). Pois essa Palavra é a única fonte da Sabedoria autêntica. Esta, os espíritos desviados aprendê-la-ão depois do castigo (Is 29,24). O rei filho de Davi que reinará 'nos últimos tempos' a terá em plenitude, mas tê-la-á do Espírito de Javé (Is 11,2). Assim o ensinamento profético repele a tentação de um humanismo que tivesse a pretensão de bastar-se a si próprio: a salvação do homem vem só de Deus.
3. A caminho da verdadeira Sabedoria — A ruína de Jerusalém confirma a ameaça dos Profetas: a falsa sabedoria dos conselheiros régios levou, portanto, o país à catástrofe! Dissipado assim o equívoco, a verdadeira Sabedoria poderá expandir-se livremente em Israel. Seu fundamento será a Lei Divina, que faz de Israel o único povo sábio e inteligente (Dn 4,6). O temor de Javé será seu princípio e seu coroamento (Pr 9,10; Eclo 1,14-18; 19,20). Sem deixar jamais as perspectivas desta Sabedoria religiosa, os escribas inspirados vão agora nela integrar tudo que a reflexão humana lhes pode oferecer de bom. A literatura sapiencial editada ou composta depois do exílio é fruto desse esforço. Curado de suas pretensões orgulhosas, o humanismo aí se expande à luz da Fé.

II. Aspectos da Sabedoria


1. Uma arte de bem viver — O Sábio da Bíblia é curioso das coisas da natureza (1Rs 5,13). Admira-as, e sua fé lhe ensina a ver nelas a mão poderosa de Deus (Jó 36,22-37, 18; 38-41; Eclo 42,15; 43,33). Mas ele se preocupa antes de tudo em saber como se conduzir na vida para obter a felicidade verdadeira. Todo homem entendido em sua profissão já merece o nome de sábio (Is 40,20; Jr 9,16; 1Cr 22,15); o sábio por excelência é o entendido na arte de bem viver. Ele lança sobre seu mundo circunstante um olhar lúcido e sem ilusões; conhece-lhe os lados negativos, o que não significa que os aprove (p.ex., Pr 13,7; Eclo 13,21ss.). Psicólogo, ele sabe o que se esconde no coração humano, é isto lhe dá alegria ou pena (p. ex., 13,12; 14,13; Ed 7,2-6). Mas não se isola nesse papel de observador. Educador nato, ele traça normas para seus discípulos: prudência, moderação nos desejos, trabalho, humildade, ponderação, reserva, lealdade na linguagem etc. Toda a moral do decálogo passa para os seus con selhos práticos. O senso social do Deuteronômio e dos Profetas lhe inspira admoestações sobre a esmola (Eclo 7,32ss; Tb 4,7-11), o respeito pela justiça (Pr 11,1; 17,15), o amor pelos pobres (Pr 14,31; 17,5; Eclo 4,1-10). Para confirmar suas maneiras de ver, apela para a experiência, especialmente a dos anciãos; mas sua inspiração profunda vem de mais alto que a experiência. Tendo adquirido a sabedoria a custo de um rude esforço, não há o que ele mais deseje senão transmiti-la aos outros (Eclo 51,13-30), e convida seus discípulos a corajosamente fazer seu difícil aprendizado (Eclo 6,18-37). 2. Reflexão sobre a existência — Não se deve esperar do mestre de sabedoria israelita uma reflexão de caráter metafísico sobre o homem, sua natureza, suas faculdades etc. Por outro lado, ele tem um apurado senso da sua situação na existência e perscruta com atenção o seu destino. Os Profetas se interessavam sobretudo pela sorte do povo de Deus como tal; os textos de Ezequiel sobre a responsabilidade individual têm o aspecto de exceções (Ez 14,12-20; 18; 33,10-20). Sem deixar de estarem atentos ao destino global do povo da Aliança (Eclo 44-50; 36,1-17; Sb 10-12; 15-19), os Sábios se interessam sobretudo pela vida dos indivíduos. São sensíveis à grandeza do homem (Eclo 16,24 - 17,14) como à sua Miséria (Si 40,1-11), à sua Solidão (Jó 6,11-30; 19,13-22), à sua Angústia diante da Dor (Jó 7,16) e da Morte (Ecl 3; Eclo 41,1-4), à impressão de vazio que sua vida lhe deixa (Jó 14,1-12; 17; Ecl 1,4-8; Eclo 18,8-14), à sua inquietude diante de Deus que lhe parece incompreensível (Jó 10) ou ausente (23; 30,20-23). Nessa perspectiva, o problema da retribuição não pode deixar de ser abordado, pois as concepções tradicionais chegam a negar a justiça (Jó 9,22-24; 21,7-26; Ecl 7,15; 8,14; 9,2s.). Mas serão necessários longos esforços para que além da retribuição terrestre, tão decepcionante, o problema se resolva na Fé na Ressurreição (Dn 12,2s.) e na vida Eterna (Sb 5,15).
3. Sabedoria e Revelação — Concedendo tão ampla margem para a experiência e para a reflexão humana, o ensinamento dos sábios é evidentemente de um outro tipo que a Palavra Profética, originada de uma Inspiração Divina de que o próprio Profeta está consciente. Isso não obsta a que ele faça também progredir a doutrina, projetando sobre os problemas a luz das Escrituras longamente meditadas (cf. Eclo 39,1ss.). Ora, na época tardia, Profecia e Sabedoria confluem no gênero apocalíptico, para revelar os segredos do futuro. Se Daniel 'revela os mistérios Divinos' (Dn 2,28ss.47), não é por sabedoria humana (2,30), mas porque o Espírito Divino, que nele reside, lhe confere uma sabedoria superior (5,11.14). A sabedoria religiosa do AT reveste nesse ponto uma forma característica, de que a antiga tradição israelita já apresentava um significativo exemplo (cf. Gn 41,38s.). O sábio aí aparece como inspirado por Deus de modo igual ao Profeta.
III. A Sabedoria de Deus
1. A Sabedoria Personificada — Tão grande é o culto da Sabedoria entre os escribas pós-exílicos, que eles se comprazem em personificá-la para lhe dar maior relevo (Pr 14,1). Ela é uma bem-amada que se procura avidamente (Eclo 14,22ss.), uma mãe protetora (14,26s.) e uma esposa nutriz (15,2s.), uma hospedeira acolhedora que convida ao seu festim (Pr 9,1-6), ao contrário de Dona Loucura cuja casa é o vestíbulo da Morte (9,13-18).
2. À Sabedoria Divina - Ora, essa representação feminina não deve ser entendida como uma simples figura de linguagem. A sabedoria do homem tem uma proveniência Divina, Deus pode comunicá-la a quem Ele quer porque é Ele próprio o Sábio por Excelência. Os autores sagrados contemplam, portanto, em Deus esta Sabedoria da qual decorre a deles. Ela é uma Realidade Divina que existe desde sempre e para sempre (Pr 8,22-26; Eclo 24,9). Saída da boca do Altíssimo como seu hálito ou sua Palavra (Eclo 24,3), ela é 'um sopro do poder Divino, uma efusão de Glória do Onipotente, um reflexo da Luz eterna, um espelho da atividade de Deus, uma Imagem de Sua excelência' (Sb 7,25s.). Ela habita no Céu (Eclo 24,4), partilha o Trono de Deus (Sb 9,4), vive na sua intimidade (8,3).
3. A atividade da Sabedoria — Esta Sabedoria não é um princípio inerte. Está associada a tudo que Deus faz no mundo. Presente por ocasião da criação, ela se divertia a seu lado (Pr 8,27-31; cf. 3,19s.; Eclo 24,5), e continua a reger o universo (Sb 8,1). Ao longo de toda a história da Salvação, Deus a enviou em missão à terra. Ela se instalou em Israel, em Jerusalém, como uma árvore de vida (Eclo 24,7-19), manifestando-se na forma concreta da Lei (Eclo 24,23-34). Desde então ela mora familiarmente com os homens (Pr 8,31; Br 3,37s.). Ela é a providência que dirige a história (Sb 10,1-11,4), e é ela que garante aos homens a Salvação (9,18). Ela desempenha um papel semelhante ao dos Profetas, dirigindo suas censuras aos desavisados cujo juízo anuncia (Pr 1,20-33), convidando os que são dóceis a se beneficiarem de todos os seus bens (Pr 8,1-21.32-36), a se assentarem à sua mesa (Pr 9,4ss.; Eclo 24,19-22). Deus age por ela como age por Seu Espírito (cf. Sb 9,17); é, portanto, a mesma coisa recebê-la ou ser dócil ao Espírito. Se esses textos ainda não fazem da Sabedoria uma pessoa Divina no sentido do NT, perscrutam ao menos em profundidade o mistério do Deus único e preparam uma Revelação mais precisa do mesmo.
4. Os dons da Sabedoria — Não é de admirar que esta Sabedoria seja para os homens um tesouro superior a tudo (Sb 7,7-14). Sendo ela mesma um dom de Deus (8,21), ela é a distribuidora de todos os bens (Pr 8,21; Sb 7,11): vida e felicidade (Pr 3,13-18; 8,32-36; Eclo 14,25-21), segurança (Pr 3,21-26), Graça e Glória (4,8s.), riqueza e justiça (8,18ss.), e todas as virtudes (Sb 8,7s.)... Como não iria o homem se esforçar por tê-la como esposa? (8,2). É ela, com efeito, que faz os amigos de Deus (7,27s.). A intimidade com ela não se distingue da amizade com o próprio Deus. Quando o NT identificar a Sabedoria com Cristo, Filho e Palavra de Deus, encontrará nesta doutrina a exata preparação de uma Revelação plena: unido a Cristo, o homem participa da Sabedoria Divina e se vê introduzido na intimidade de Deus."
- Pe. Pierre Grelot e André Barucq, "Vocabulário de Teologia Bíblica", Tradução de Fr. Simão Voigt, Editora Vozes, 12ᵃ Edição, 2018, páginas 939-942.

  • Identificação com a Lei


Em Provérbios 8,22, a Sabedoria Personificada, falando na primeira pessoa, apresenta-se como o início da Criação de Deus, o primeiro dos Seus antigos Atos. Na história inicial da interpretação deste versículo, a Sabedoria Personificada foi identificada com a Torá. A Celebração da Lei no Livro de Baruc não deixa dúvidas sobre a verdadeira natureza da Sabedoria:


"Quem jamais encontrou sua morada, e penetrou em seus domínios? Onde estão os chefes das nações que domavam os animais da terra, e brincavam com as aves do céu, que entesouravam prata e ouro, em quem os homens confiavam, e cujos bens são inesgotáveis? Onde estão aqueles que trabalham a prata com dificuldade? Nada resta de suas obras. Desapareceram, desceram à habitação dos mortos, e outros subiram ao lugar deles; os mais jovens viram o dia e habitaram a terra; não descobriram, porém, o caminho da Sabedoria, nem conheceram a senda que a ela conduz. Também seus filhos não a alcançaram e longe permaneceram de seu caminho. Dela não se ouviu falar em Canaã nem foi vista em Temã. Mesmo os filhos de Agar, à procura de prudência terrestre, e os negociantes de Mercã e Temã, os amigos de Provérbios e os desejosos de Prudência, não puderam conhecer o caminho da Sabedoria, nem dela obter informações sobre sua pista. Ó Israel, quão imensa é a Casa de Deus; como é vasta a extensão de seus domínios! Sim, é vasta, imensa, ampla, ilimitada. Lá nasceram os famosos gigantes antigos, de estatura imensa e alma de guerreiros. Não os escolheu Deus, nem lhes mostrou o caminho da Sabedoria. E por falta de sagacidade pereceram, vítimas da própria estultícia. Quem escalou o Céu a fim de procurar a Sabedoria, e a trouxe para baixo das nuvens? Quem atravessou o mar para encontrá-la, e a adquiriu, a preço de ouro mais puro? Ninguém conhece o caminho que a ela conduz, nem sabe a pista que lá o possa levar. Somente Aquele que tudo sabe a conhece, e por efeito de Sua prudência a descobre; Aquele que criou a terra para tempos que não findam; aquele que de animais a povoou; Aquele que lança o relâmpago e o faz brilhar, que O chama e Ele, bramindo, obedece. Brilham em seus postos as estrelas e se alegram; e as chama, e respondem: 'Aqui estamos'. E jubilosas refulgem para o seu Criador. É Ele o nosso Deus, com Ele nenhum outro se compara. Conhece a fundo os caminhos que conduzem à Sabedoria, galardoando com ela Jacó, seu servo, e Israel, seu favorecido. Foi então que ela apareceu sobre a terra, onde permanece entre os homens. Ela é o Livro dos Mandamentos Divinos e a Lei (νόμος [Nomos]) que subsiste para todo o sempre. Todos aqueles que a seguem adquirirão a vida, e os que a abandonam morrerão."(Baruc 3,15-38; 4,1)

Os textos ressoam ecos bíblicos: o tema do lugar secreto e inacessível da Sabedoria aparece em Jó 28 (cf. Eclo 1,6), e o da fuga para o Céu e da viagem além-mar para encontrar a Lei vem de Deuteronômio 30,11-14 (cf. Eclo 24,4). A originalidade do hino de Baruc consiste na combinação destes temas. A Sabedoria (Sophia/Chokhmah de Deus) foi, para citar o Pe. Joseph Bonsirven, outro nome dado pela Sinagoga á Torá³⁰:


