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  • Ermeson Steiner

João Calvino: anátema até para os aniconistas históricos

Uma análise sobre o pensamento aniconista de Calvino em paralelo com outros aniconistas históricos feita por um cristão ortodoxo.


A apologética de João Calvino contra a iconodulia (a mesma que foi inserida e consagrada nas principais confissões históricas da fé reformada — como a Segunda Confissão Helvética, as Três Formas de Unidade e os Símbolos de Westminster) parte de uma crítica não contemplada até mesmo entre grupos aniconistas históricos (tendo aqui em mente judeus, muçulmanos, nestorianos e iconoclastas bizantinos). O núcleo da apologética iconoclasta de Calvino é a rejeição da distinção entre veneração (douleia, proskynesis) e adoração (latreia) como "sofisma" anti-bíblico. Judeus não podem se apegar a esse tipo de crítica pois, embora rejeitem a iconodulia, eles veneram liturgicamente a mezuzá de sua porta (com beijo inclusive), o seu manto de oração antes de colocá-lo e o seu talit antes de amarrá-lo na sua testa e no seu braço (além de que beijam a Torá antes da leitura na Sinagoga).


O mesmo vale para os muçulmanos, pois eles veneram a Caaba com Tawaf (rito de peregrinação) e Qibla (oração em sua direção), as relíquias de seus santos e profetas, bem como também seus livros sagrados. A mesma coisa pode se dizer de nestorianos e iconoclastas bizantinos. Nestorianos rejeitam ícones em seus cultos e devoções, mas veneram a Santa Cruz e as relíquias de santos com ritos de invocação dos santos. Já os iconoclastas bizantinos, como dizia o historiador eclesiástico Jaroslav Pelikan:


"Os iconoclastas, que são frequentemente citados pelos Protestantes como apoiantes da sua posição sobre esta questão, na verdade, argumentam contra os Protestantes. Por um lado, os iconoclastas anatematizaram todos aqueles que 'se aventuram a representar...com cores materiais...' Cristo ou os santos - algo que quase todos os Protestantes fazem. Por outro lado, também anatematizaram todos aqueles que 'não confessam a santa e sempre-virgem Maria, verdadeira e propriamente a Mãe de Deus, como sendo superior a toda criatura, visível ou invisível, e não buscam com fé sincera as intercessões dela como alguém que tem confiança no acesso dela ao nosso Deus visto que ela O deu à luz...' e também anatematizaram todos aqueles que 'negam o benefício da invocação dos santos...'. (NPNF2, Vol. 14, p. 545f). Assim, na realidade, os Protestantes se encontram sob mais anátemas dos iconoclastas. Os Protestantes podem querer se contentar de que pelo menos os iconoclastas se opuseram à veneração das imagens, mas a veneração nunca foi um problema em si mesma em relação aos iconoclastas. Eles só se opuseram à veneração dos ícones, porque eles se opuseram aos ícones. Eles não se opuseram à veneração de coisas sagradas - os iconoclastas veneravam a Cruz, e não tinham nenhuma objeção quanto a ela." — Jaroslav Pelikan, The Spirit of Eastern Christendom (600-1700), Chicago: University of Chicago Press, 1974, p. 110.

O que contribui para essa apologética um tanto solitária de Calvino contra um suposto "jogo idólatra de palavras" provavelmente é uma influente fonte carolíngia (atualmente atribuída no meio acadêmico a Teodulfo de Orleans) que ele cita em edições subsequentes de suas "Institutas da Religião Cristã" com uma tradução latina pobre dos atos do Sétimo Concílio Ecumênico. Calvino teve acesso à uma fonte tão escassa para embasar sua crítica teológica que ele sequer deu atenção aos argumentos apologéticos de São João Damasceno e São Teodoro Estudita em defesa dos santos ícones (provavelmente porque não os conhecia).

Nas fotos abaixo vemos três mulheres de diferentes religiões, mas unidas pela "proskynesis" tão demonizada por Calvino e a teologia reformada confessional: uma cristã da Igreja Ortodoxa, uma cristã da Igreja do Oriente (acompanhada de sua filha) e uma muçulmana do Islã Sunita.





