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A evolução do dogma da Imaculada Conceição — Rev. Pe. Francisco Marín-Sola, O.P.

Villian Soares

Sétimo exemplo. — O Concílio Tridentino definiu como dogma de fé o privilégio singular da imunidade da Santíssima Virgem de todo pecado atual, mesmo venial: “Si quis hominem semel iustificatum dixerit… posse in tota vita peccata omnia, etiam venialia, vitare, nisi ex speciali Dei privilegio, quemadmodum de Bta. Virgine tenet Ecclesia: anathema sit.” ¹


Isso, então, é uma verdade revelada. Mas onde e como essa verdade está revelada? Está revelada em outras verdades, nas quais está virtualmente contida e das quais emerge por raciocínio. Essas outras verdades são: primeiro, a Santíssima Virgem é a idônea Mãe de Deus; em segundo lugar, ela não seria a Mãe de Deus idônea ou digna se tivesse sido maculada por um único pecado venial. Destas duas verdades, a primeira de fé e a segunda de razão, surge por raciocínio a verdade dogmática definida pelo Concílio.


Esse raciocínio foi explicado por Santo Tomás assim: “Beata autem Virgo fuit electa divinitus ut esset Mater Dei… Non autem fuisset idonea Mater Dei, si peccasset aliquando… Et ideo simpliciter fatendum est quod Beata Virgo nullum actuale peccatum commisit, nec mortale, nec veniale.”² Que este raciocínio foi o instrumento humano utilizado pela Igreja para desenvolver esse dogma está bem expresso no seguinte texto de Ripalda: “Apostoli crediderunt immunitatem Deiparae a peccato actuali et suam ipsorum beatitudinem futuram, quia noverant perfecte Scripturas exprimentes dignitatem maternitatis Dei et confirmationem ipsorum in gratia, propter quas Ecclesia eas veritates declaravit de fide.” ³


O mesmo já havia sido indicado por Santo Agostinho com bastanteclareza com as seguintes palavras: : “Excepta itaque Sancta Virgine Maria, de qua propter honorem Domini nullam prorsus, cum de peccatis agitur, habere volo quaestionem: inde enim scimus quod ei plus gratiae collatum fuerit ad vincendum ex omni parte peccatum, quae concipere ac parere meruit eum quem constat nullum habuisse peccatum.”


Uma digressão sobre o dogma da Imaculada Conceição. — Em nossa opinião, o dogma da imunidade da Mãe de Deus, de toda mancha do pecado original, vem do mesmo princípio, pelo mesmo processo lógico e com a mesma certeza ou valor demonstrativo que o dogma de sua imunidade de todo pecado atual. Para vê-lo, basta prestar muita atenção ao que era o ponto obscuro e polêmico do dogma da Imaculada Conceição.


Com efeito, todos os teólogos, independentemente da escola, mesmo aqueles que parecem ter-se distinguido mais pela oposição a este dogma, sempre admitiram como indubitável o seguinte princípio: “A Maria, como digna Mãe de Deus que é, devemos atribuir toda aquela graça e santidade, ou toda aquela imunidade do pecado, que seja compatível com a honra de seu Filho, isto é, com sua redenção por meio de Jesus Cristo.” Nunca houve qualquer dúvida ou discussão sobre este princípio, pois este princípio nada mais é do que o entendimento tradicional da gratia plena do Evangelho.

A dúvida e a discussão não giravam em torno dessa maior de fé, mas sim da menor de razão, que era a seguinte: “É assim que é possível ser concebido sem pecado original e ser redimido por Jesus Cristo ao mesmo tempo.” Esta menor de razão é o que constituiu o ponto central de dúvidas e discussões na história do desenvolvimento do dogma da Imaculada.


Enquanto na ideia de pecado original não se distinguiam bem os conceitos de culpa e débito, e enquanto na ideia de redenção não se definiam claramente os conceitos de redenção post contractum peccatum e redenção preventiva, aquela menor formulada de tal maneira absoluta e sem distinções era falsa, e a conclusão devia resultar errada, se não herética. Com efeito, uma Imaculada imune a tudo o que está encerrado na ideia do pecado original, ou seja, imune a toda culpa e a todo débito, é evidentemente uma Imaculada não redimida de forma alguma. E uma Imaculada não redimida por qualquer tipo de redenção, mesmo com redenção preventiva, é claramente uma Imaculada errônea. Em resumo: uma Imaculada sem distinções é uma Imaculada errônea, se não herética.