"Procuremos primeiro determinar o significado exato desta palavra prestigiada e quase intraduzível: Torá. Vários estudiosos contemporâneos, judeus ou apologistas do Judaísmo, protestam contra a tradução, universalmente adotada desde a LXX: Νόμος ("Nomos"), Lei³¹: diga-se: instrução, ensino religioso, comunicando a Revelação Divina e destinada tanto a esclarecer as inteligências como 'dirigir a vida'. Estas observações contêm um elemento de verdade; acreditamos, no entanto, que o significado principal e predominante da Torá é o de regra prática, de Lei: isto parece-nos resultar: do uso mais antigo da palavra³², do seu significado mais usual no uso rabínico³³, finalmente equivalentes substituído pelos tradutores gregos, que perceberam com muita precisão, especialmente os tradutores do Pentateuco, as nuances de significado que as palavras hebraicas querem marcar.³⁴
Uma das impressões mais claras deixadas pelo comércio da Literatura Rabínica é o enorme lugar que a Torá ocupa ali: em uma quantidade de textos bíblicos descobrimos alusões à Torá, vemos-na representada em uma infinidade de características e símbolos, é objeto de constante preocupação, de culto fiel: das máximas tradicionais, consideradas dignas de memória e conservação, o Pirkei Abbôt, o maior número diz respeito ao direito e ao seu estudo. Um Cristão muitas vezes tem a sensação de que para os rabinos a Torá é, em grande parte, o que Cristo é para si mesmo.
Essa primazia fica evidente, significativamente, no movimento que, aos poucos, substitui a Torá pela Sabedoria e a investe de todas as funções desta criatura de Deus, primeira e privilegiada. Este movimento marca um ponto de viragem na evolução do Judaísmo: a vitória crescente, então definitiva, do nomismo e da nomocracia. Este movimento começa a tomar forma em Sirac: para Ele, a Sabedoria ainda representa uma entidade superior e uma ciência e quase uma Hipóstase Divina: o Sábio tira o seu conhecimento da Lei sobre a qual medita, mas também das suas experiências e das dos seus antecessores e contemporâneos (24,22-27; 39,1); é o espírito tradicional dos discípulos da Sabedoria. Porém, para ele a Sabedoria está intimamente aliada ou mesmo identificada com a Lei.³⁵ Depois dele esta identificação é total e absoluta: A Lei é a fonte de toda ciência: 'por ela aprendemos com respeito as coisas Divinas e humanas'.³⁶ Para os rabinos, a Sabedoria é a Ciência da Torá³⁷: eles próprios se autodenominam 'os Sábios' ("Chakhminu" [חכמינו]). A identificação e a passagem se completam quando a Torá assume ao lado de Deus, como Conselheira e Arquiteta da Criação, o lugar e o papel da Sabedoria."
- Pe. Joseph Bonsirven, "Le Judaïsme Palestinien au temps de Jésus-Christ: sa Théologie", Vol. I., "La Théologie Dogmatiqie, Deuxiême Edition", Gabriel Beauchesne et ses fils editeurs a Paris, 1934, páginas 248-249.

As especulações sobre a natureza e origem do Livro Sagrado refletem os principais elementos da mitologia babilônica das estátuas de culto. Tal como a Torá, o ídolo tem a sua origem numa época distante, anterior à nossa cronologia habitual; sua verdadeira origem está no céu. Tanto o Livro Sagrado quanto o ídolo estão envoltos em mistério. A forma dos deuses é um piristu, um segredo, como dizem os babilônios. O deus teve que revelar (kullumu) seus traços para que os artesãos pudessem moldar sua imagem. A Sabedoria, identificada com a Torá, não pode ser alcançada pelos mortais comuns; o seu lugar é desconhecido, por isso Deus deve revelá-la à humanidade. Tanto para o Ícone como para a Torá é apropriado falar de uma revelação do Céu. A Torá desceu do Céu; como ninguém foi capaz de subir ao Céu para trazer a Torá, o próprio Deus teve que entregá-la ao Seu povo. Contudo, o lar definitivo da estátua e da Torá permanece no Céu: no final, a imagem que vemos, assim como o Livro que lemos, são cópias dos originais.


A comparação entre a mitologia das imagens e a Mitologia da Torá traz à tona uma analogia mais fundamental do que a diferença entre uma imagem e um livro. Independentemente da escolha do meio, o símbolo do sagrado serve como a encarnação de um segredo extraterrestre. Embora não seja puramente arbitrária, a natureza do símbolo é menos importante do que o simples facto da sua existência. Os crentes só poderão lidar com a substituição da estátua pelo livro se estiverem convencidos de que o Livro, tal como o Ícone, veio de um mundo além, superior ao seu e inacessível aos mortais. Isto explica por que as mitologias que cercam os símbolos do sagrado são muito mais semelhantes entre si do que os símbolos que legitimam. Não seria difícil mostrar que os mesmos temas mitológicos também foram aplicados na teologia do Evangelho de João ao Logos Divino, e na teologia muçulmana ao Alcorão.


§. O Deus Noético: A transcendência Divina como razão para a Iconoclastia no Judaísmo


Se é verdade que a Imagem é o Livro para os que não os lêem, é bem verdade que o Livro seja a Imagem para os que não as vêem. Tanto o Livro quanto a Imagem têm sua importância enquanto informacionais; se Deus substituiu a imagem pelo Livro, era porque as imagens esculpidas eram preteridas em face das Imagens mentais, ou suas ideias. Tudo que leva para fora do Texto (ou melhor, do "Deus sob forma de Texto"), mesmo aquilo que é Sagrado, é rejeitado. Deus, no Texto da Lei, se distingue de todos os outros deuses do mundo.


"Em uma religião anicônica, na ausência de imagens, o jogo da analogia provavelmente favoreceria a arquitetura e até mesmo a tornaria um meio privilegiado de ensino. Levítico segue uma tradição literária que considerava o alfabeto não como um meio convencional de comunicação, mas como um dom Divino. Letras e radicais de palavras foram respeitados como existências independentes. Escrever não consiste em fazer representações de algo com palavras; as letras são as coisas em si mesmas nas quais os significados são projetados. Segue-se que a projeção de um edifício em um livro ou uma Montanha em um edifício não infringe a Lei contra as Imagens. Ao mesmo tempo, essas pessoas faziam trocadilhos e gostavam de acrósticos, de modo que apreciaram o elemento da convenção na escrita. A Lei contra as imagens e a Iconização das letras se equilibrou. Quando a Bíblia proibia imagens gravadas ou fundidas, as palavras eram cuidadosamente escolhidas. Não proibia Imagens mentais nem verbais. As projeções espaciais sobre corpos e objetos não levantam o espectro da idolatria. Elas não seduzem os olhos ou competem com o pensamento de Deus pela atenção do adorador. (...) Levítico é um Texto Sagrado desenhado nas proporções de um Templo. A entrada e os compartimentos proporcionam uma estrutura tipo jornada e a arquitetura fechada prepara o final. Tal mudança está em perfeita consonância com a cultura judaica, onde a palavra sempre teve privilegio em face da realidade."
- Mary Douglas, "Leviticus as Literature", Oxford University Press, 2000, página 57.

Platão, como se sabe, usou o conceito de Imagem antes de tudo para depreciar o Mundo da experiência Sensorial e para distingui-lo nitidamente do Mundo das Idéias. Quando ele diz no Fedro,³⁸ "são poucos os que vão até as imagens e contemplam nelas aquilo que as imagens expressam", ele dá a entender que as chamadas coisas reais são apenas imagens de suas formas ou Idéias verdadeiramente reais. Ora, a arte para Platão é uma imitação da natureza, e se as próprias coisas naturais têm apenas uma realidade secundária e uma dignidade, segue-se que as obras de arte ficarão ainda mais baixas na escala dos valores verdadeiros. E uma vez que o artista copia não apenas coisas da natureza, mas também as coisas feitas pelo homem, a mimesis ou a imitação pela arte podem ser chamadas três vezes afastadas da verdade:

"A arte da imitação é então um inferior que se casa com um inferior e tem descendência inferior".³⁹

Não apenas as Imagens, como o próprio Templo, estavam portanto na Imaginação.


"O Livro é um pouco como um texto de peregrinação. Os fiéis fazem uma viagem de comemoração a um Santuário e percorrem-no tendo o Livro Sagrado como guia, pronunciando as palavras, marcando com seus passos o próprio lugar da Criação, ou pelo menos um espaço atribuído por Deus para representar o Seu Ato de Criação. De volta aos problemas da representação, tudo está ocorrendo na mente do peregrino do século VI ou V, após a primeira destruição do Templo. Não há Tabernáculo, os fiéis não se movem nele; todo movimento está no Livro que estão lendo ou escutando. Aprender o livro torna-se uma forma de internalizar o Tabernáculo: sugere uma forma de 'geografia espiritual' que distingue o Tabernáculo espiritual do Tabernáculo físico, da mesma forma que a Jerusalém espiritual se distinguia da Jerusalém física no centro do mundo. Ao mesmo tempo, circulando pelo Tabernáculo com o livro, eles também circulam pelo Monte Sinai, e até têm acesso a partes dele que só Moisés tinha."
- Ibid., páginas 229-230.

Na verdade, mesmo o Primeiro Templo também era um lugar na Imaginação, e por isso, mais Sagrado e Real do que qualquer lugar Santo no mundo.


A Imaginação constitui um instrumento de cognição, porque nos revela, de forma inteligente e coerente, os modos do real. Uma vez constituído, o símbolo é investido de uma dupla função: "existencial" e "cognitiva". Por um lado, um símbolo unifica vários setores da realidade (o simbolismo aquático, por exemplo, revela a solidariedade estrutural entre Água, Lua, devir, vegetação, feminilidade, germes, nascimento, morte, renascimento, etc.). O símbolo está sempre aberto, no sentido de que é capaz de revelar significados "transcendentes" que não são evidentes na experiência imediata. Por exemplo, os ritos do Batismo revelam um plano do real diferente do biocósmico (nascimento-morte-renascimento): revelam o "Nascimento Espiritual", o renascimento para um modo de ser Transcendente (Salvação).⁴⁰ O símbolo aquático não é apenas uma fidelidade a um temperamento fundamentalmente onírico, mas também um meio de intuir o real na sua totalidade, porque revela a unidade fundamental do Cosmos. Um símbolo torna-se autônomo no momento em que se constitui como tal, e a sua polivalência ajuda-nos a descobrir homologias entre diferentes modos do nosso ser – homologias que a simples imaginação da Matéria não poderia tornar possíveis.


A Imaginação não é, como sugere a sua etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar Imagens que vão além da realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade sobre-humana, e um homem é um homem na medida em que é sobre-humano. Ele deve ser definido pela soma das tendências que o impelem a superar a condição humana. Uma psicologia da mente em ação é automaticamente a psicologia de uma mente excepcional, de uma mente tentada pela exceção, a nova imagem enxertada na antiga. A Imaginação inventa mais do que objetos e Dramas — ela inventa uma nova vida, um novo espírito; abre olhos que abrigam novos tipos de visões. A Imaginação só verá se tiver "visões" e só terá visões se os devaneios a educarem antes das experiências, e se as experiências seguirem como símbolo dos devaneios.


"As experiências mais ricas acontecem muito antes da Alma perceber. E quando começamos a abrir os olhos para o visível, já somos defensores do invisível há muito tempo."
- D'Annunzio, "Contemplazione della Morte", Fratelli Treves Editori, Milano, 1912, páginas 17-18.

§. Evangelho como Culminação de Todos os Mitos na Realidade Histórica

"Assim como o Mito transcende o pensamento, a Encarnação transcende o Mito. O Coração do Cristianismo é um Mito que também é um Fato. O velho Mito do Deus Moribundo, sem deixar de ser Mito, desce do Céu da Lenda e da Imaginação para a Terra da História. Acontece – numa data específica, num local específico, seguido de consequências históricas definíveis. Passamos de um Balder ou de um Osíris, morrendo ninguém sabe quando ou onde, para uma Pessoa Histórica Crucificada (está tudo em ordem) sob Pôncio Pilatos. Ao tornar-se realidade não deixa de ser Mito: esse é Milagre. Suspeito que os homens às vezes obtiveram mais sustento espiritual de mitos nos quais não acreditavam do que da religião que professavam. Para sermos verdadeiramente cristãos, devemos ao mesmo tempo concordar com o Fato Histórico e também receber o Mito (embora ele tenha se tornado um Fato) com o mesmo abraço imaginativo que concedemos a todos os mitos. Um não é mais necessário que o outro… Não devemos ter vergonha do brilho mítico que repousa sobre a nossa teologia."⁴¹

Numa visão Transcendental da realidade, o Mito é capaz de transmitir uma beleza tirada da Eternidade. A doutrina da Criação postula que a ordem criada reflete a Beleza intrínseca ao Ser de Deus, pois a Criação é a Sua "Obra de Arte". O ser humano, feito à Imagem e Semelhança de Deus, pode perceber a luz Transcendental dentro da Criação e, assim, contemplar as obras da Imaginação de Deus.


A compreensão Mítica do mundo vê o mundo inteiro como uma Teofania Sagrada. Num sentido Escatológico, isto é também o que o Mundo é para a Fé Cristã. Se o Cosmos como um todo foi criado à Imagem de Deus que aparece – no Primogênito da criação, através Dele e para Ele – e se este Primogênito habita o mundo como sua Cabeça através da Igreja, então em última análise, o Mundo é um 'Corpo' de Deus, que se representa e se expressa neste Corpo, com base no princípio não da união Panteísta, mas da união Hipostática. Se o primeiro Adão é senhor do mundo apenas como sendo simultaneamente seu fruto, então no segundo Adão esta qualidade genuína de ser fruto e originar-se de dentro é superada pelo ato livre de sua Encarnação. Enquanto o primeiro Adão permanece aberto e acessível às forças do Caos informe por ser fruto do mundo, o segundo Adão venceu desde o início essas forças do Caos através da liberdade do seu amor. Aquilo que é em si sem forma deve submeter-se ao Seu poder modelador, e a própria rebelião deve dobrar os joelhos com o resto do Cosmos. Mas na Sua forma definitiva Ele assume em Si todas as formas da Criação. A forma que Ele imprime ao mundo não é tirânica; confere completude e perfeição além de qualquer coisa imaginável.
Isto vale para as formas da natureza, sobre as quais não podemos dizer (como na Escatologia Medieval) que em algum momento simplesmente desaparecerão, deixando um vácuo entre a Matéria pura e o homem, que é um fruto microcósmico da natureza. Na verdade, é somente no homem que a natureza eleva seu semblante à região da Eternidade; e, no entanto, a mesma Natura Naturans que no final dá origem ao homem é também a Natura Naturata, e toda a plenitude de formas que a Imaginação da Natureza Divina produziu pertence analiticamente à natureza do homem."
- Hans Urs von Balthasar, "Glory of the Lord" Volume 1, T&T Clark Edinburgh, 1982, página 679.

