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  • Anderson Hopkins

Papa Gregório Magno e os Ícones Sagrados


Dentro do intenso debate sobre as sagradas imagens ao longo da história, a opinião do grande papa São Gregório I é posta em alta conta devido sua influência nos debates posteriores (cf Gregory the Great: A Symposium. Memory, Instruction, Worship: Contents "Gregory's" Influence on Early Medieval Doctrines of the Artistic Image”). A principal fonte sobre a teoria imagética do santo se encontram nas duas cartas enviadas ao bispo Serenus de Marselha, onde Gregório o parabeniza por impedir a adoração de imagens, mas o repreende por destruí-las, enunciando sua famosa máxima sobre o papel educacional das imagens:


“E, de fato, na medida em que você os proibiu de serem adorados, nós o louvamos totalmente; mas o culpamos por tê-los quebrado... Pois adorar uma imagem é uma coisa, mas aprender através da história de uma imagem o que é para ser adorado é outra. Pois o que a escrita apresenta aos leitores, uma imagem apresenta aos iletrados que contemplam, pois nela até os ignorantes vêem o que devem seguir; nela os analfabetos lêem.” (Book XI, Letter 13)

A historiadora Celia M. Chazelle realizou uma análise extensa destas cartas, ela levanta o questionamento que guiará a argumentação deste texto, apontando sobre o que gregório entendia por “adoração” neste contexto:


“Em primeiro lugar, é evidente agora que esses textos por si só não nos dizem nada sobre as visões de Gregório sobre a validade e o papel de outros tipos de obras de arte além de imagens em grande escala de eventos sagrados colocados à vista do público nas paredes da igreja. …Em segundo lugar, quando Gregório escreveu que as imagens não deveriam ser adoradas - uma palavra que para ele se referia especialmente à honra devida somente a Deus - ele quis dizer simplesmente que elas não deveriam receber a honra devida ao divino (embora presumivelmente outros tipos menores de culto eram aceitos), ou que qualquer culto dado a elas era necessariamente o equivalente à reverência devidamente concedida a Deus e, consequentemente, inaceitável? A única pequena pista que ele sustentava a primeira opinião é fornecida na carta de 600. A afirmação de que a representação de um evento sagrado deve fazer com que seu espectador sinta compunção e prostre-se em adoração à Trindade parece deixar aberta a possibilidade de que tal adoração possa ocorrer diante da obra de arte. Não há nada na afirmação de Gregório que negue isso diretamente, e de fato Gregório pode ter pensado que em igrejas com paredes cobertas de representações artísticas era difícil para os fiéis se prostrarem em adoração à Santíssima Trindade longe de uma imagem.” (CHAZELLE, Celia. Pictures, books, and the illiterate: Pope Gregory letters to Serenus of Marseilles. Pág 143-144).

Uma outra carta gregoriana foi usada pelos defensores das imagens na época da controvérsia iconoclasta, mas em menor escala. Trata-se da carta ao Bispo Januário, onde relata-se que cristãos invadiram sinagogas e lá colocaram uma cruz e uma imagem de Maria. Gregório repreende esses cristãos e manda que restaurem a sinagoga:


“considerantes hae de re vestrae voluntatis intentum, ac magis judicium, his hortamu affatibus, ut sublata exinde cum ea qua dignum est veneratione imagine atque cruce, debeatis quod violenter ablatum est reformare;” (PL, 77. Pág 944)

A ordem de Gregório para que a imagem e a cruz sejam removidos com “a veneração merecida” parece indicar em seu pensamento, no mínimo, certo respeito pelas imagens, mas focaremos nas cartas a Serenus. A princípio é necessário estabelecer que na obra de Gregório não encontramos uma definição da iconodulia, mas isto não é um problema, como veremos, ele na verdade representa um passo largo no desenvolvimento no uso das imagens e sua teologia.


Como analisa Chazelle, o Papa jamais falou sobre outras imagens além de mosaicos nas paredes das Igrejas que apresentavam a vida de “pessoas santas”, não há opiniões ou mesmo condenações sobre o uso de ícones portáteis ou individuais na obra de Gregório. No entanto, parece seguro dizer que ele não se opunha a elas, já que não condenou seu uso na carta a Januário, mas também devido o uso de ícones de Cristo em missões Gregorianas, como na liderada por Santo Agostinho de Cantuária:


"Uma procissão entrou na cidade de Ethelbert chefiada por um padre carregando uma cruz processional de prata, acompanhado por outro carregando uma imagem de Cristo em uma placa, todos cantando 'Deprecamur Domini, uma antifona de uma corrente de oração de Litania na Galia: Nos Te imploramos O Senhor, em Tua grande misericórdia, para que Tua cólera e ira sejam desviados desta cidade e de Tua santa casa, pois pecamos". A procissão ecoou as fadainhas ao ar livre de Roma, a lingua da Igreja e da civilização continental. A cruz processional com sua prata e pedras preciosas prestou homenagem a Cristo, mas também representou para os Kentings a riqueza e o poder dessa crença continental. A cruz havia se tornado o remédio clássico contra os demônios, que a missão crista teria acreditado ter sua base nos templos do reino pagão em cuja capital eles estavam entrando era sua proteção. A figura de Cristo em um quadro soa como um icone bizantino, e talvez fosse uma imitação ocidental, mas imediatamente apontou o contraste entre o cristianismo e o paganismo germânico, que não tinha arte representacional" ("Christians and pagans, the conversion of britain from Alban to Bede" Vale University Press, New Heaven and Lodon, Chapter 5)