Pois bem: sem distinções, visto que não costuma fazê-las a piedade espontânea dos fiéis, esta doutrina começou a ser afirmada, e, assim formulada, foi descrita como errônea por São Bernardo, Santo Alberto Magno, São Boaventura e Santo Tomás, junto com outros grandes santos e eminentes teólogos.


Com isso, prestaram um serviço inestimável ao verdadeiro progresso do dogma da Imaculada Conceição, pelo qual já se começou a fazer justiça⁵. Se eles ainda não conduziram totalmente o progresso desse dogma ao longo de seu verdadeiro caminho, pelo menos conseguiram fechar o falso caminho para ele. E pode-se até dizer que foram eles que verdadeiramente o conduziram ou foram a sua causa, porque, ao qualificar uma Imaculada não redimida como errônea, senão herética, obrigaram a piedade e a ciência dos teólogos posteriores a buscar uma Imaculada redimida, ou seja, os encorajaram a buscar algum meio de harmonizar a ideia da Imaculada com a ideia da redenção.


O insigne Scotus e sua escola — nesta matéria, imortal — têm, sem dúvida, a glória de ter iniciado a verdadeira solução do problema, aplicando à ideia de pecado original a distinção entre culpa e débito, e à ideia de redenção a distinção entre redenção post contractam culpam e redenção preventiva.


Com essas duas distinções, que o tempo e as disputas acabaram separando com perfeita precisão e clareza, a famosa menor de razão foi formulada deste modo: “É assim que a imunidade de toda culpa original, desde que contraída um verdadeiro débito pessoal ou próximo, é compatível com a verdadeira e própria redenção preventiva por Jesus Cristo.” Essa menor, assim distinguida e formulada, não é mais falsa, nem duvidosa, nem apenas provável: é certa, clara, evidente, e assim se vê obrigado a confessar o próprio Caetano.


Com uma maior, então, de fé e aceita por todos, e uma menor evidente, foi assegurada a conclusão dogmática da Imaculada Conceição. Para terminar de se impor a todos e se definir pela fé, bastava vencer a terrível força morta das preocupações de escola e de partido, as quais são tão inatas e arraigadas que muitas vezes fazem com que muitos continuem por muito tempo sustentando uma doutrina, mesmo depois de já ter falhado o suporte e fundamento principal sobre o qual seus autores primitivos a sustentaram. Estes são, a nosso ver, e em termos gerais, o curso e o progresso seguidos na história pelo dogma da Imaculada.


O raciocínio dos teólogos, o consentimento dos fiéis e a autoridade da Igreja neste dogma. — Não concordamos, portanto, com aqueles que acreditam que não houve processo lógico no desenvolvimento deste dogma, nem com aqueles que, admitindo que tenha havido, insinuam que, do ponto de vista deste processo, o dogma da Imaculada não está contido no dogma da maternidade divina, ou dele não emerge senão de modo provável. A nosso ver, nele está contido e dele sai de certa forma e por um processo teológico rigoroso e conclusivo; exatamente pelo mesmo processo que a Tradição e a teologia usaram para demonstrar que a Mãe de Deus tinha que ser imune a todo pecado atual.


Por fim, tampouco concordamos inteiramente com aqueles que, no desenvolvimento e definição do dogma da Imaculada Conceição, atribuem tudo ou quase tudo ao sentimento comum dos fiéis, e nada, ou pouco, à razão teológica. Não há dúvida de que havia um sentimento comum, fervoroso e avassalador entre os fiéis sobre esse dogma. Mas, para nós, também é indubitável que tal sentimento jamais teria se tornado unânime, nem poderia ter se sustentado por muito tempo, nem, sobretudo, poderia ter evitado desorientar-se e perder-se sem o freio, a ajuda e a direção da razão teológica. A razão teológica dos grandes mestres do século XIII, demonstrando que uma Imaculada não redimida estava errada, colocou comportas intransponíveis naquele sentimento quando ameaçava lançar-se em falsos caminhos. A razão teológica dos teólogos posteriores, apontando as verdadeiras distinções com as quais uma Imaculada redimida poderia e deveria se defender, abriu um caminho amplo e seguro para aquele sentimento, que é a única coisa que ela precisava para se tornar universal, ardente, irresistível. Tudo sem esquecer o fator principal, isto é, a autoridade da Igreja, que, sob a assistência infalível do Espírito Santo, guiou gentilmente, mas constante e seguramente, tanto os sentimentos dos fiéis quanto a razão dos teólogos para o desenvolvimento e definição dogmática da verdadeira Imaculada Conceição de Pio IX.