A Arte Criativa de Deus encontra o seu ápice nesta Beleza Suprema: a Encarnação de Cristo. Assim como a Beleza é encontrada quando o Transcendente se revela através do Material, também a plenitude da Beleza absoluta é encontrada quando o Criador transcendental se revela através da forma Material de um Ser Humano. Como tal, a Encarnação de Cristo é o próprio ápice e arquétipo da Beleza no mundo. A Plenitude do Ser de Deus expressada na Encarnação é a Arte Arquetípica de Deus à qual aspiram todas as outras belezas.⁴² A qualidade comovente do Mito deriva da mesma Realidade Transcendental que o Evento de Cristo Incorporou. Os antigos mitos da humanidade aspiravam a uma verdade que um dia entraria na história no plano material.


O Evento Cristo foi a expressão histórica última da verdade mítica, a Realidade Transcendental feita Carne. Este evento tem elementos de conto de fadas, que vão desde uma consistência narrativa interna, à arte mítica, até à súbita e alegre eucatástrofe.


O Evento de Cristo difere dos mitos, entretanto, pois "esta história entrou na História e no mundo primário".⁴³ Se todo Mito poderoso se baseia na Realidade Transcendental, então a Encarnação de Cristo é a culminação e o cumprimento dessa Realidade. Tal foi o significado do Evento de Cristo que sua realidade foi antecipada em toda a ordem criada. Dado que Deus é o Criador Transcendental, Sua Natureza Eterna está presente dentro da Lei e da estrutura da realidade; portanto, reflete-se no mundo natural, na história, na cultura e nas "subcriações" da humanidade. A Encarnação de Cristo, contudo, não foi apenas um reflexo da Natureza Eterna de Deus, mas a Sua Encarnação Primordial. Deus, como o Autor Transcendental da Criação, criou um Mito para ser atualizado dentro da realidade histórica.⁴⁴ A Beleza é contemplada quando alguém encontra o Eterno dentro do transitório, e "brilha uma 'Luz' que parece anterior ao próprio pensamento."⁴⁵ Desta profundidade brilha uma luz que ilumina a razão e arrebata o ser interior, uma qualidade presente na eucatástrofe.


§. Deus Revestido de Letras e Deus Revestido de Carne.

Χριστὸν Θεοῦ σοφίαν (Christon Theou Sophian [C.f. 1Cor 1,24])


A divisão histórica que separa os textos da tradição rabínica da literatura sapiencial torna qualquer comparação necessariamente especulativa. Existem, no entanto, tradições intelectuais mais contemporâneas que empregam a ideia da Escritura personificada e instrutiva - nomeadamente, a tradição Patrística de Cristo como Professor, denominada Christos Didaskalos (Χρίστος Διδάσκαλος), examinada por Friedrich Normann.⁴⁶ De acordo com Normann, a tradição Christos Didaskalos tem suas raízes em uma série de passagens importantes do Novo Testamento, como a caracterização de Jesus como o Professor com Autoridade (Exousian [ἐξουσίαν]) em Marcos 1,27, a declaração de Jesus às multidões e aos Seus discípulos de que eles "têm um só Mestre (Didaskalos [διδάσκαλος])" (Mt 23,8), e a afirmação de Jesus; "A Minha Doutrina (Didache [διδαχὴ]) não é Minha, mas Daquele que Me enviou" (Jo 7,16). A partir desses versículos desenvolveram-se referências dispersas a Cristo como Professor ("Didaskalos"), e Normann apresenta uma riqueza de passagens da literatura epistolar de Paulo, Clemente de Roma, Inácio e Policarpo. Estes pensadores, contudo, não incorporam o papel de Jesus como Professor em estruturas teológicas mais amplas e, portanto, não podem ser considerados representantes de uma tradição madura do Christos Didaskalos. O mais próximo que se chega é a declaração de Clemente de Roma de que "A Fé em Cristo garante todas essas coisas. Com efeito, é Ele que nos convida, por meio do Espírito Santo: 'Vinde, meus filhos, ouvi-me: Eu vos ensinarei (Didaxo [διδάξω]) o Temor do Senhor.' (Sl 33,12)".⁴⁷ Esta afirmação retrata Cristo como um Professor preexistente, mas, como observa Normann, este conceito não é mais desenvolvido nos escritos de Clemente de Roma.⁴⁸ É apenas com os escritos de Justino Mártir do século II que a tradição do Christos Didaskalos ganha vida, e atinge seu auge logo depois, com Clemente de Alexandria, que é o objeto da análise a seguir.


Clemente de Alexandria (150 - 215 a.C.) foi chefe da Igreja Catequética em Alexandria. Suas principais obras literárias são o Protreptikos (Exortação aos Pagãos), o Pedagogo (Instrutor) e o Stromata ("Tapeçarias" ou "Miscelâneas"). As duas primeiras obras fazem aparentemente parte de uma trilogia cujo terceiro volume seria "O Didaskalos" ("O Mestre"), o culminar planeado de um processo educativo: primeiro uma exortação aos Pagãos para aceitarem a Cristo, seguida pelas lições do Pedagogo, o propedêutico instrutor e, finalmente, os ensinamentos mais complexos do Didaskalos. O último livro nunca foi composto e muitos de seus ensinamentos chegaram ao Stromata. Mas o plano original dos escritos de Clemente reflete duas das suas convicções fundamentais: que a perfeição religiosa é uma questão de educação e que o Cristão ideal é também o verdadeiro Gnóstico, o verdadeiro conhecedor. Segundo Clemente, o caminho para a perfeição religiosa envolve a aquisição do Conhecimento Divino – e assim o Cristão é chamado a dominar a Gnose (Conhecimento) transmitida à humanidade por Deus ou, mais precisamente, pelo Logos.⁴⁹


Este processo educativo culmina no conhecimento transmitido por Cristo no Evangelho. Mas a Revelação do Evangelho não é um salto inesperado, mas faz parte de um processo educativo que reconhece dois precedentes significativos, embora em última análise mal sucedidos: a filosofia grega e o Antigo Testamento. O papel da filosofia é menos importante para o presente estudo e não será discutido em detalhe;⁵⁰ em vez disso, o foco está na compreensão de Clemente da Bíblia Hebraica e sua relação com o Novo Testamento.


Clemente enfatiza a continuidade do Antigo e do Novo Testamento. Para Clemente, a Bíblia Hebraica é uma ferramenta educacional de autoria do Logos como parte de Sua Missão de instruir a humanidade.⁵¹ Pois o Instrutor não é outro senão o Logos, como Clemente afirma claramente na abertura de "O Pedagogo". "Vamos então designar este Logos apropriadamente pelo nome de Pedagogo".⁵² Como tal, Clemente refere-se regularmente à autoria do Logos da Bíblia Hebraica ao introduzir citações bíblicas: "O Pedagogo disse pela voz de Moisés".⁵³ O papel do Logos como autor das Escrituras é abordado explicitamente mais adiante no mesmo livro:


"A Lei ("Nomos", isto é, a Torá) é a antiga Graça que o Verbo deu aos homens pelo ministério de Moisés. Observemos a maneira pela qual a Escritura exprime-se sobre este assunto: 'Pois a Lei foi dada através de Moisés' (Jo 1,17), não por Moisés; pelo Verbo, do qual Moisés era o servidor e o enviado”.
- "Pædagogi Lib. I.", Cap. VII. (PG 8,321)

Ao enfatizar a autoria da Torá pelo Logos, Clemente une o Antigo e o Novo Testamento como duas obras do mesmo autor e elementos gêmeos em um único processo educacional.⁵⁴. Clemente volta repetidamente à Comunhão dos dois Testamentos. Sua mensagem teológica aberta é a mesma - "Um Deus e Senhor Onipotente para ser verdadeiramente pregado pela Lei e pelos Profetas, e além disso pelo Bendito Evangelho"⁵⁵ - e eles contêm o mesmo significado interno desde que "Lei, Profetas e Evangelho convergem em um Conhecimento (γνῶσις [Gnosis])."⁵⁶ No entanto, a origem comum e a unidade pedagógica dos dois testamentos não podem obscurecer as importantes diferenças de estatuto que cada um desfruta dentro do sistema teológico mais amplo de Clemente. A Bíblia Hebraica é meramente propedêutica. Seu papel é inculcar o comportamento correto e lícito entre os filhos de Israel, abrindo o caminho para o aparecimento de Cristo, o Logos Encarnado:


"Mas visto que Deus considerou vantajoso que da Lei e dos Profetas os homens recebessem uma disciplina preparatória pelo Senhor, o temor do Senhor foi chamado de Princípio da Sabedoria, sendo dado pelo Senhor, através de Moisés, aos desobedientes e aos duros de coração. ... (O) Logos iInstrutivo, prevendo desde o início e purificando por cada um desses métodos, adaptou o instrumento adequado à piedade."
- "Stromatum Lib. II.", Cap. VIII (PG 8,972-973).

A Torá desempenha um papel crítico na educação de Israel, mas a Torá por si só não é suficiente para levar Israel à redenção. O comportamento correto é necessário, mas não o fim último da Instrução de Deus, como deixa claro a seguinte passagem:


"Quem então é perfeito? Aquele que professa abstinência do que é mau. Bem, este é o caminho para o Evangelho e para o bem-fazer. Mas a perfeição gnóstica no caso do homem legal é a aceitação do Evangelho. (...) Ora, no Evangelho o Gnóstico alcança proficiência não apenas fazendo uso da Lei como um degrau, mas também compreendendo-a e entendendo-a."
- "Stromatum Lib. IV.", Cap. 21 (PG 8,1341).

Nesta passagem, Clemente distingue entre dois níveis de perfeição. A Bíblia Hebraica ensina uma vida adequada e, como resultado, o homem legal – o homem do Nomos, ou Torá – atinge um certo grau de perfeição, que decorre da "abstinência do que é mau". Mas existe uma perfeição superior, que requer a compreensão das Escrituras, e a Bíblia Hebraica é incapaz de levar o leitor a essa perfeição. Como instrução legal, a Bíblia Hebraica tem sucesso, mas como instrução gnóstica – como Professora do Conhecimento Divino – ela falha. Este fracasso é, prima facie, paradoxal. O Antigo Testamento, não menos que o Novo, é de autoria do Logos para transmitir à humanidade as Verdades Divinas, e a proficiência Gnóstica é alcançada "pela compreensão e entendimento". Por que, então, falha em comunicar essas verdades? Por que, em outras palavras, é necessária uma segunda Revelação?


Como explica Clemente, o fracasso da Bíblia Hebraica não é resultado de deficiências teológicas, mas de deficiências hermenêuticas. Como texto, a Bíblia Hebraica é clara e instrutiva em questões de comportamento e conduta, mas falha em comunicar claramente a sua Gnose Divina porque apresenta o seu ensino gnóstico em Enigmas e Mistérios. A natureza enigmática da Bíblia Hebraica não é extrínseca à sua Missão, mas necessária pela lógica interna do texto:


"Por muitas razões, então, as Escrituras ocultaram o sentido. Primeiro, para que nos tornemos curiosos (...) Então não era adequado que todos entendessem, para que não sofressem dano por falarem em outro sentido das coisas declaradas para a Salvação pelo Espírito Santo. Portanto, os Santos Mistérios das Profecias estão velados nas parábolas – preservados para os homens escolhidos".
- "Stromatum Lib. VI.", Cap. XV. (PG 9,349).

Clemente prossegue enumerando uma longa lista de razões para a obscuridade do Antigo Testamento, cujos detalhes não são importantes para a presente discussão.⁵⁷ Seja qual for o mérito destas justificações, a questão chave é que a obscuridade ou opacidade hermenêutica do Antigo Testamento explica a necessidade do Novo Testamento. As dificuldades hermenêuticas tornam necessária a "Nova Canção do Logos", na qual o Logos que fora "Anjo" agora se torna Carne.⁵⁸ A transformação do Logos de "Anjo" em Carne – paralelamente à mudança do Antigo para o Novo Testamento – não é substancial: o Logos é o mesmo em ambos os casos. Mas o Logos Encarnado, agora em forma humana, permite um novo nível de intimidade e imediatismo com a humanidade e, portanto, uma relação educativa mais direta. Certamente, a nova manifestação do Logos é antes de tudo a sua manifestação física na Pessoa de Jesus Cristo. Mas juntamente com esta transformação física, há também uma Manifestação – uma Manifestação do significado anteriormente oculto da Bíblia Hebraica.


