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João Calvino em Defesa da Execução de Hereges

  • Dave Armstrong
  • 23 de ago.
  • 8 min de leitura

- Dave Armstrong 


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Foto Principal: Retrato de João Calvino (escola francesa, século XVI) 

[domínio público / Wikimedia Commons]


Já escrevi diversas vezes sobre a intolerância extrema do antigo líder protestante João Calvino (1509-1564). Os protestantes (na maioria das vezes apenas vagamente familiarizados com a história do assunto e somente de acordo com a tradição que receberam) estão acostumados a pensar que Calvino teve um mero lapso em relação à execução do herege antitrinitário Miguel Serveto em 27 de outubro de 1553, como se isso fosse uma exceção "embaraçosa" à regra de seu posicionamento habitual. Nada poderia estar mais longe da verdade. Já escrevi diversas vezes sobre este tópico geral. Encontrei outro documento relacionado no conjunto de dois volumes, que tenho em capa dura na minha biblioteca, "A Tolerância e a Reforma" (Joseph Lecler, SJ, Nova York: Association Press, 1960, da edição francesa de 1955; traduzido por TL Westow). 


Foi publicado em janeiro de 1554, três meses após a execução de Serveto na fogueira; em grande parte como resultado das críticas recebidas por sua defesa desse evento. Chama-se Declaratio orthodoxae fidei ¹ (texto latino: Calvini Opera, t. VIII, p. 453-644).


O livro está disponível gratuitamente em latim, online [ um dois três quatro ]. A Biblioteca Digital Pós-Reforma contém links para ele em sua página sobre João Calvino. Aparentemente, a obra nunca havia sido traduzida para o inglês até literalmente vinte e cinco dias antes desta escrita (14 de maio de 2025), e o empreendimento é apenas um esforço autopublicado, usando Inteligência Artificial. Talvez eu mesmo comece a trabalhar e traduzir partes dela, usando o Google Tradutor. Esta é uma parte importante da história protestante do século XVI que deve ser conhecida. 

Verdade é verdade, e fatos são fatos.


Nenhuma editora reformada/calvinista — ou qualquer tipo de protestante — achou por bem traduzir a Declaratio para o inglês nos últimos 471 anos. No entanto, muitas vezes, os protestantes se opõem quando eu tão somente observo que seus próprios pais frequentemente procuravam ocultar aspectos desagradáveis ​​de sua história passada (ao mesmo tempo em que exercem um padrão duplo ao proclamar constantemente e de forma barulhenta os "podres" dos católicos que lhes são semelhantes).


Isso também se aplica aos 55 volumes das Obras de Lutero em inglês, que decidiram não incluir vários dos tratados ou cartas mais controversos de Lutero — alguns dos quais venho citando de outras fontes desde 1990. Para seu crédito, os editores desse conjunto decidiram, nos últimos anos, expandi-lo bastante, a fim de refletir o escopo da edição alemã de Weimar, muito maior, de 1883. Agora, ele tem pelo menos 79 volumes.


O Padre Lecler descreve a Declaratio orthodoxae fidei de Calvino como “um dos tratados mais assustadores já escritos para justificar a perseguição de hereges” (Lecler, Vol. 1, 333). Em seguida, cita Calvino, da edição francesa de 1554 desta obra (citarei os números das páginas a seguir) da seguinte maneira:


[As palavras de Calvino estarão em vermelho-vinho]


Nossos simpatizantes, que sentem tanto prazer em deixar heresias impunes, agora percebem que sua fantasia dificilmente se conforma ao mandamento de Deus. Temendo que a Igreja fosse censurada por ser severa demais, eles permitiriam que todos os tipos de erros se espalhassem livremente para garantir a tolerância de um homem. Mas Deus nem sequer permite que cidades e populações inteiras sejam poupadas, mas fará com que os muros sejam arrasados, a memória dos habitantes destruída e tudo frustrado como sinal de sua total aversão, para que o contágio não se espalhe. Ele até nos dá a entender que, ao ocultar um crime, alguém se torna cúmplice. E isso não é de se admirar, visto que se trata aqui de rejeitar Deus e a sã doutrina, o que perverte e viola todo direito humano e divino.  (Lecler, Vol. 1, 333; Declaratio, 47-48; ver Dt 13:12-18)


Calvino continua:


Embora eu admita que os príncipes não têm poder para penetrar o coração humano com seus decretos e movê-los para que se submetam a Deus e se conformem à verdade, sua vocação os obriga, no entanto, a não tolerar que o nome de Deus seja injuriado e que línguas más e venenosas destruam sua palavra sagrada... 