Paralelo entre as escolas tomista e escotista a respeito do dogma da Imaculada Conceição. — Em nossa opinião, Santo Tomás e Scotus, com suas duas poderosas e fiéis escolas, desempenharam nesta questão do dogma da Imaculada o mesmo papel, respectivamente, que o leme e o vapor desempenham no movimento e na direção de um navio. Pelo vapor, e não pelo leme, que o navio se move; mas o leme, e não o vapor, é o que faz com que ele se mova na direção certa e que ele chegue com segurança ao verdadeiro porto.


Scotus e sua escola, apoiando nisto o fervoroso sentimento dos fiéis, exclamavam com todas as suas forças que a Mãe de Deus tinha que ser, e era, imaculada, e desejando que chegassem àquele porto, que sua ardente piedade para com a Virgem os fez vislumbrar, eles tiveram mais cuidado em atiçar o vapor e em acelerar o avanço do navio do que em estabelecer a rota por onde deveriam caminhar.

São Tomás e sua escola, acostumados a confrontar o sentimento com a razão, e a não dar novo passo no delicado terreno dogmático sem o farol de antigos dogmas já definidos, clamavam, com não menos vigor, que a Mãe de Deus, como todo filho de Adão, deveria ser verdadeira e pessoalmente redimida pelo sangue derramado no Calvário, e que eles estavam dispostos a bloquear o caminho da própria Mãe de Deus enquanto não a vissem marchar franca e claramente no caminho do débito pessoal, que é o único caminho da Cruz e do Calvário, o único caminho da redenção.


Entre esses dois fatores — o vapor escotista e o timão ou leme tomista — moveu-se lenta, mas seguramente, durante séculos a nau da Imaculada Conceição. Sem Scotus e sua escola, o navio teria avançado pouco ou nada; sem Santo Tomás e a sua, o navio quase certamente teria se perdido. Depois de Deus e sua Igreja, devemos a Scotus e sua escola que a Imaculada tenha sido definida, mas a Santo Tomás e sua escola devemos a definição da verdadeira Imaculada.

Outras escolas também interviram, e muito gloriosamente, mas todas tomando emprestado do escotista o fervor do movimento e do tomista as linhas seguras de direção. Assim, os fatores humanos aparentemente mais opostos contribuem todos para o desenvolvimento do dogma, harmonizados pelo magistério visível da Igreja e pela assistência invisível, mas perpétua, do Espírito Santo.


Por qual raciocínio inclusivo o dogma da Imaculada foi deduzido dos dados revelados. — Depois de escrito o que precede, vemos que o sábio P. Gardeil, aprovando nossa doutrina nesta questão da evolução do dogma, indica que seria interessante mostrar claramente qual é o processo ou raciocínio pelo qual o dogma da Imaculada vem pela via inclusiva do dogma da maternidade divina. (Revue des Sc. Philos. et Theol., Out. 1922, p. 689.)


Nos parágrafos anteriores, acreditamos ter mostrado como o dogma da Imaculada Conceição é deduzida daquele da maternidade divina exatamente pelo mesmo processo e com a mesma certeza que o dogma da imunidade de todo pecado atual. Se esta última dedução não encontrou dificuldades, e a primeira encontrou dificuldades grandíssimas, isso não decorreu da diferença quanto à continência ou quanto à dedução, mas sim porque a primeira dedução, apesar de ser tão lógica quanto a segunda, parecia incapaz de concordar com o dogma da redenção; e no progresso dogmático, não só é necessário atender à lógica especulativa entre a conclusão e o dogma ou princípio do qual é deduzida, mas também à concordância dessa conclusão com todos os outros dogmas. As dificuldades, disputas e atrasos não consistiam em mudar o processo de dedução ou torná-lo mais evidente, mas em fazer desaparecer sua aparente oposição a outro dogma. Assim que ficou claro que Imaculada e redimida não eram contraditórios, a conclusão foi assegurada e definível. Basta ter presente que, tanto na dedução da isenção do pecado atual como do pecado original, é necessário que o raciocínio especulativo se junte ao sentido cristão.


Ambos os dogmas são deduzidos do dogma fundamental expresso pela fórmula tradicional da “digníssima Mãe de Deus”. Pois bem: determinar ou deduzir o que é ou não devido a uma “digníssima mãe”, e muito mais a uma “digníssima Mãe de Deus”, é melhor percebido pelo coração amoroso de uma criança do que pela fria lógica de um sábio. Daí que o sentido cristão dos “filhos de Deus”, ou seja, a fé e o fervor filial do povo cristão para com a sua Mãe, e Mãe de Deus, Maria, tem sido a melhor e maior ajuda da lógica especulativa neste dogma, como foi e será em todos os dogmas que afetam não exclusivamente a inteligência, mas também o coração.