"A ideia de uma destruição total da Imagem Divina com a Queda não está inequivocamente presente em nenhum lugar.⁵⁹ Não era, na tradição judaica, uma leitura natural do Pentateuco. O que os rabinos descrevem, no entanto, é uma diminuição, um obscurecimento e uma suspensão da capacidade do homem de ser a Imagem de Deus, sempre que o pecado real se apodera da sua vida - o que acontece com muita frequência. Em locais onde não eram alimentadas expectativas vivas de uma nova auto-revelação Divina no mundo do homem, havia, talvez, uma tendência a reduzir o significado da Imagem que o homem tem de Deus a termos puramente éticos. A metáfora corre o risco de se tornar uma mera rubrica para 'a dignidade do homem', 'Quem despreza um homem', diz um logion atribuído ao Rabino Tanchuma, 'deve perceber que aquele a quem ele despreza, Deus fez à Sua Imagem.'⁶⁰ Jakob Jervell, em sua pesquisa da literatura existente sobre a 'Imagem de Deus' no Judaísmo tardio, interpretou a evidência um tanto fragmentária como significando que na corrente principal do pensamento rabínico a Imagem havia de fato sido colocada em perigo ou mesmo temporariamente perdida por Adão, mas foi restaurada pelo menos como possibilidade, pela dádiva da Torá no Sinai.⁶¹ Estudos mais recentes sugerem que a função das teologias do Sinai e da Torá nas tradições que ele discute é antes explicar como o homem deve viver agora se Deus lhe conceder no futuro a vida Eterna e com isso o pleno brilho da Imagem Divina.⁶² A nova natureza, redimindo os homens do mal da Era presente, permanece sempre uma dádiva da Era vindoura, apesar de depender, para qualquer indivíduo, de uma vida de obediência à Torá. Visto que o motivo da Imagem e o motivo de Adão estão intimamente relacionados na exegese judaica, temos razão em dizer que era um ensino comum no mundo onde o Novo Testamento nasceu que, através da Lei, o judeu não poderia permanecer na condição do homem na Imagem Divina no sentido pleno previsto tanto pelos rabinos quanto pelos apocaliptistas, mas ele poderia preparar-se para receber essa Imagem no novo mundo a ser trazido por Deus (...)
Aos olhos de Paulo, as Imagens de Deus apeladas na sabedoria judaica e nos escritos apocalípticos não eram tão falsas quanto ultrapassadas.⁶³ Deixar de reconhecer que em Jesus Cristo Deus havia sido Revelado numa Imagem única, definitiva e devastadora em sua esmagadoraza era, na melhor das hipóteses, lamentável e, na pior das hipóteses, infidelidade à verdade percebida. O cerne do contraste de Paulo entre a visão Cristã e a opacidade dos irmãos em Colossos reside na sua consciência de Jesus como a Imagem totalmente adequada do Ser de Deus, enquanto os Anjos, os espíritos presidentes do Cosmos venerados em Colossos, eram apenas uma hierarquia de comunicação e revelação limitadas entre Deus e o homem. Paulo supõe, junto com muitos judeus contemporâneos, que os anjos mediaram o dom da Lei Mosaica.⁶⁴ Nos dias anteriores à sua visão do Cristo exaltado na estrada de Damasco, ele teria, sem dúvida, compartilhado a visão rabínica comum de que a Torá é um remédio parcial, mas apenas parcial, para a perda do poder ativo de Adão, para ser a auto-revelação de Deus no mundo. Como convertido à nova Fé, ele deu expressão clássica às deficiências da Lei em qualquer reparação do que foi perdido com Adão em sua Carta aos Romanos. Paulo mostrou ali que tentar usar a Torá Mosaica como forma de Salvação era aplicá-la incorretamente. Tentar colmatar o abismo entre Deus e o homem do lado de Deus através da Lei é bater no ar, pois todo o objetivo da Lei é revelar a necessidade de um ato novo e criativo de Deus para com o homem. Este ato ocorreu em Cristo, para que a humanidade possa viver a partir de então pela 'Lei' (isto é, o modo de vida, o regime pessoal e corporativo) do Espírito de Vida em Cristo Jesus (Rm 8,2). Da mesma forma, aqui em Colossos, onde ele se depara com uma face bastante diferente do judaísmo polimorfo de sua época, Paulo conclui que se a personificação Perfeita de Deus no ser humano apareceu em uma Imagem excepcionalmente privilegiada, Jesus Cristo, então toda a era do relacionamento com Deus através da Torá acabou e estava finalizada."
- Pe. Aidan Nichols, "The Art of God Incarnate", Paulist Press, New York/Ramsey, 1980, páginas 31-37.

Eis como Clemente caracteriza a força hermenêutica do Advento de Cristo:


"(João Batista) disse: 'Não sou digno de desatar a lingueta do sapato do Senhor' (Mc 1,7).... Talvez isto significasse o esforço final de o poder do Salvador para conosco - o imediato, quero dizer - que por Sua presença, oculta nos enigmas da Profecia, na medida em que ele, apontando para ver Aquele que havia sido Profetizado, e indicando a Presença que havia vindo, caminhando adiante para a luz, soltou o trinco dos oráculos da (velha) Economia, ao desvendar o significado dos Símbolos."
- "Stromatum Lib. V", Cap. VIII (PG 9,85).

Clemente afirma ainda:


“Devemos saber, então, que se Paulo é jovem em relação ao tempo - tendo florescido imediatamente após a ascensão do Senhor - ainda assim seus escritos dependem do Antigo Testamento, respirando e falando deles. Pois a Fé em Cristo e a Gnose (γνῶσις) do Evangelho são a explicação e o cumprimento da Lei. (...) a menos que você acredite no que está Profetizado na Lei, e entregue oracularmente pela Lei, você não entenderá o Antigo Testamento, que Ele por Sua vinda expôs."
- "Stromatum Lib. IV.", Cap. XXI (PG 8,1345).

Como estes textos sugerem, a força explicativa do Advento de Cristo é - num nível muito básico - o resultado direto e necessário do estatuto da Bíblia Hebraica como um texto prefigurativo: a Bíblia Hebraica prediz enigmaticamente a vinda de Cristo, portanto a vinda de Cristo torna manifesto o significado dessas declarações. A este respeito, o Advento de Cristo esclarece o Antigo Testamento da mesma forma que a derrota de Creso nas mãos dos Persas esclareceu o pronunciamento do Oráculo de Delfos de que, ao atacar a Pérsia, Creso "destruiria um grande império" - o seu próprio, como foi dito. acabou. Mas o Novo Testamento não é apenas um registo factual do aparecimento Histórico de Cristo; contém uma Mensagem Divina, um Evangelho que ensina Fé e Perdão. O Logos não se tornou Carne por Si só, mas para melhor ensinar à humanidade a Verdade Gnóstica escondida na Bíblia Hebraica. Neste sentido, o Advento de Cristo é um evento hermenêutico que revela não apenas o fato do Advento de Cristo, mas também os enigmas e os símbolos da Bíblia Hebraica.


Para Clemente, então, o Novo Testamento é um registro da Encarnação do Logos na pessoa de Cristo e, ao mesmo tempo, os ensinamentos do Logos encarnado e, portanto, uma manifestação da Mensagem Educacional Divina do Logos. Tanto Cristo como o Novo Testamento manifestam os ensinamentos do Logos e, portanto, a aparição de Cristo e o Evangelho de Cristo fazem parte de uma única Mensagem Divina - tanto é assim que Clemente fala da manifestação do Logos como consistindo tanto de um aspecto carnal quanto de um aspecto textual:


"João, o arauto da Palavra, rogou aos homens que se preparassem para a vinda do Cristo de Deus. E foi isso que foi significado pela mudez de Zacarias, que esperava frutos na pessoa do arauto de Cristo, para que o Logos, a luz da verdade, ao se tornar Evangelho, pudesse quebrar o silêncio místico dos Enigmas Proféticos."
- "Cohortatio ad Gentes." Cap. I (PG 8,68).

O Logos se torna o Evangelho e se torna Escritura. O Novo Testamento é, para Clemente, o Logos "Encarnado" textualmente, vindo a revelar os mistérios da Bíblia Hebraica. Quando Clemente afirma: "Este é o Cântico Novo, a Manifestação do Logos (...) pois o Logos (...) apareceu como Nosso Professor"⁶⁵, o Professor é tanto Cristo quanto o próprio Evangelho.


Neste ponto, a semelhança fundamental com a tradição rabínica torna-se aparente: ambos os escritores descrevem as Escrituras como um instrutor que vem em auxílio do leitor que luta para compreender as Escrituras. Para o Rabino Ishmael ben Elisha (Séc. I-II d.C.), a Escritura (como Ha-Katuv) vem esclarecer o significado haláquico da Escritura (Torá); para Clemente, a Escritura (como o Novo Testamento do Logos) vem esclarecer o significado Gnóstico da Bíblia Hebraica. Como fenomenologias da leitura das Escrituras, os dois relatos são estruturalmente semelhantes, quase ao ponto da homologia: o leitor das Escrituras encontra uma passagem difícil ou enigmática e não tem certeza de como interpretá-la; respondendo à dificuldade do leitor, surge uma manifestação distinta da Escritura, um instrutor que conduz o leitor à correta compreensão do texto bíblico.


Existem também diferenças significativas entre os dois modelos interpretativos. Como observado, para os judeus, as Escrituras elaboram questões jurídicas, enquanto para os Cristãos as Escrituras esclarecem o conteúdo Gnóstico do Antigo Testamento. Depois, há a questão não insignificante da identidade do Instrutor. Os rabinos sustentam que existe apenas uma Revelação Divina, a Teofania do Sinai, e como resultado a Torá dada no Sinai deve desempenhar um papel duplo como o conteúdo da Palavra de Deus e sua Interpretação - daí a dupla caracterização da Bíblia Hebraica como Torá e Ha-Katuv.


A hermenêutica Cristã postula uma segunda Revelação, pós-sinaítica, que fornece ao leitor a instrução necessária para compreender a Lei. O aparecimento de um segundo Testamento, a extensão das Escrituras para além da Bíblia Hebraica, permite a Clemente mudar a agência interpretativa para a revelação posterior e evitar bifurcar a Bíblia Hebraica, como deve fazer o Rabino Ishmael.


Observe, entretanto, que a diferença no arbítrio do ensino só surge após o Advento de Cristo. Ao discutir o ensino do Logos antes deste evento, Clemente descreve o Logos como o Autor e a Mensagem da Bíblia Hebraica. Tal como a Escritura do Rabino Ishmael e a Sabedoria de Ben Sira, o Logos é simultaneamente o Instrutor e o Conteúdo da sua instrução. Assim Clemente escreve: ''Com a maior clareza, portanto, o Logos falou a respeito de si mesmo por Oséias: 'Eu sou seu instrutor' (Os 5,2).".⁶⁶ Além disso, vale a pena notar que a terminologia de Clemente também é semelhante à do Rabino Ismael. Por exemplo, Clemente afirma que a vinda de Cristo poderia ser conhecida pelo leitor da Bíblia Hebraica antes do evento, uma vez que ἡ γραφὴ παιδαγωγήσει ("i grafi paidagogísei"), "a (Escritura) escrita irá instruí-lo.".⁶⁷ O uso de "ἡ γραφὴ" (i grafi ["o escrito"]) para Escrituras não é comum entre os primeiros escritores Cristãos. O singular ἡ γραφὴ geralmente se refere a um versículo ou frase, enquanto a forma plural αι γραφαί (ai grafai ["os Escritos"]), refere-se às Escrituras como um todo. Clemente, entretanto, usa regularmente ἡ γραφὴ como Escritura.⁶⁸ Juntamente com o predicado verbal: παιδαγωγήσει (paidagogísei ["ensinará" ou "instruirá"]). O resultado é surpreendentemente semelhante ao "O Escrito Ensina" ("Ha-Katuv Melamed" [הכתוב מלמד]) dos textos rabínicos. A questão de Cristo representa, é claro, uma fronteira teológica formidável entre o Rabino Ishmael e Clemente, mas não deve obscurecer as semelhanças hermenêuticas muito significativas.


A identificação completa e consistente do Instrutor com Cristo por Clemente marca-o como o apogeu da tradição Christos Didaskalos. A identificação do Instrutor pelos judeus com as Escrituras personificadas sugere uma tradição Nomos Didaskalos estruturalmente semelhante que a precedeu.


§. Conclusão.