Essas mulheres pertencem tradições que divergem entre si em questões cristológicas (a Ortodoxia defende Diofisismo Calcedônio, o Pré-Efesianismo defende Diofisismo Nestoriano e o Islã defende uma vertente própria que para a cristandade familiarizada lembra bastante a heresia adocionista do Monarquismo Dinâmico). Mas as tais querelas cristológicas são justamente os principais fatores que fazem com que uma venere ícone, outra venere cruz e a última venere livro sagrado. Na Ortodoxia a Palavra de Deus é uma Pessoa totalmente Divina e totalmente humana, o Logos Encarnado. Como ensina São João Damasceno, a Encarnação possibilita a iconodulia pois "(...) não venero a matéria, mas o Criador da matéria, que se fez matéria por mim e se dignou habitar na matéria e realizar minha salvação através da matéria". (Apologia contra os que condenam Imagens Sagradas)


O pensamento pré-efesiano não pode se basear nesse mesmo argumento ortodoxo da Encarnação por questões óbvias de sua própria cristologia nestoriana. É verdade que no Pseudo-Concílio de Hieria houve a acusação iconoclasta contra os santos ícones de que eram intrinsecamente nestorianos — uma vez que o iconódulo está separando as naturezas divina e humana de Cristo (presumivelmente mostrando apenas uma natureza humana). Todavia, essa objeção assume a priori uma cristologia nestoriana (pois supõe que a hipóstase de Cristo é composta de tal maneira que se pode separar a natureza humana da divina, assumindo-se desse modo que a hipóstase é o produto da união divina — uma ênfase que milita até mesmo contra a afirmação pré-segundonicena do Concílio de Éfeso de que "o Corpo de Cristo vivifica", sentença inteiramente dependente da cristologia ortodoxa defendida por São Cirilo de Alexandria).


Então a dificuldade da Igreja do Oriente para com a teologia iconográfica nasce de pressão externa, como argumenta o explorador orientalista (especializado em História da Ásia) e historiador suíço Christoph Baumer em sua obra “The Church of the East: An Illustrated History of Assyrian Christianity” ao dizer que a oposição às imagens religiosas acabou se tornando norma entre os cristãos assírios devido à ascensão do Islã na região do Oriente Médio, onde se proibia qualquer tipo de representação de santos e profetas bíblicos. Como tal, a Igreja do Oriente teria sido forçada a se livrar de seus ícones, porém essa tendência não chegou ao Extremo Oriente (onde a comunidade cristã assíria seguiu fazendo uso de iconografia, conforme registros arqueológicos dos séculos VII e IX atestam).


Todavia, um fator que teria contribuído para a perca da tradição iconográfica entre os cristãos assírios tanto quanto a expansão islâmica no Oriente Médio teria sido sua alienação da Pentarquia após o cisma nestoriano desencadeado pela recusa de adesão da Igreja do Oriente ao Terceiro Concílio Ecumênico (Concílio de Éfeso), onde sua cristologia heterodoxa facilitou seu entreguismo anicônico e o transformou em tradição heterodoxa. Contudo, seus hierarcas mais recentes têm caminhado para a aceitação da Ortodoxia Calcedoniana nos recentes diálogos interconfessionais com cristãos calcedônios. Discursos como o do Rev. Ephraim Ashur Alkhas (presbítero assírio), são otimistas nesse sentido:


"O conceito de que a Igreja do Oriente não tem ícones em sua tradição é um mito. A Igreja Assíria atualmente não faz grande uso de ícones, mas eles estão presentes em sua tradição. A evidência para o uso de ícones é abundante, continua até o século XIV e é encontrada em documentos básicos, escritos canônicos e textos litúrgicos. Além disso, ao longo de minha pesquisa, não encontrei nenhuma menção a qualquer supressão de ícones." [ https://m.youtube.com/watch?v=JCajRBwjGAI]

Apesar de todas as nuances no tocante às imagens sagradas, o culto de veneração das santas relíquias e de símbolos nestorianos (como a Cruz Assíria) é uma questão há muito fechada na Igreja do Oriente e contraria todo o Protestantismo Histórico. Já no pensamento islâmico a Palavra de Deus (aquilo que chamamos de Logos) é a própria escrita literal, o Alcorão no caso, constituindo não uma Revelação Pessoal (como vemos no Cristianismo) mas sim uma Revelação Escrita. É esse mesmo paradigma que desenvolve a sacralização da caligrafia árabe na doxologia islâmica. Algo que poderia ser melhor elaborado em outro texto. Mas para não ser muito breve sobre o tema, deixo aqui um valioso insight:


"(...) o próprio Alcorão [Por exemplo, na sura 41, versículo 3 e sura 12, vesículo 1-2.] registra que ele mesmo se constitui numa Revelação/Leitura árabe. Língua-corpo da Revelação, o Árabe, em sua forma escrita, adquiriu naturalmente um caráter sacralizado, miraculoso, impondo-se como a única língua de legítima manifestação da palavra de Deus. Assim, desde sempre, o muçulmano de todo o mundo faz sua oração em árabe, independentemente da língua que impera em seu país. Já por esta razão, pode-se compreender que o muçulmano não admita a tradução do Alcorão mesmo com a finalidade da reza e da recitação [A propósito, Khatibi e Sijelmassi questionam-se: “Comment transcrire une langue miraculeuse sans en trahir la perfection sous-entendue?” (L’Art de la Calligraphie... op. cit.), ao que acrescenta T. Burckhardt: “The miracle of Islam is the Divine Word directly revealed in the Koran and ‘actualized’ by ritual recitation” - Sacred Art in East and West, Middlesex, G. Britain, Perennial Books Ltd, p. 117.] , aceitando-a apenas na medida em que seja uma explicação do sentido do Livro (tafsir ma’ na al-qur ‘an).

Quando se quer identificar as peculiaridades da Arte para além da adoção de traços ou do amalgamento de traços adquiridos pelos caminhos trilhados pela Civilização Árabe, constata-se, de imediato, que, ao contrário da arte ocidental, fundada na poli-idealização, a árabe revela-se essencialista, expressando-se por uma forma decorativa não figurativa, alicerçada fortemente na caligrafia do pensamento alcorânico. A Civilização Árabe, tendo se constituído e desenvolvido sob a proteção do Islão, foi uma das maiores civilizações da escrita que o mundo conheceu. Na verdade, a palavra contida no Alcorão, escrita, ouvida e recitada — o Alcorão é não só a Leitura, mas também o Dhikr [O dhikr é, antes de mais nada, a repetição, adimitindo também os sentidos de lembrança e até de estudo.] por excelência — é para o árabe, fundamento de vida.

O Alcorão, palavra incriada e eterna de Deus, texto maior do muçulmano é considerado, assim, o Signo-fonte que manterá com todas as outras escrituras determinadas pela cultura que embasa, um elo orgânico. A escrita e sobretudo a caligrafia árabe, uma das formas mais proeminentes de inserção do signo na realidade e na memória dos homens, pois fixa a língua que se tornou o veículo da Revelação. Se o pensamento alcorânico é total e sua língua, perfeita, é porque se trata do Verbo do Altíssimo que desceu à terra. Verbo que se fez escrita. Escrita que se materializou na Caligrafia. Caligrafia que representa o corpo visível da divina palavra. Para o muçulmano, o nome sagrado de Deus e o Alcorão equivalem à Encarnação para o cristão: o mesmo senso de devoção que o cristão nutre por Jesus (Verbo Encarnado) é o que o muçulmano nutre pela escrita da palavra divina e pelo Alcorão que a acolhe." — Aida R. Hanania, “Caligrafia: forma do espírito árabe-islâmico”.

Em suma, a oposição de Calvino à teologia iconográfica de Niceia II nasce essencialmente de ênfases litúrgicas regulativistas que são comuns ao seu ramo teológico protestante (reformado) mas alienígenas para outros grupos religiosos que que se opõem ao Iconodulismo. Entre judeus, muçulmanos, nestorianos e iconoclastas bizantinos essa questão é essencialmente cristológica, e tais tradições possuem ênfases litúrgicas que os reformados confessionais considerariam idólatras caso retirassem a venda da hipocrisia.


Eu costumo observar alguns apologistas neoiconoclastas tentando reunir uma multidão testemunhal de aniconismo religioso contra a teologia iconodula que a Igreja Ortodoxa, a Igreja Latina e as Igrejas Orientais Miafisistas aceitam, eles só esquecem que esses grupos não estão interligados por críticas de terreno comum. Talvez o único consenso entre essa "legião" seja uma interpretação rigorista do 2° mandamento, mas aí é uma faca de dois gumes porque porque a cristologia que o Calvinismo Confessional concebe em seus documentos históricos é aquela que justificou teologicamente a veneração de ícones e que foi objetada pelos principais grupos aniconistas da Antiguidade.


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Texto de Ermeson Steiner

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