Em resumo, então, o dogma da Imaculada Conceição estava contido, a nosso ver, no depósito revelado como particular no universal condicionado, e seu processo de dedução é o seguinte:


Todos os graus de pureza são devidos à Mãe de Deus, desde que sejam compatíveis com a sua redenção por Jesus Cristo.É assim que a pureza original, com débito pessoal, é compatível com a redenção por Jesus Cristo.Portanto, à Mãe de Deus é devida a pureza original comdébito pessoal.

A maior desse raciocínio é uma universal revelada condicionada, e é admitida por todos os Santos Padres e teólogos, mesmo por aqueles que parecem se opor a esse dogma. São Tomás assim o formula: “Sub Christo, qui salvari non indiguit (esta é a condição para a Virgem) tamquam universalis Salvator, maxima fuit B. Virginis puritas.”⁶ A menor nada mais faz do que purificar a condição incluída na maior revelada. Logo, a conclusão também é implicitamente revelada e definível pela fé divina, pois, como veremos mais adiante (256), é definível pela fé divina tudo o que está contido no depósito revelado como particular no universal.


E, no entanto, a conclusão não é implícita-formal, mas implícita-virtual, porque o universal no qual ela está implicitamente contida não é um universal incondicionado (32), mas condicionado, e de tal condição que sua purificação requer raciocínio próprio, e mesmo profundo e muito difícil. Exige a intervenção de um novo conceito, que é o conceito de “concepção com débito sem mancha”. Na revelação já era conhecido o conceito dogmático de “concepção com débito e mancha”, que é o conceito da concepção ordinária; também era conhecido o conceito dogmático de “concepção sem mancha e sem débito”, que é o conceito da concepção de Jesus Cristo; mas ainda não era conhecido o conceito de “concepção com débito e sem mancha”, que era precisamente o conceito necessário para harmonizar o conceito de Imaculada com o conceito de redenção, ou seja, para purificar a condição da maior revelada. Todas as dúvidas, disputas e atrasos se reduziram a encontrar aquele novo conceito, que é justamente o novo dogma da Imaculada Conceição: novo em termos de explicação, mas não novo em termos de objetividade ou substância, pois já estava implícito na maior revelada.


Mas é preciso lembrar que na dedução em que se infere a isenção, seja do pecado atual, seja do original, o sentido cristão deve ser agregado ao raciocínio especulativo. Estes dois dogmas derivam do dogma fundamental expresso pela fórmula tradicional da “digníssima Mãe de Deus”: idonea Mater Dei. Agora, quando se trata de deduzir o que é ou não devido a uma “digníssima mãe”, e ainda mais a uma “digníssima Mãe de Deus”, o coração amoroso de uma criança é melhor juiz do que a fria lógica do sábio. Eis porque o sentido cristão dos “filhos de Deus”, isto é, a fé filial e a piedade do povo cristão para com Maria, sua Mãe e Mãe de Deus, tem sido para este dogma o melhor e mais poderoso auxiliar da lógica especulativa, como foi e será para todos os dogmas que não interessam exclusivamente à inteligência, mas também ao coração do homem.


 

[1] Denzinger, n. 833


[2] Summ. Theol., iiia, q. 27 , a. 4


[3] Ripalda, De Fide, d. 8, s. 2, n. 26


[4] De natura et gratia, c. 36


[5] Se o corpo da Santíssima Virgem tivesse sido preservado de todo contágio da mancha original antes da infusão da alma, parece claro que não haveria débito pessoal próximo na Virgem, nem, portanto, redenção por Jesus Cristo, sendo a pessoa posterior na natureza à infusão da alma. Ora bem: não só os simples fiéis, mas também o próprio ofício litúrgico da Igreja de Lyon, parece que afirmava a purificação do corpo da Virgem antes da sua animação. […] Se isso é verdade, São Bernardo e os outros doutores prestaram um grande serviço ao dogma, opondo-se a tal festa, assim entendida.


[6] Summ. Theol., iiia, q. 27 , a. 2



 


(“La Evolución Homogenea del Dogma Catolico”, Cap. IV, Sessão III, 208–209. Tradução por Villian Cuauhtlatoatzin)


Tradução: Villian Soares

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