"As Tábuas da Lei receberam a maior honra, por causa da escrita do Senhor que foi escrita nelas (C.f. Dt 9,10); elas eram um Ícone para a Encarnação do Verbo Deus.
Como alguém pode esquecer o maior e mais famoso Ícone, as Tábuas da Lei que foram colocadas na Arca do Senhor, nas quais estavam gravadas pelo dedo do Senhor as dez palavras que o Senhor dirigiu aos israelitas? Não era este simplesmente o Ícone da verdadeira Palavra de Deus, que se encarnaria a partir do Espírito Santo e da Virgem Maria no fim dos tempos?
A verdadeira Palavra de Deus foi simplesmente comparada a dez palavras porque a Palavra de Deus é hipostaticamente perfeita, e o número 'Dez' é o mais perfeito de todos os números, porque a numeração começa em 'um', vai subindo até chegar a 'Dez,' então ele volta para 'um' e gira sobre si mesmo indefinidamente. O dedo de Deus é conhecido como o Espírito Santo; quando Cristo Nosso Senhor diz no Evangelho: 'expulso os demônios pelo dedo de Deus' (Lc 11,20), outro Evangelista fornece a explicação, e dá no mesmo lugar como uma citação da frase de Cristo: 'é pelo Espírito de Deus que expulso os demônios' (Mt 12,28). A Arca do Senhor é Maria, em quem habitou encarnado o Verbo de Deus, que foi Divinizada. O pecado não a prejudicou, assim como a Arca era de madeira intacta, coberta de Ouro por dentro e por fora. Mas aqui não é o lugar onde é apropriado fazermos um resumo dos referentes destes ícones, ou rastreá-los até aos seus modelos, dos quais estamos bem cientes.
Devido à sua grosseria, os Judeus pensam que o que temos a dizer sobre estes sinais é conversa fiada. Ai deles, eles não entendem que, uma vez que foi provado em relação a estas coisas que elas são Ícones para outras coisas, - quando Deus disse a Moisés: 'Cuida para que se execute esse trabalho segundo o modelo que te mostrei no Monte.' (Ex 25,40) - eles então têm referentes e significados. E não se referem a um significado mais estimável do que a Economia de Cristo, que é a maior esperança para eles e para nós; toda Profecia, no conjunto de seus modos, a revela e aponta para ela.
Porque a questão é como dissemos, que a Palavra de Deus figurada nas Tábuas era apenas um Ícone para a Encarnação de Cristo, a Eterna Palavra de Deus, os Profetas costumavam curvar-se em prostração em sua presença; os levitas prostravam-se diante dela; a Nuvem da Honra do Senhor costumava freqüentá-la. Por esta razão Davi disse: 'Levantai-vos, Senhor, para vir ao vosso repouso, vós e a Arca de vossa Majestade'. (Sl 132 [131],8). Você acha, ó judeu, que houve um ato de levitação na Arca que era de madeira no momento em que alguém ordenou que ela subisse? Não! Pelo contrário, era uma referência à palavra do Anjo a José em Belém: 'Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe e foge para o Egito... Herodes vai procurar o menino para o matar'. (Mt 2,13) Então o Verbo de Deus encarnado subiu, Ele e a Arca da sua Majestade, que é Maria, e fugiu para o seu descanso no Egito, longe da indignação dos judeus contra ele, e da sua busca para matar ele. Davi mencionou Belém a esse respeito ao dizer: 'Ouvimos dizer que a Arca estava em Éfrata' (Sl 132 [131],6). E aqui está a afirmação do Profeta Isaías: 'Eis que o Senhor, montado numa nuvem rápida, vem ao Egito'. (Is 19,1).
Se você duvida que essas coisas inanimadas sejam ícones para viver a realidade, como devemos lidar com Josué, filho de Nun? Ele pegou uma grande pedra e a colocou debaixo do carvalho, diante do Senhor. Ele disse aos filhos de Israel: 'Esta pedra servirá de testemunho contra nós, porque ela ouviu todas as palavras que o Senhor nos disse; ela servirá de testemunho contra vós, para que não abandoneis o vosso Deus.' (Js 24,27) Você acha, ó judeu, que esta pedra ouviu o discurso do Senhor e testemunhou a favor Dele nos últimos dias contra os filhos de Israel? Seria uma loucura se não fosse um ícone para significar algum outro ser vivo, ouvinte e testemunhante. Portanto, é como dissemos sobre as palavras que estavam inscritas nas duas Tábuas; elas são um Ícone para a Encarnação da Palavra Eterna de Deus. Escrever não é apenas um ícone para a fala audível? Então, este é um ícone da Palavra Primordial, falante, como dissemos no início.
Ninguém deveria ficar surpreso com o judeu quando ele não entende essas coisas, porque ele é grosseiro e estúpido, como os Profetas testificaram sobre ele; a cegueira está profundamente arraigada em seu coração. Como disse São Paulo, 'até o dia de hoje, quando leem Moisés, um véu cobre-lhes o coração.' (2Cor 3,15). Pelo contrário, a surpresa é que há cristãos insanos que se afastam de fazer a oferta de prostração ao Ícone de Cristo e aos Ícones dos Santos. Estas pessoas não duvidam que o ícone que autenticamos do Antigo Testamento está de acordo com a interpretação que lhe demos. Eles acham que o Ícone antigo merece a maior honra, mas são eles que fogem de prestar homenagem aos Ícones Sagrados!"
- Teodoro Abucara, Bispo de Harrana e discípulo de São João Damasceno, em "A Treatise on the Veneration of the Holy Icons written in Arabic by Theodore Abū Qurrah, Bishop of Harrān (C.755-C.830 A.D.)", Peeters, 1997, páginas 69-72.

"(O uso do Tefilin) passou para a Igreja com a Verdadeira Religião de nossos Pais. Apenas substituiu o Nome יהוה‎ (Javé, que ficava nas faixas ou Filactérios) pela própria Imagem do Homem-Deus no momento em que Ele realizou a nossa Redenção. É assim que também representa Santos e Anjos naturalmente, enquanto você (judeu) simplesmente traça seus nomes. Permanecendo sempre o fundo o mesmo, que importa a forma do signo que desperta a idéia?
É portanto por engano, ou por malícia, que se espalhou entre o judeus comuns a opinião de que os Cristãos prestam homenagem de Adoração a Imagens de madeira, metal e outros materiais! O que você diria se fosse acusado de adorar os caracteres י, ‎ה e ו (Yod, Hê e Vav) que compõem o Venerável Nome Javé?"
- David Paul Drach, ex-Rabino convertido á Fé Católica, em "De l'Harmonie entre l'Eglise et la Synagogue, Tome Premier", Paris, 1844, páginas 18-19.

A controvérsia iconoclasta foi o primeiro debate profundo na história da Igreja sobre a natureza e função da arte religiosa e a possibilidade de uma estética Cristã. Na verdade, como sugeriu o medievalista Gerhart B. Ladner, "durante toda a Idade Média não ocorreu no Ocidente nenhuma discussão teórica das relações entre Religião e Arte quase tão vigorosa quanto a apresentada pelos teólogos gregos".⁶⁹ Essa caracterização é precisa em sua descrição da resposta ocidental à controvérsia bizantina.⁷⁰ Também se aplicaria a ambos os lados da controvérsia bizantina, tanto para os iconoclastas quanto para os iconódulas. Em contraste com a oposição às Imagens baseadas numa suposta "espiritualidade da adoração, adesão à Lei do Antigo Testamento e repulsa contra as práticas de culto das massas pagãs", a posição iconoclasta do século VIII "era baseada firmemente em argumentos doutrinários".⁷¹ E quer tenha havido ou não tanto desenvolvimento na posição dos Iconoclastas depois de 815 como alguns estudiosos sugeriram⁷², a firme confiança em argumentos doutrinários continuou a marcar tanto os Iconoclastas quanto os Iconódulas. A profundidade total dos argumentos doutrinários pode ser entendida apenas se examinarmos o que aconteceu quando a justificativa teórica dos ícones mudou dos argumentos sobre a Tradição para as provas sobre a base da cristologia, e daí ao que tem sido chamado de método "escolástico" de argumentação.⁷³


Nos estágios iniciais da contenda entre Iconoclastas e Iconódulas sobre a autoridade da Tradição, a massa de evidências explícitas dos primeiros séculos de pensamento e ensino cristão acerca de imagens parecia, sob uma leitura superficial, estar do lado dos Iconoclastas. As defesas Patrísticas da Fé Cristã, primeiro aquelas dirigidas contra o judaísmo e depois as dirigidas ao helenismo, enfatizaram consistentemente a divergência fundamental entre a adoração Cristã dada ao Deus invisível e toda forma de idolatria pagã a representações visíveis da divindade. Além disso, eles o fizeram de tal maneira que sua linguagem polêmica agora parecia, pelo menos em uma leitura leviana, aplicar-se ainda mais severamente a qualquer uso cristão da arte representativa no culto do que à prática pagã. Se esse gênero de literatura Apologética Patrística fosse tomado como a única evidência admissível do testemunho dos Padres da Igreja, os iconoclastas pareceriam ter razão ao afirmar que era sua postura inflexível contra as imagens, e não a "novidade alarmante" dos porta-vozes do culto de imagens – que fielmente representaram a voz contínua da Tradição cristã autêntica e Ortodoxa.


Mas logo ficou óbvio para todas as partes que a controvérsia não poderia ser confinada a essa classe de evidência tradicional, porque os ataques apologéticos ao culto pagão de Imagens não eram tudo o que havia na literatura Cristã Primitiva. Pois, como o historiador Georges Florovsky observa, "a iconoclastia não era apenas uma rejeição indiscriminada de qualquer arte - fosse ela religiosa ou secular. Foi antes, uma resistência a um tipo especial de arte religiosa (...) e sua marca distintiva foi, como Louis Brehier colocou recentemente, uma ênfase especial na verdade histórica (especialmente no que se refere à Pessoa de Cristo)".⁷⁴ Quando os Pais da igreja estavam diferenciando tão nitidamente entre a adoração autêntica do Deus Invisível verdadeiro e a adoração inautêntica dos falsos deuses visíveis, eles o faziam em nome de uma adoração que era dirigida também à pessoa de Jesus Cristo. Já nos séculos II e III, e depois ex professo a partir do século IV, a preocupação central do pensamento Cristão era com a legitimidade dessa forma específica de Culto. A questão fundamental era, como formulou Harnack: "O Divino que apareceu na Terra e reuniu o homem com Deus é idêntico ao Divino Supremo, que governa o Céu e a Terra, ou é um semideus?".⁷⁵


Foi o argumento Cristológico que se revelou mais eficaz na disposição do Segundo Mandamento: Deus, invisível para os judeus, poderia ser representado porque Ele assumiu a Carne e foi visto. Negar as Imagens equivalia a questionar a realidade da Encarnação de Cristo, ou assim afirmavam os defensores das imagens. A Liturgia Oriental realizada na festa das Imagens afirma:


"Aqueles que penetram nas palavras de Moisés: 'Cuidado, porque no dia em que o Senhor falou com vocês no monte Horebe, vocês ouviram o som das palavras, mas não viram a sua forma', eles sabem como responder. (...) Assim, aqueles que receberam de Deus o poder de distinguir a proibição contida na Lei e a instrução trazida pela Graça, aquela que, na Lei, é invisível, aquela que, na Graça, é visível e palpável e, por isso, razão, representam em imagens as realidades vistas, tocadas e veneradas."
- "Le Synodikon de l’Orthodoxie"; Gouillard, p. 51.

Outra refutação do Segundo Mandamento, foi a afirmação de que as imagens são o significado espiritual sob a Lei. Quem ataca as imagens por causa da antiga proibição lê a Bíblia literalmente, como fazem os judeus, perdendo a sua verdade superior. Como disse São João Damasceno,


"Irmãos, aqueles que não conhecem as Escrituras erram verdadeiramente, pois como não sabem que 'a letra mata, mas o Espírito vivifica' (2Cor 3,6); eles não interpretam o espírito escondido sob a letra."
- "De Imaginibus Oratio I.", 5 (PG 94,1236).

A referência aqui – agora vinculada à defesa das imagens – é ao argumento mais poderoso contra a antiga aliança encontrado em qualquer parte do Novo Testamento, a Segunda Carta de Paulo aos Coríntios. Desenvolvendo o relato do livro do Êxodo que descreve o rosto transfigurado de Moisés quando leu a lei a Israel, o Apóstolo avançou a natureza essencialmente espiritual do Cristianismo.


"Ele é que nos fez aptos para ser ministros da Nova Aliança, não a da letra, e sim a do Espírito. Porque a letra mata, mas o Espírito vivifica. Ora, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, se revestiu de tal Glória que os filhos de Israel não podiam fitar os olhos no rosto de Moisés, por causa do resplendor de sua face (embora transitório), quanto mais glorio­so não será o ministério do Espírito! Se o ministério da condenação já foi glorioso, muito mais o há de sobrepujar em Glória o ministério da justificação! Aliás, sob esse aspecto e em comparação dessa Glória eminentemente superior, empalidece a glória do primeiro ministério. Se o transitório era glorioso, muito mais glorioso é o que permanece! Em posse de tal esperança, procedemos com total desassombro. Não fazemos como Moisés, que cobria o rosto com um véu para que os filhos de Israel não fixassem os olhos no fim daquilo que era transitório. Em consequência, a inteligência deles permaneceu obscurecida. Ainda agora, quando leem o Antigo Testamento, esse mesmo véu permanece abaixado, porque é só em Cristo que ele deve ser levantado. Por isso, até o dia de hoje, quando leem Moisés, um véu cobre-lhes o coração. Esse véu só será tirado quando se converterem ao Senhor. Ora, o Senhor é Espírito e, onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade. Mas todos nós temos o rosto descoberto, refletimos como num espelho a Glória do Senhor e nos vemos transformados nessa mesma imagem, sempre mais resplandecentes, pela ação do Espírito do Senhor." (2Cor 3,6-18)

Dito de forma mais sucinta por Cirilo de Alexandria: "Porque somos conduzidos em Cristo à vista de Deus e do Pai, veremos a Glória sem o véu de Moisés, compreendendo as Leis espiritualmente".⁷⁶


Para os Cristãos, então, a Lei instituída por Moisés para mediar entre o homem e Deus perdeu o seu alcance, e os judeus, aderindo cegamente a ela, estão condenados à morte. Cristo é agora oferecido no lugar da Lei, e com Ele a Graça e a liberdade do espírito. Ao compreender o Antigo Testamento através da vida de Cristo, os Cristãos levantam o véu da face de Moisés, revelando o espírito da Lei de Deus e vendo a Glória de Deus face a face. As implicações do argumento de Paulo e dos outros que estivemos examinando são plenamente realizadas numa miniatura do Mandylion do século XI que decora uma cópia da Escada Celestial de São João Clímaco, na Biblioteca do Vaticano.


"Tábuas Espirituais" (Biblioteca Apostolica Vaticana, Cod. Ross. Gr. 251, fol. 12v).


Sua legenda oximorônica, ΠΛΑΚΕΣ ΠΝ(ΕΥΜΑ)ΤΙΚΑΙ (Plakes Pneumatikai), "Tábuas Espirituais", capta o contraste que Paulo estabeleceu entre a Lei – escrita carta por letra em pedra – e o espírito vivificante da nova aliança. No contexto imediato, refere-se ao próprio tratado de Clímaco, escrito no século VII em Santa Catarina, no Monte Sinai, e denominado "Tábuas Espirituais", tanto para ligá-lo à Lei de Moisés transmitida no mesmo lugar e, ao mesmo tempo, para distinguir a sua própria Mensagem Cristã. Assim, uma carta de João de Raithu a Clímaco, incluída no manuscrito do Vaticano como em outros exemplares do tratado, compara o autor a "Moisés de antigamente naquela mesma Montanha (que) viu na visão de Deus e (enviou) nos um livro como as tábuas divinamente escritas, para a instrução do Novo Israel."⁷⁷ Enquanto em manuscritos anteriores da Escada Celestial, como o Clímaco do século X no Monte Sinai, as "Tábuas Espirituais" são mostradas simplesmente como placas de mármore, a convenção bizantina para representar as Leis de Moisés, na miniatura do Vaticano, dois ícones de Cristo substituem os lithos, demonstrando assim a afirmação de que as imagens sagradas substituíram o Antigo Testamento. Na verdade, as placas vazias permanecem visíveis como quadrados abaixo dos retratos gêmeos; Literalmente, aqui, a Torá é a sombra, um esboço preparatório, e Cristo é realmente a Imagem pintada, a Lei em sua verdadeira Natureza.