Essa humanidade, sustentada por aqueles que defendem o perdão para os hereges, é uma crueldade ainda maior porque, para salvar os lobos, expõem as pobres ovelhas. Pergunto-vos: é razoável que se permita aos hereges assassinar almas e envenená-las com sua falsa doutrina, é razoável que a espada seja impedida, sendo isso contrário ao mandamento de Deus, de tocar seus corpos, e que todo o Corpo de Jesus Cristo seja dilacerado para que o fedor de um único membro podre permaneça intocado? (Lecler, Vol. 1, 334; Declaratio, 32, 35-36)


Este era, obviamente, o mesmo raciocínio da Inquisição, defendido por São Tomás de Aquino e muitos outros. Todavia, o pensamento de Calvino (parafraseado por Lecler) era que "os 'papistas' não possuem o mesmo direito, de perseguir os protestantes, pelo fato de seguirem uma doutrina falsa!" (Vol. 1, 334). 


Por isso, Calvino escreveu:


As espadas dos perseguidores não podem impedir que os bons e fiéis magistrados apliquem a vara da justiça, a qual era antes aplicada injustamente, em benefício da Igreja; e as torturas sofridas pelos mártires não podem ser um obstáculo à proteção que os bons príncipes concedem aos filhos de Deus. (Lecler, Vol. 1, 335; Declaratio, 21)


TORTURA


Ah, mas será que devemos acreditar que Calvino defendia apenas a pena de morte, mas não a punição "cruel e incomum" bem como também a tortura que a conduziam? Ele certamente não agiu de acordo com esse ideal sublime. 


[As palavras de Calvino estarão em vermelho-vinho]


A respeito dos irmãos Comparet em Genebra no ano de 1555, os quais foram considerados culpados de algum tipo de conspiração contra o governo, o biógrafo não católico de Calvino, Hugh Young Reyburn, escreveu o seguinte:


Um dos dois homens, Comparet, que havia sido preso, foi condenado em 27 de junho [1555] a ter sua cabeça cortada, seu corpo esquartejado e as seções expostas em diferentes lugares de acordo com o costume. Sua cabeça com um quarto de seu corpo foi presa à forca mencionada... o jovem Comparet foi simplesmente decapitado. O carrasco fez seu trabalho tão desajeitadamente que adicionou dores desnecessárias à agonia da vítima, e o Conselho o puniu demitindo-o de seu cargo por um ano e um dia. Calvino, por outro lado, escreveu a Farel em 24 de julho:  "Estou convencido de que não foi sem a vontade especial da parte de Deus que, além de qualquer veredito dos juízes, os criminosos suportaram o tormento prolongado nas mãos do carrasco."  [Opera, xv. 693; cf. xxi. 610] 


Estava determinado a arrancar a verdade dele [François Daniel], e Calvino escreveu a Farel em 24 de julho [Opera , xv. 693; cf. Cartas de João Calvino (Filadélfia), Vol. 3, 206] o seguinte: “Veremos em alguns dias, espero, o que a tortura irá arrancar dele.” Embora não tenha sido consultado sobre a tortura, nem estivesse presente quando ela foi aplicada, Calvino certamente a aprovou...


É lamentável para a reputação de Calvino que ele tenha considerado o uso da tortura justificável em quaisquer circunstâncias, e é ainda mais lamentável que ele tenha elogiado o uso dela para provar o que era evidente... Tudo o que foi provado foi uma explosão repentina na rua, criada pela loucura imprudente de alguns libertinos que estavam meio embriagados. No entanto, o Conselho agiu como se os manifestantes tivessem sido agentes de um plano revolucionário cuidadosamente arquitetado.


Esses incidentes atrozes de Calvino aprovando de forma entusiasmada a tortura ocorreram apenas um ano e meio depois de ele declarar que era contra a tortura, em sua Declaratio orthodoxae fidei. Sem surpresa, não consegui encontrar a Declaratio orthodoxae fidei listada em uma suposta "Obras Completas de João Calvino" em godrules.net. Tampouco a Christian Classics Ethereal Library, que possui 55 obras de Calvino listadas, considerou adequado incluí-la. 