Resta saber se Gregório veria algum problema na teologia das imagens apresentada em Nicéia II, que argumenta principalmente em torno da distinção do culto dado a Deus e o culto dado às imagens, uma vez que em suas cartas a Serenus, ele parece entender que o culto que os fiéis prestaram aos mosaicos era aquele culto absoluto que só é devido a Deus. Nessa linha, parece evidente que Gregório concebia outros tipos de culto além da latria, sendo ele mesmo um grande defensor da veneração dos santos, da Virgem Maria, da veneração da cruz e também das relíquias, como relatado em sua carta a Dynamus:


“Nós agora, como bênção do abençoado apóstolo Pedro, enviamos a você uma pequena cruz, na qual estão inseridos os benefícios de suas correntes, que por um tempo amarraram seu pescoço; Além disso, em suas quatro partes ao redor estão contidos benefícios da grelha do bem-aventurado Lourenço, onde ele foi queimado o, para que ela, onde seu corpo foi consumido pelo fogo por causa da verdade, possa inflamar sua alma ao amor do Senhor.” (Registrum Epistolarum. Book III, letter 33)

Seria inconcebível dizer que para Gregório esses cultos representam a mesma coisa visto que em muitos de seus escritos, é possível ver sua condenação a adoração de qualquer outra coisa que não seja Deus. De fato, nas missões gregorianas citadas acima, Gregório sugere que Agostinho não destrua os templos pagãos, mas os santifique, construa altares para as relíquias e substitua o culto dos deuses pagãos pelo culto ao único Deus e aos santos, como forma de facilitar as conversões para o Cristianismo (Conferir: The Christianization of the Anglo-Saxons Saint Gregory the Great and Saint Augustine):


"Diga a Agostinho que ele não deve destruir os templos dos deuses, mas sim os ídolos contidos dentro. Que ele, depois de purificá-los com água benta, coloque altares e relíquias dos santos neles. Pois, se esses templos são bem construídos, eles devem ser convertidos da adoração aos demônios para o serviço do Deus verdadeiro. Assim, vendo que seus locais de culto não são destruídos, o povo vai banir o erro de seus corações e vir a lugares familiares e queridos para eles em reconhecimento e adoração do Deus verdadeiro.” (Gregory I, Letter to Abbot Mellitus, Epsitola 76, PL 77: 1215-1216.https://sourcebooks.fordham.edu/source/greg1-mellitus.txt?fbclid=IwAR0Rs9tFFQxBTXtKLhAXE4SHAFswHpoUfTo8QRpMRK5qinlMtp0evgQOm2c)

Este fato é importante uma vez que estamos falando de recém-conversos do paganismo. Esta atitude demonstra claramente que Gregório acreditava que o culto prestado aos santos não é o mesmo culto prestado aos deuses pagãos!


Além disso, é interessante chamar atenção para o elemento nas cartas realçado por Chazelle. Gregório declara que as imagens causam “compulsão” aos fiéis e assim eles adoram a santíssima trindade. Isto, a rigor, é uma expressão da função didática das imagens enunciada por ele na mesma carta, onde os fiéis aprendem o que deve ser adorado. Porém, na carta a Dynamus ele declara que espera que as relíquias de Lourenço possam “inflamar sua alma ao amor do Senhor”. Ainda que não intencionalmente, esta declaração traça um paralelo com aquela função dos mosaicos na adoração dos fiéis, visto que as duas funções são semelhantes, ambas induzem a pessoa a Deus e a sua adoração. Encontramos na obra de Gregório um possível paralelo entre relíquias, que indiscutivelmente eram veneradas por ele, e as imagens.


É esta veneração das relíquias que João Damasceno aponta como semelhante aos ícones e que fornecem a semente do desenvolvimento para a teologia de Nicéia II. Ainda há outro aspecto que merece ser debatido: Esta declaração também nos parece um versão em germe da declaração de Nicéia:


De fato, quanto mais são contemplados na imagem que os reproduz, tanto mais os que contemplam as são levados à recordação e ao desejo dos modelos originais e a tributar a elas, beijando-as, respeito e veneração; não, é claro, a verdadeira adoração própria de nossa fé, reservada só à natureza divina, mas como se faz para a representação da cruz preciosa e vivificante, para os santos evangelhos e os outros objetos sagrados, honrando-os com a oferta de incenso e de luzes segundo o piedoso uso dos antigos” (Denzinger, pág 218)

Ora, se para Gregório, que na ocasião estava se referindo a mosaicos que representavam “pessoas santas”, as imagens podiam impelir o fiés a adorarem a Santíssima Trindade, não seria nada absurdo dizer que o mesmo poderia acontecer aos santos. Da mesma forma que as imagens induzem a adoração da Trindade, também podem induzir a veneração dos santos que elas representam. O sentido da fala do papa abre margem para esse pensamento, uma vez que Gregório praticava e incentivava o culto aos santos, e também é similar ao que foi proclamado pelo concílio.


Por fim, notamos que embora a opinião gregoriana não represente uma teoria dos ícones intrincada e nos mesmos moldes que o Concílio, ela oferece um passo largo no desenvolvimento da teologia e no papel dos ícones na Igreja, papel esse que começa naquela reverência e respeito que os primeiros cristãos possuíam aos símbolos, pintados e desenhados largamente nas catacumbas, e nas relíquias sagradas. Fecho este texto relembrando a opinião de Gregório sobre a autoridade dos Concílios: “Do mesmo modo que os quatro livros do santo Evangelho, professo acolher e venerar também os quatro concílios” (Denzinger, pág 168)

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