Para ser vista pelos olhos humanos, a Imagem deve ser realizada na Matéria; mas existe independentemente dessa impressão e do material específico escolhido. Ao referir-se a eles como placas, tabuletas, a legenda da miniatura enfatiza a materialidade dos ícones; mas isso serve apenas para sublinhar a noção de que são Plakes Pneumatikai, "Tábuas Espirituais". É o retrato que dá aos ícones o seu espírito, a face sagrada expressa através - e não na - Matéria. O misterioso amálgama de matéria morta e Imagem Imaterial é precisamente o que santifica o ícone, assim como a leitura cristã das escrituras judaicas anima a Antiga Aliança. Mais uma vez, os Cristãos não rejeitam simplesmente os costumes judaicos; eles se apropriam dela para seus próprios propósitos.


O que estava em jogo na controvérsia iconoclasta era nada menos do que a verdadeira Humanidade de Cristo como Segundo Adão descrita no Credo da igreja e, portanto, a história genuína de Cristo descrita nos Evangelhos. Quando, na narrativa de Jesus aos doze anos no templo contada no segundo capítulo do Evangelho de Lucas, Ele foi descrito como tendo estado no templo de Jerusalém na Judéia, Ele estava verdadeiramente na Judéia e não ao mesmo tempo, "fisicamente (σωματικῶς [somatikos])" na Galiléia. Isso apesar do fato de que, como afirma o Novo Testamento, "Nele habita Corporalmente (somatikos) toda a Plenitude da Divindade." (Col 2,9): como Filho de Deus, Ele "encheu todas as coisas" no Céu e assim por diante a Terra, incluindo a Judéia e a Galiléia, era "como Deus acima de todas as coisas" e, portanto, permaneceu "Incircunscrito" (aperigraftos [ἀπερίγραπτος]) em Sua Natureza Divina.⁷⁸ Em um Ícone dedicado a este incidente, conseqüentemente, seria apropriado representar a única pessoa Divino-Humana do Logos Encarnado, em um determinado lugar geográfico e em um determinado momento histórico, como (nas palavras do Evangelho) "sentado no meio dos doutores, ouvindo-os e interrogando-os." (Lc 2,46). O mesmo aconteceu com todas as cenas dos Evangelhos: elas realmente aconteceram em lugares e épocas particulares e, portanto, podiam (e deveriam) ser iconizadas.


Vários dos eventos iconizados do Evangelho listados por João Damasceno, Teodoro o Estudita e João de Jerusalém e celebrados nas Doze Grandes Festas foram particularmente relevantes para a apologia Cristológica da Arte representativa, por exemplo, a Teofania a Maria e os Discípulos após o Ressurreição.⁷⁹ Tanto no relato de Lucas como no de João, este evento pretendia demonstrar aos discípulos (e, portanto, aos leitores posteriores) que "um Espírito não tem Carne nem ossos, como vedes que tenho." (Lc 24,39).


Após a Ressurreição, portanto, o Corpo de Cristo, embora mudado de tal forma que pudesse passar por portas (Jo 20,19-26), ainda era um corpo real – um que poderia ser iconizado. Os Apologistas dos Ícones poderiam argumentar que se fosse possível para o duvidoso Tomé colocar o dedo nas Mãos perfuradas e enfiar a mão no lado ferido do Cristo ressuscitado, deveria ser possível retratar a cena entre Cristo e Tomé em um Ícone. No entanto, um evento merece ser destacado acima dos outros, tanto por sua importância singular na história da piedade e da teologia, quanto por seu significado especial para a justificação doutrinária dos ícones: a Transfiguração de Cristo (conhecida em grego como he Metamorfosis). A representação mais antiga conhecida é um mosaico do século VI na Igreja de Santa Catarina no Monte Sinai (Figura abaixo). "A Auréola de Luz", diz André Grabar sobre este mosaico, "envolve Cristo, que Se Transfigura e, portanto, manifesta Sua Divindade, enquanto os três Apóstolos que estão presentes nesta Teofania são representados como visionários, caindo de joelhos ou jogados para trás pela Luz Misteriosa.".⁸⁰ A mesma qualidade persistiu em ícones e mosaicos da Transfiguração produzidos em Constantinopla séculos depois.



Não está claro se houve ou não tal ícone por trás da Homilia sobre a Transfiguração atribuída pelo ilustre dominicano francês "helenista" François Combefis⁸¹ a João Damasceno. Mas na conclusão da homilia, Damasceno falou em "levar no Coração a Beleza (ὡραιότητα [horaioteta]) desta Realidade Divina", que poderia ser tomada como referência a um Ícone.⁸² Ele também enfatizou que a Transfiguração não foi uma mudança ontológica na pessoa de Cristo, mas uma revelação aos olhos dos discípulos do que estava lá o tempo todo.⁸³ Mas antes ele havia alertado sobre a impossibilidade de "usar uma criatura para iconizar o que não foi criado" e falou da Divindade como "não Circunscrita".⁸⁴ Ele também descreveu a Criação do homem "à Imagem e Semelhança" de Deus, e identificou a Encarnação do Logos como a assunção dessa "Imagem".⁸⁵ Embora possa parecer bastante improvável, então, que ele estivesse falando nesta Homilia sobre um Ícone específico da Transfiguração, ele claramente estava apresentando os principais componentes de sua defesa dos Ícones. Entre todos os eventos do Evangelho enumerados por São João Damasceno e representados nas Doze Festas e seus dípticos, a Transfiguração foi eminentemente útil para essa defesa; Pois seu significado teológico afirmava, contra o interesse dos Iconoclastas na forma pós Ressurreição do corpo de Cristo, que o que os discípulos tinham visto no Monte Tabor como uma consequência da Transfiguração era uma manifestação Circunscrita da realidade incircunscrita da Natureza Divina- o que os iconoclastas chamam de "Carne" de Cristo "como era vista na Terra", não depois da Ressurreição, mas mesmo antes da Crucificação.⁸⁶ A Transfiguração provou que "o Invisível tinha uma aparência ou Semelhança, o Sem Forma tinha uma forma e o incomensurável era envolto em uma medida".⁸⁷ Esta era a Carne que era, e poderia ser, retratada em um Ícone, não apenas em um ícone da Transfiguração, mas em qualquer Ícone de qualquer evento em toda a Vida de Cristo, conforme narrado nos Evangelhos.


Outra Doutrina que, no entanto, era muito mais importante doutrinal e iconograficamente do que a doutrina da Transfiguração, era sobre a combinação da Paixão e Crucificação de Cristo como o evento pelo qual Deus em Cristo realizou a salvação. No Ocidente foi – e é – a combinação destes eventos que foi vista como tendo alcançado a reconciliação entre Deus e a humanidade decaída, com a Ressurreição vista como o Testemunho Divino de que a Expiação realizada na Cruz foi aceita por Deus, o Pai, e que a Justiça Divina foi satisfeita. Iconograficamente, essa ênfase levou à distribuição quase universal do Crucifixo na Igreja latina Medieval como o símbolo distintivo da Expiação.⁸⁸ Teologicamente, levou à formulação ocidental mais representativa da doutrina da Expiação, o tratado "Por que Deus se tornou Homem" ("Cur Deus Homo") de Santo Anselmo da Cantuária, no qual a Paixão e Crucificação de Cristo, o Deus-Homem, foi vista como o meio por meio da qual foi prestada satisfação à violada justiça de Deus pelo único cuja morte poderia valer porque Ele era humano e poderia valer para todos porque Ele era Divino. Expiação por satisfação vicária por meio da Paixão e Crucificação de Cristo era uma teoria que sobreviveria à Reforma e desfrutaria de pelo menos tanto apoio no Protestantismo quanto no Catolicismo medieval (embora muito do Protestantismo aboliu o uso do Crucifixo, substituindo-o por um cruz nua).


Este uso triplo da figura do Cristo Encarnado – de Sua Pessoa como a justificativa fundamental para os Ícones Cristãos na igreja, dos acontecimentos de sua vida como os temas concretos mais importantes para os Ícones Cristãos na igreja e de Sua obra de vitória e Salvação como o conteúdo da celebração pela Liturgia e os Ícones Cristãos na Igreja – foi baseada em uma das mais básicas de todas as distinções no método de tratar a Doutrina Cristã: a distinção entre "Teologia", como compreendendo as doutrinas, sobretudo a doutrina da Trindade, tratando da realidade de Deus como tal; e "Economia", como compreendendo as Doutrinas, sobretudo a Doutrina da Encarnação, tratando da dispensação de Deus na história em relação a toda a Criação e, particularmente, em relação à raça humana e mais particularmente em relação à Igreja. O que estava em jogo no conflito pelos Ícones, segundo a apologia do iconódulo, era igualmente a necessidade de manter "Teologia" e "Economia" claras e distintas.⁸⁹


De acordo com a Teologia, não poderia haver nenhuma idéia de encontrar uma "Semelhança ou percepção de uma Semelhança (ἐμφέρεια ἤ κατανόησις ὁμοιώσεως [emphereia e katanoesis homoioseos])" apropriada de Deus, mas de acordo com a Economia era exatamente isso que a Encarnação havia realizado.⁹⁰ Como Ladner resumiu todo o caso, portanto: "Como Homem Perfeito, Cristo não só pode, mas deve ser representado e cultuado em Imagens: que isso seja negado, e a Oikonomia de Cristo - a Economia da Salvação, - é virtualmente destruída".⁹¹


NOTAS


[1]. "The Book of J", Grove Weidenfeld, New York, 1990, página 3.


[2]. Epistola XLI (PG 77,220).


[3]. J. Mansi, "Sacrorum Conciliorum", vol. 13, p. 12.


[4]. Adversus Iconomachos, chap. 20; J.B. Pitra, Spicilegium Solesmense, p. 282.


[5]. Stromata VI, 15, 182, 8 (PG 9,356).


[6]. É geralmente aceito que o Judaísmo como Religião é mais orientado para a santidade do tempo do que para a santidade do lugar. Há muitas ocasiões em que o judeu se santifica, mas poucos lugares que chama de sagrado.


Contudo, o próprio lugar onde vivia, sua residência permanente, haveria de ser santificada. Isto era feito através de um ritual concreto, que é o mandamento da Mezuzá. Antes da última praga que atingiu os primogênitos egípcios, Moisés avisou os hebreus para marcarem os umbrais ("HaMezuzot" [הַמְּזוּזֹ֔ת] - Ex 12,22) das suas portas com o Sangue do Cordeiro Sacrificial para que o Anjo da Morte passasse direto sobre as suas casas.


É por isso que a Festa do Êxodo é chamada de "Páscoa", pela "passagem" do Anjo. A Mekilta do Rabino Ishmael afirma:


"Agora considere: O sangue do sacrifício da Páscoa teve pouco peso, pois foi exigido apenas uma vez, não para todas as gerações, e apenas à noite, não durante o dia; no entanto, Ele 'não permitiria que o Anjo da Morte... atacasse você'. Quanto mais Ele não permitirá que o Anjo da Morte entre na casa que carrega uma Mezuzá, que é de maior peso, visto que o Nome Divino é repetido ali dez vezes, está lá dia e noite, e é uma Lei para todas as gerações."
- Tratado Pisha ("Mekilta de-Rabbi Ishmael, Translated by Jacob Z. Lauterbach, Volume One", The Jewish Publication Society of America, Philadelphia, 1961, página 88).

Os rabinos veem neste relato bíblico a relação direta entre a Mitsvá da Mezuzá e a Proteção Divina. Uma Mezuzá afixada no batente da porta conforme ordenado por Deus no Sinai ainda tem o poder de não permitir que o Anjo da Morte entre em suas casas para feri-los. Na verdade, imediatamente após a prescrição da Mezuzá, o autor diz que isso deve ser feito "para que se multipliquem os teus dias e os dias de teus filhos na terra que o Senhor jurou dar a teus pais, e sejam tão numerosos como os dias do Céu sobre a Terra." (Dt 11,21).


Ainda a frente, sobre as leis de Guerra para os Israelitas, lemos que:


"Os oficiais dirão em seguida ao povo: ‘Há alguém entre vós que tenha edificado uma casa e não a tenha ainda inaugurado? Que esse volte para a sua casa; não suceda que morra no combate e um outro venha a habitar primeiro do que ele em sua casa." (Dt 20,5)

A própria Lei teme pela vida de um soldado que ainda não consagrou sua casa afixando uma porção da Lei á porta dela, e está, portanto, privado da proteção Divina. Pois, como citado aqui, a prescrição da Mezuzá é de origem bíblica e, portanto, tem grande peso na Religião. “Escreve-as nas ombreiras e nas portas de tua casa”. O que deveria ser inscrito? A instrução Divina é muito clara: “As Palavras que hoje te direi”: que se deve amar a Deus, Adorar somente Ele, guardar os Seus mandamentos e transmitir tudo isso aos seus filhos.


Assim, uma Mezuzá passou a se referir também ao pergaminho, ou "Klaf", no qual os versos da Torá estão inscritos. Mezuzá também se refere à caixa ou recipiente no qual o Klaf está encerrado.