PHILIP SCHAFF


Mas o famoso historiador da Igreja Protestante do século XIX, Philip Schaff, mencionou-a em sua História da Igreja, Vol. 8, § 157. A Defesa de Calvino da Pena de Morte para Hereges


Schaff declarou citando Calvino:


O sentimento público, tanto católico quanto protestante, como vimos, aprovava a doutrina tradicional de que os hereges obstinados deveriam ser neutralizados pela morte, e esse pensamento continuou de forma inalterada até o final do século XVII... Não apenas dissidentes e inimigos pessoais, mas também, como Beza admite, algumas pessoas ortodoxas e piedosas e amigos de Calvino estavam insatisfeitos com a severidade da punição, temendo, não sem razão, que isso justificaria e encorajaria os romanistas em sua cruel perseguição aos protestantes na França e em outros lugares. Nessas circunstâncias, Calvino sentiu que era seu desagradável dever defender sua conduta e refutar os erros de Serveto. Bullinger o encorajou a fazê-lo. Concluiu a obra em poucos meses e a publicou em latim e francês no início de 1554.


Ela tinha caráter oficial e foi assinada por todos os quinze ministros de Genebra. Beza o ajudou nessa controvérsia e se comprometeu a refutar o panfleto de Bellius, o que fez com grande habilidade e eloquência. A obra de Calvino contra Serveto deu completa satisfação a Melanchthon. É a mais forte refutação dos erros de seu oponente que sua época produziu, mas não está isenta de amargura contra alguém que, finalmente, humildemente pediu seu perdão e que foi enviado ao tribunal de Deus por meio de uma morte violenta. É impossível ler sem dor a seguinte passagem:


Quem quer que agora afirme que é injusto condenar hereges e blasfemadores à morte incorrerá consciente e voluntariamente na própria culpa. Isso não é imposto por autoridade humana; é Deus quem fala e prescreve uma regra perpétua para sua Igreja. Não é em vão que ele bane todos os afetos humanos que amolecem nossos corações; que ele ordena que cessem o amor paterno e todos os sentimentos benevolentes entre irmãos, parentes e amigos; e em uma só palavra, que ele quase priva os homens de sua natureza para que nada impeça seu santo zelo. Por que é exigida uma severidade tão implacável senão para que saibamos que Deus é defraudado de sua honra, a menos que se prefira a piedade que lhe é devida a todos os deveres humanos, e que, quando sua glória deve ser afirmada, a humanidade deve ser quase obliterada de nossas memórias?” 


A “Defesa” de Calvino não satisfez completamente nem mesmo alguns de seus melhores amigos. Zurkinden, Secretário de Estado de Berna, escreveu-lhe em 10 de fevereiro de 1554: “Gostaria que a primeira parte do seu livro, a respeito do direito que os magistrados podem ter de usar a espada para coagir os hereges, não tivesse aparecido em seu nome, mas no do seu conselho, que poderia ter sido deixado para defender seu próprio ato. Não vejo como você pode encontrar algum favor entre os homens de mente serena sendo o primeiro a tratar formalmente deste assunto, que é odioso para quase todos.” Bullinger insinuou suas objeções de forma mais branda em uma carta de 26 de março de 1554, na qual diz: “Só temo que seu livro não seja tão aceitável para muitas das pessoas mais simplórias, que, no entanto, são apegadas tanto a você quanto à verdade, em razão de sua brevidade e consequente obscuridade, e da importância do assunto...”


A pena de morte por heresia era tão difundida nos países controlados pelos calvinistas que o Padre Lecler observou:


O martirológio protestante holandês menciona 877 nomes para o século XVI, dos quais 617, ou cerca de dois terços, eram anabatistas. Proporções semelhantes provavelmente seriam encontradas na Suíça e nos países da Europa Central, onde a perseguição foi igualmente severa. 


(Vol. 1, 209; ver Henri Pirenne , Histoire de Belgique , t. III, p. 362, n. 3, baseado na Bibliographie des martyrologes protestants neerlandais, Ghent, 1890)


NOTAS


1 -  "Declaratio orthodoxae fidei" (Declaração da Fé Ortodoxa) refere-se a um tratado de 1554 de João Calvino em que ele defende a execução de hereges, especificamente contra os erros de Miguel Serveto, e advoga em favor da punição de indivíduos que desviam da fé estabelecida por ele.


Tradução: Kertelen Ribeiro

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