A Mezuzá tinha duas funções: primeiro, toda vez que um judeu entrava ou saia, a Mezuzá o lembrara que ele tinha uma Aliança com Deus, a Lei; segundo, a Mezuzá servia como um símbolo para todos os outros de que aquela habitação específica era constituída como uma família judaica, operando segundo um conjunto especial de regras, rituais e crenças.


[7]. F. Max Muller, "Introduction to the Science of Religion. Four lectures delivered at the Royal Institution with two esssays on false analogies, and the philosophy of mythology", London, 1873, 103.


[8]. S. Morenz, "Entstehung und Wesen der Buchreligion", TLZ 75 (1950), 710-716, republicado em "Religion und Geschichte des alten Agypten: Gesammelte Aufsatze" (ed. E. Blumenthal & S. Herrmann; Koln/Wien, 1975), 383-394. Ver também, do mesmo autor, "Gott und Mensch im alten Agypten" (Leipzig, 19842), 21-26.


[9]. Ver K. Goldammer, "Die Formenwelt des Religidsen: Grundriss der systematischen Religionswissenschaft" (Stuttgart, 1960), 260; S. Herrmann, "Kultreligion und Buchreligion: kultische Funktionen in Israel und Agypten, Das feme und das nahe Wort: Festschrift Leonard Rost" (BZAW 105; ed. F. Maass; Berlin, 1967), 95-105; K. A. H. Hidding, "Sehen und Horen, Liber Amicorum: Studies in Honour of Professor Dr. C. J. Bleeker" (Leiden, 1969) 69-79, esp. 78; M. Meslin, "La Bible est-elle un livre a part?, Le Christianisme est-il une religion du livre? Actes du Colloque organise par la Faculte de Theologie Protestante de Strasbourg" (Strasbourg, 1984), 131-143, esp. 135.


[10]. Cf. C. J. Bleeker, "L’oeil et l’oreille: leur signification religieuse, The Sacred Bridge: Researches into the Nature and Structure of Religion" (Leiden, 1963), 52-71.


[11]. S. G. F. Brandon, "The Holy Book, the Holy Tradition and the Holy Ikon, Holy Book and Holy Tradition. International Colloquium held in the Faculty of Theology, University of Manchester" (ed. F. F. Bruce & E. G. Rupp; Manchester, 1968), 7.


[12]. Menachot 34b e 35b



[14]. M. Weinfeld, "Deuteronomy 1-11" (New York, 1991), 39.


[15]. P. D. Miller, Jr. & J. J. M. Roberts, "The Hand of the Lord: A Reassessment of the ‘Ark Narrative ’ of 1 Samuel" (Baltimore/London, 1977), esp. 9-17.


[16]. Ver M. Delcor, "Jahweh et Dagon ou le Jahwisme face a la religion des Philistins, d’apres 1 Sam. V", VT 14 (1964), 136-154.


[17]. Sobre a teologia da imagem divina entre os vizinhos de Israel ver, além da literatura mencionada no n. 6. J. Assmann, "Agypten: Theologie und Frommigkeit einer friihen Hochkultur" (Stuttgart, 1984), 50-58; Id., "Semiosis and Interpretation in Ancient Egyptian Ritual, Interpretation in Religion" (ed. S. Biderman & B. A. Scharf; Leiden, 1992), 87-109.


[18]. Kelim 15,6


[19]. Shab. 14a e Meg. 32a


[20]. Hagbahah é o nome dado ao levantamento do rolo da Torá aberto, para que a congregação possa ver a Escritura e testificar: "Eis a Lei que Moisés apresentou aos Israelitas" (Dt 4,44).


A passagem de Neemias 8,5 é o precedente bíblico para levantar um pergaminho aberto para que toda a congregação possa ver o Livro da Torá;


"Esdras abriu o Livro à vista de todo o povo, pois estava em lugar mais elevado do que a multidão. Quando o escriba abriu o Livro, todo o povo se levantou."

A pessoa que levanta a Torá tradicionalmente abre pelo menos três colunas do pergaminho (C.f. "Orach Chayim", C. 134, p.3) antes de levantá-lo o mais alto possível, e então lentamente se vira para mostrar o Texto a todos os reunidos. Isto permite que todos na congregação vejam o texto e proclamem “V'zot HaTorá” ([וְזֹ֖את הַתֹּורָ֑ה] "Eis a Lei [que Moisés apresentou aos Israelitas]"). Alguns adoradores levantam as bordas dos Talits em direção ao roteiro e depois beijam o Tsitsit, embora o requisito Haláquico seja meramente curvar-se diante da Torá aberta.


O costume de levantar o rolo da Torá é mencionado propriamente no tratado Soferim, um dos tratados menores do Talmud.


"O rolo da Torá é imediatamente desenrolado em um espaço de três colunas e elevado de modo a mostrar a face da escrita às pessoas que estão à direita e à esquerda. Depois é virado para a frente e para trás; pois é um preceito para todos os homens e mulheres verem o roteiro, dobrarem os joelhos e exclamarem: 'Eis a Lei que Moisés apresentou aos israelitas' (Dt 4,44). 'A Lei do Senhor é perfeita, reconforta a alma' (Sl 19 [18],8). O mafṭir então a entrega ao superintendente dos serviços da Sinagoga, que a devolve ao primeiro dos que serão chamados para a leitura, porque não é uma honra deixar a Torá sozinha. Da mesma forma, não é apropriado que o precentor fique sozinho diante da mesa de leitura; então (duas pessoas) deveriam ficar com ele, uma à sua direita e outra à sua esquerda, (o número) correspondente ao dos Patriarcas. Os homens de mente pura de Jerusalém agiram desta maneira: Quando o rolo da Torá foi retirado da arca e quando foi devolvido, eles o seguiram como um sinal de respeito."
- "Soferim" 14,14

Em seu comentário à Torá, Nachmanides sugere que a prática é até aludida pelo próprio Chumash: "Maldito o que não conserva ("Yaquim" [יָקִ֛ים] que também significa "levanta") as palavras desta Lei e não a cumpre! – E todo o povo dirá: ‘Amém!’" (Dt 27,26). A razão para levantar a Torá é para que toda a congregação, tanto homens como mulheres, possam ver as palavras escritas no seu interior e proclamar o "V'zot HaTorá". Claramente, este testemunho público não teria validade se a Torá fosse fechada e as pessoas não pudessem ver o que estava escrito lá dentro.


O costume original, ainda praticado hoje por muitas comunidades sefarditas, é elevar a Torá antes de ser lida ("Orach Chaiym", Cap. 134; "Zohar" II, 206a). As autoridades Askenazi, no entanto, determinaram que a Hagbah deveria ser realizada após a leitura da Torá, possivelmente devido à preocupação de que realizar a Hagbah em primeiro lugar deixaria as pessoas com a impressão de que a Hagbah é mais importante do que a própria leitura da Torá, e elas podem nem mesmo ficar para ouvir a Torá sendo lida.


A pessoa que é homenageada com a Hagbah deve primeiro desenrolar o rolo da Torá enquanto ele está sobre a mesa, para revelar três colunas de texto. Depois de tocar a Torá com um Talit ou cinto da Torá, ele levanta a Torá, gira noventa graus para a esquerda, e então retorna a sua posição inicial (c.f. "Siddur Rabbeinu Hazaken", Kehos 2004, p. 711).


Como relata Shlomo ibn Aderet na sua "responsa", quando a Torá é levantada, a congregação se levanta e recita os versos impressos no Siddur, (o livro que contém o conjunto de orações e bençãos diárias, para os sábados, dias santos e dias de jejum). Cada pessoa deve tentar aproximar-se o suficiente da Torá para poder ler o que está escrito dentro dela, pois, segundo Isaac Luria, isso "traz uma tremenda iluminação espiritual para a pessoa".


No rito sefardita, Deuteronômio 4,24 e 33,4 são imediatamente seguidos por Salmos 18,31. No ritual da Reforma, a pasaagem "(a Sabedoria) É uma árvore de vida para aqueles que lançarem mãos dela. Quem a ela se apega é um homem feliz." (Pr 3,18 ) é recitada em seu lugar, enfatizando a Torá como forma da "Sabedoria". No rito Askenazi, este ritual é realizado após a leitura do Pentateuco e antes da leitura dos Profetas (Haftarah). Uma pessoa levanta o rolo da Torá de tal forma que a congregação possa ver as três colunas da Escritura. Ela então se senta e outra pessoa enrola o pergaminho, amarra-o, veste-o com um manto e recoloca seus vários ornamentos. Esta parte do rito é chamada Gelilah ([גלילה] "enrolamento").


De acordo com o Talmud, no tratado de Megilah (32a), escrito entre os séculos II e III d.C., a pessoa que realiza a Gelilah é ainda mais recompensada do que aqueles que são chamados à leitura propriamente dita do Pentateuco:


"E Rabi Shefatya disse que Rabi Yoḥanan disse: 'Se dez pessoas lerem a Torá, a maior entre elas deverá enrolar (גּוֹלֵל [Golel]) o rolo da Torá, pois esta é a honra mais ilustre'. E aquele que a enrola recebe a recompensa de todos eles, como disse o Rabino Yehoshua ben Levi: 'Se dez pessoas lerem a Torá, aquele que a enrola recebe a recompensa de todas elas'. A Gemara pergunta: 'Você pode pensar que ele realmente recebe a recompensa de todos eles? Por que todos os outros deveriam perder sua recompensa?' Em vez disso, diga: 'Ele recebe uma recompensa equivalente à de todos eles'."

O Talmud no entanto não parece separar estas duas funções, referindo-se principalmente a esta última. Na verdade, ao mesmo tempo, a pessoa que recebeu o último Alyah ([עליה] a chamada de um membro de uma congregação até a Bimah (púlpito) para um segmento da leitura formal da Torá) pode ter desempenhado ambas as funções.


Em muitas sinagogas hassídicas, a Hagbahah é feita com um pergaminho aberto antes da leitura da Torá e novamente após a leitura, com um pergaminho fechado que é então encadernado. No rito sefardita, a Hagbahah é realizada antes da leitura do Pentateuco. A pessoa que tira o rolo da Torá da Arca abre-o e leva-o aberto para a plataforma de leitura. No rito sefardita ocidental, a Hagbahah é realizada apenas por um oficial honorário ou membros de uma irmandade honorária (levantadores).


[21] Os arquivos Mari da Antiga Babilônia deixaram claro que o topos literário sobre os deuses marchando na frente do exército (D. Charpin et al., AEM , Vol. 1/2 [ARM 26; Paris, 1988], no. 385:16’-17’ o topos é especialmente frequente em textos assírios posteriores, ver e.g. E. Weidner, "Die Inschriften Tukulti-Ninurtas I. und seiner Nachfolger" [AfO Beiheft 12; primeiro publicado em 1959; Reprint Osnabruck, 1970], 12:48-53) é um reflexo do fato de que imagens de certos deuses foram levadas pelos militares (D. Charpin & J.-M. Durand, "La prise du pouvoir par Zimri-Lim", MARI 4 [1985], 293-342, esp. 317 n. 107:18 and cf. n. 108). Esses deuses foram consultados antes do ataque (D. Charpin, AEM , Vol. 1/2 [ARM 26; Paris, 1988], 147-148), e a vitória foi atribuída à sua ajuda, e mais especialmente à sua "palavra" (J.-M. Durand, AEM 1/1 = ARM 26; Paris, 1988], 186).


[22]. Sanhedrin 2;4.


[23]. Compare:

"Entregaram a Jacó todos os deuses estrangeiros que tinham, assim como os brincos que traziam nas orelhas, e Jacó enterrou-os debaixo de um tere­binto, perto de Siquém." (Gn 35,4)
"'Agora, pois, tirai os deuses estranhos que estão no meio de vós e inclinai os vossos corações para o Senhor, Deus de Israel.' 'Nós serviremos o Senhor, nosso Deus –, respondeu o povo a Josué –, e obedeceremos à sua voz.' Desse modo, Josué fez um pacto naquele dia com o povo e deu-lhe, em Siquém, leis e prescrições. Josué escre­veu tudo isso no livro da Lei de Deus, tomou em seguida uma pedra muito grande e erigiu-a ali, debaixo do carvalho que estava no Santuário do Senhor." (Js 24,23-26)

[24]. "Mito" aqui designa uma forma específica de história, na qual os humanos procuram apresentar na narrativa – numa forma simbólica de realidade – uma verdade que é transcendente, para além do domínio ordinário da sua experiência. Os onze primeiros capítulos do livro de Gênesis, por exemplo, são considerados pelos estudiosos como pertencentes ao gênero literário do Mito.


[25]. Sanhedrin 10:1.


[26]. Sanh. 99a


[27]. B. Bat. 15a


[28]. Pirkei Aboth 3:14:


"Ele costumava dizer: Amado é o homem porque foi criado à Imagem (de Deus). Ele é especialmente amado porque lhe foi dado a conhecer que tinha sido criado à Imagem (de Deus), como se diz: 'porque Deus fez o homem à Sua Imagem.' (Gn 9,6). Amados são Israel porque foram chamados filhos do Todo-Presente. Especialmente amados são eles porque lhes foi dado a conhecer que são chamados filhos do Todo-Presente, como se diz: 'Vós sois os filhos do Senhor, vosso Deus' (Dt 14,1). Amados são Israel porque um vaso precioso lhes foi dado. Eles são especialmente amados porque lhes foi dado a conhecer que o Instrumento desejável, com o qual o Mundo foi criado, lhes foi dado, como está dito: 'porque é Sã a Doutrina que eu vos dou; não abandoneis o Meu ensino (תּֽ֝וֹרָתִ֗י [Torati]).' (Pr 4,2)."
- פרקי אבות, עם שני באורים: נשמת חיים קיצור מביאור הגאון מהר"ל, 1859, p. 104

Outros rabinos dizem que a Torá foi uma das primeiras obras de Deus: na véspera do primeiro sábado, Deus criou a escrita, o lápis de ardósia e as tábuas para escrever a Torá (m. Ambos 5,6; cf. b. Pes. 54a). A Pesiqta de Rav Kahana faz Deus dizer: 'A Torá era uma criatura em minha presença quando o mundo ainda não havia sido criado, por dois mil anos' (B. Mandelbaum, "Pesikta de Rav Kahana" [New York, 1962], 222:16 -17).


[29]. "Avodah Zarah", 3b:


"E o Santo, Bendito seja, senta-se e diverte-se, isto é, ri ou alegra-se, como se diz: 'Aquele, porém, que mora nos Céus, se ri (יִשְׂחָ֑ק [Yesahek]), o Senhor os reduz ao ridículo.' (Sl 2,4). Rabino Yitzḥak diz: 'Não há brincadeira (ישחק [Yesahek]) com o Santo, Bendito seja, a não ser somente naquele dia'.
A Gemara pergunta: 'É mesmo? Não há como brincar com o Santo, Bendito seja? Mas Rav Yehuda não diz que Rav diz: O dia tem doze horas. Durante os três primeiros, o Santo, Bendito seja, senta-se e se dedica ao estudo da Torá. Durante as três horas seguintes, Ele se senta e julga o mundo inteiro. Uma vez que Ele vê que o mundo se tornou sujeito à destruição, Ele se levanta do Trono do Julgamento e se senta no Trono da Misericórdia, e o Mundo não é destruído.'
Durante o terceiro conjunto de três horas, o Santo, Bendito seja, senta-se e sustenta o mundo inteiro, desde os chifres dos bois selvagens até os ovos dos piolhos. Durante as quartas três horas, Ele senta-se e brinca com o leviatã, como está escrito: 'o Leviatã que criastes para brincar (לְשַֽׂחֶק [lesahek]) nas ondas' (Sl 104 [103],26)."
- תלמוד בבלי עם פרש"י: עבודה זרה. תר"ג," דפוס לנדא, 1839"

[30]. Dentre os inúmeros textos rabínicos que identificam a Torá como o "Instrumento pelo qual Deus fez o Mundo (i.e. a Sabedoria Divina)" podemos citar:


"Rabino Banai disse: 'O mundo e seu conteúdo foram criados apenas devido ao mérito da Torá, como é afirmado: 'Foi pela Sabedoria (בְּחָכְמָ֥ה - Be-Chokhmah) que o Senhor criou a Terra' (Pr 3,19)."
- "Bereshit Rabbah", 1:4.

De acordo com Bahya ben Asher, a Sabedoria que Salomão se refere em Pr 9,5 é a Torá ("Rabbeinu Bahya", Deuteronômio 8,9; 2).

"O Rabino Ḥanina bar Yitzḥak disse: 'Existem três microcosmos; o sono é um microcosmo da morte; um sonho é um microcosmo de profecia; O Shabat é um microcosmo do Mundo Vindouro.' O rabino Avin acrescenta outros dois: 'O orbe do sol é um microcosmo da Luz Celestial; A Torá é um microcosmo da Sabedoria Celestial ' (חָכְמָה - Chokhmah)'."
- "Bereshit Rabbah", 17:5.

De acordo com o Tanya (parte 4: "Iggeret HaKodesh", 19: 15; e parte 5: "Kuntres Acharon", 6:8), a Torá é uma manifestação atenuada ou "mais fraca" de Chokhmah, mas não Chokhmah como ela mesma é (ver também, a parte 3: "Iggeret HaTeshuvah", 4:19; e parte 4; "Iggeret HaKodesh", 20:17).


"Portanto, o principal modo de estudo está na deliberação e argumentação da lei de Issur e Hetter - Impureza e Pureza - a fim de desembarcar o permitido puro e do proscrito e impuro por meio da deliberação e argumentação da Lei - com Sabedoria, Entendimento e Conhecimento. Pois como se sabe, a Torá deriva de Chokhmah."
- "Tanya", parte 4; "Iggeret HaKodesh", 26: 24.

"Pois a Torá deriva de Chokhmah, e a Torá e o Santo, bendito seja Ele, são inteiramente Um."
- Ibid. 29: 13.

"Ambas as interpretações significam a mesma coisa, pois fomos ensinados que a Torá emanou da Sabedoria Suprema".
- "Zohar" II, "Jetro", 22: 85a (III: 258).

[31]. Schechter, "Some aspects of rabbinical theology", p. 116; Herford, "The Pharisees", London, 1924, p. 57 sq.


[32]. Cf. Dt 17,11; Lv 6,2; 7,37; Am 2,4; Os 8,1; Is 1,10; 2,3; 5,24; 30,9; Jr 6,19; 2Rs 22,8.


[33]. O estudo da Torá é acima de tudo um estudo jurídico; a Lei oral é composta principalmente de Halacá inteiramente legal. Bonsirven opõe os termos que vêm dos rabinos ou escribas áqueles que vêm da Torá ou Oraita.


[34]. S. H. Blank, "The LXX renderings of O. T. terms of Law", Hebrew Union College Annual, Cincinnati, 1930, p. 259-283.


[35]. 34,8; 24,22; 39,8; 19,16; 32,15; 33,2. ( ver 249, nota 1)


[36] IV Macabeus 1,17 e doutrina de todo o livro: Cf. II,23; a Lei é mencionada lá com muita frequência, pois em 1Macabeus ela representa toda a vida judaica. Para Aristéias, é repleta de Sabedoria, regra segura de conduta e inteligência (3, 31, 131, 168, 169, 5, 127, 176, 177, 312-315...) Para Fílon é a Filosofia perfeita; Josefo professa ideias semelhantes. Este espírito aparece ainda mais triunfante em 4Esdras e 2Baruc.


[37]. Pirkei Abbot III, 9.


[38]. Fedro 250b


[39]. A República 597E; 603B


[40]. Cf. 2Cor 5,17; Gl 6,15; Rm 6,4; Cl 2,12; 3,1;...


[41]. C. S. Lewis, "Myth became Fact" (em "The Collected Works of C. S. Lewis, The Pilgrim's Regress, Christian Reflections, God in the Dock", Inspirational Press, New York, 1996, página 343).


[42]. Balthasar, Ibid. 69-70


[43]. Tolkien OFS 155-156


[44]. Tolkien letters, 101


[45]. Hans Urs von Balthasar, "The Glory of The Lord: a Theological Aesthetics IV: The Realm of Metaphysics in Antiquity " (Edinburgh: T&T Clark, 1989), página 179.


[46]. Friedrich Normann, "Christos Didaskalos: Die Vorstellung von Christus als Lehrer in der christlichen Literatur des ersten und zweiten Jahrhunderts", Miinsterische Beitrage zur Theologie 32 (Munster: Aschendorff, 1967).


[47]. "Epistola I ad Corinthios." (PG 1,257).


[48]. Normann, "Christos Didaskalos", p. 80.


[49]. Para uma visão geral do lugar do Logos no pensamento de Clemente, consulte John Egan, "Logos and Emanation in the Writings of Clement of Alexandria", em "Trinification of the World: A Festschrift in Honor of Frederick E. Crowe", ed. Thomas T. Dunne and Jean-Marc Laporte (Toronto: Regis College Press, 1978), 176-209. O contexto filosófico grego do Logos é discutido em Salvatore R. C. Lilla, "Clement of Alexandria: A Study in Christian Platonism and Gnosticism" (Oxford and New York: Oxford University Press, 1971). Sobre o lugar da gnose no pensamento religioso de Clemente, ver Walther Volker, "Der wahre Gnostiker nach Clemens Alexandrinus, Texte und Untersuchungen 57" (Berlin: Akademie Verlag, 1952), 301-445.


[50]. Para informações, consulte Salvatore R.C. Lilla, 9-59.


[51]. Sobre o papel do Logos como instrutor, ver Erich Fascher, "Der Logos-Christus als gottlicher Lehrer bei Clemens von Alexandrien", em "Studien zum Neuen Testament und zur Patristik", ed. Otto Eissfeldt, "Texte und Untersuchungen" 77 (Berlin: Akademie Verlag, 1961), 193-207.


[52]. "Pædagogi Lib. I.", Cap. I. (PG 8,249)


[53]. "Pædagogi Lib. I.", Cap. 3. (PG 8,253)


[54]. "Pædagogi Lib. I.", Cap. VII. (PG 8,312-324).


[55]. "Stromatum Lib. IV.", Cap. I (PG 8,1216).


[56]. "Stromatum Lib. III.", Cap. X (PG 8,1172).


[57]. Para uma análise convincente do papel teológico da obscuridade bíblica, veja Marguerite Harl, "Origene et les Interpretations Patristiques Grecques de l' <<Obscurite>> Biblique", "Vigiliae Christianae 36" (1982): 334-71.


[58]. "Cohortatio ad Gentes.", Cap. 1 (PG 8,61). Para uma rica análise da transformação do Logos, veja David Dawson, "Allegorical Readers and Cultural Revision in Ancient Alexandria" (Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1992), 183-234.


[59]. G. F. Moore, "Judaism" (Cambridge, Massachusetts, 1927), I, p. 479.


[60]. "Bereshit Rabbah 24" em Genesis 5,1. Este e outros testemunhos rabínicos cognatos estão convenientemente reunidos no artigo "Eikon" no "Theological Dictionary of the New Testament", II (Grand Rapids, 1964) de G. Kittel, G. von Rad, e H. Kleinknecht.


[61]. J. Jervell, "Imago Dei" (Göttingen, 1960), p.114.


[62]. R. Scroggs, "The Last Adam" (Oxford, 1966) páginas 52-54.


[63]. Este relato segue de perto o "Paul's Letters from Prison" (Harmondsworth 1970) de J. Houlden.


[64]. E. W. Burton, "The Epistle to the Galatians", (Edinburgh, 1921) página 189.


[65]. "Cohortatio ad Gentes.", Cap. I (PG 8,61).


[66]. "Paedagogi Lib. I.", Cap. VII (PG 8,313).


[67]. "Cohortatio ad Gentes." Cap. IX. (PG 8,200).


[68]. Para obter uma lista do emprego de "i grafi" por Clemente nas Escrituras, consulte Otto Stählin, "Clemens Alexandrinus Wortregister", "Griechischen Christlichen Schriftsteller der Ersten Jahrhunderte" 39 (Leipzig: J. C. Hinrichs, 1936), 319; e também o artigo de Gottlob Schrenk no "Theological Dictionary of New Testament" 1,754-755, que sugere que o emprego do singular γραφὴ (grafi) "pode ​​muito bem ter se desenvolvido a partir do הכתוב (HaKatuv) rabínico" (p. 754). Nem Fílon nem Josefo empregam o termo desta forma, portanto não há razão para pensar que tenha vindo de autores judeu-gregos.


[69]. Gerhart B. Ladner, "Der Bilderstreit und die Kunst-Lehren der byzantinischen und abendlandischen Theologie.", "Zeitschriftfiir Kirchengeschichte" 50 (1931), página 14.


[70]. Hubert Bastgen, "Das Capitulare Karls cl. Gr. i.iber die Bilder oder die sogenannten Libri Carolini.", "Neues Archiv der Gesellschaftfur i:iltere deutsche Geschichtskunde" 35 (19rr):631-66; 36 (1912):13-51, 453-533. Embora Bastgen deva ser revisado à luz de pesquisas mais recentes, ele permanece um resumo útil das reações ocidentais.


[71]. Ernst Kitzinger, "The Cult of lmages before Iconoclasm", "Dumbarton Oak Papers" 7 (1954), página 133.


[72]. Ver a discussão em "Kirche und theologische Literatur im Byzantinischen Reich. Munich": C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung”, 1959, de Hans-Georg Beck, página 303.


[73]. Alexander Alexandrovich Vasiliev, "History of the Byzantine Empire", 324-1453, 2 vols 2 ed madison; University of Wisconsin Press, 1958, página 189.


[74]. Georges Florovsky, "Collected Works", vol 2, Belmont, Mass.: Nordland, 1972, página 115.


[75]. Adolf von Harnack, "Dogmengeschichte", 4 edição, Tübingen: J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1905, página 192.


[76]. "Glaphyrorum in Exodum", III (PG 69,537).


[77]. "Litteræ Sancti Joannis, Præsidis Cœnobii Raithuni" (PG 88,624).


[78]. São Nicéforo, em "Antirrheticus II Adv. Constantinum Copr.", 18 (PG 100,368).


[79]. São Teodoro, o Estudita, "Antirrheticus", III,I,16 (PG 99,397).


[80]. Grabar, "Christian Iconography: A Study of Its Origins", Princeton University Press, 1968, página 117.


[81]. "Dictionnaire de Théologie Catholique", Paris, Letouzey et Ané, 1909-1972, volume 3, páginas 385-387.


[82]. São João Damasceno, "Homilia in Transfigurationem Domini.", 20 (PG 96,573).


[83]. São João Damasceno, "Homilia in Transfigurationem Domini.", 12 (PG 96,564).


[84]. São João Damasceno, "Homilia in Transfigurationem Domini.", 13 (PG 96,565).


[85]. São João Damasceno, "Homilia in Transfigurationem Domini.", 4 (PG 96,552).


[86]. São Nicéforo em "Antirrheticus III adv. Constantinum copr.", 38 (PG 100,437).


[87]. São Teodoro, o Estudita, "Antirrheticus", III,I,53 (PG 99,413).


[88]. Paul Thoby, "Histoire du Crucifix des Origines au Concile de Trente", Nantes: Bellanger, 1959.


[89]. São Teodoro, o Estudita, "Antirrheticus", III,III,15 (PG 99,428).


[90]. São Teodoro, o Estudita, "Antirrheticus", II,4 (PG 99,253).


[91]. Ladner, "Origin and Significance of the Byzantine Iconoclastic Controversy.", "Mediaeval Studies" 2 (1940), página 145.










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