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São Vicente de Lérins, o Progresso na Doutrina e as falácias de um Protestante

Islas Porfírio Silva

O apologista protestante brasileiro chamado Pedro Gaião costuma ser ativo em debates envolvendo a doutrina católica e sua história, tanto pelas redes sociais quanto pelo seu blog pessoal “Flancos de Ferro”. Aqui mesmo, no blog da Fraternidade, já existem outros textos refutando as suas alegações como “Papa Gregório Magno e os Ícones Sagrados: Uma resposta ao blog 'Flancos de Ferro'” e “São Paulino de Nola: como o blog "Flancos de Ferro" mentiu para você”. Em breve irei abordar outros temas em que este protestante esteve envolvido como a “Profecia de Huss” e um debate envolvendo a Suficiência material das Escrituras.


Aqui tratarei de um trecho em específico escrito pelo protestante em uma publicação no seu blog chamada. “Da Necessidade de Apostolicidade: Porque o Culto às Imagens não pode ter sido um Desenvolvimento ou uma Evolução”. Nesta publicação ele trata de diversos assuntos que são dispersos e quase sempre não possuem conexão objetiva. Além da questão da historicidade do culto às imagens, ele aborda assuntos como a ecumenicidade do falso Concílio de Hieria e a impossibilidade do desenvolvimento de doutrina no pensamento de São Vicente de Lérins sendo este último o objeto de discussão para este artigo. 


Para Pedro Gaião, a “Regra de Vicente” é uma demonstração que o catolicismo fraudou a história ao afirmar que uma doutrina só é verdadeira ao ser crida literalmente por todos, em todos os lugares e exatamente da mesma forma. E, com os estudos de São John Henry Newman sobre o desenvolvimento da doutrina cristã, dentro da narrativa criada por Pedro Gaião a Igreja passou a abandonar o pensamento de São Vicente adotando um pensamento contrário. Até que ponto podemos dizer que a obra do monge de Lérins anula qualquer possibilidade de desenvolvimento em prol de um cristianismo estático?




I - A REGRA.


São Vicente de Lérins compôs  o “Commonitorium” logo após o Terceiro Concílio Ecumênico (431) sob o pseudônimo de “Peregrinus" para combater os ideais dos hereges na intenção de ser suficientemente claro e preciso. A obra visava distinguir a fé autêntica das inovações heréticas adotando um critério estabelecido em uma regra sobre como encontrar uma medida da verdade que seja inquestionável e infalível, sempre associada à ideia de universalidade, unidade e antiguidade. 


Uma das características que identificamos ao ler os textos de São Vicente é a obrigação de todo cristão de guardar o depósito da fé (Common. 22,53). Ele entendeu a corrupção doutrinária que sempre rondou a Igreja desde o seu princípio necessitava de uma ação que a diferenciasse da ortodoxia, protegendo o que foi entregue de uma vez por todas através do depósito da fé. Este é o papel da chamada “Regra de Vicente de Lérins” ou “Cânone Vicentino” descrita no Commonitorium:


Além disso, na própria Igreja Católica, todos os cuidados possíveis devem ser tomados para que mantenhamos aquela fé que foi crida em todos os lugares, sempre e por todos.In ipsa item Catholica Ecclesia magnopere curandum est ut id teneamus quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est” (Common. 2,6)


Estabelecido o contexto deste assunto, assim conclui Pedro Gaião: 


Desde o século XIX, por conta dos avanços na pesquisa, do nascimento da Historiografia e da maior disseminação de informação, a crença na origem apostólica, universal e contínua de muitos dogmas-chave da religião romana caiu em descrédito, mesmo no seu próprio seio. A máxima de São Vicente de Lérins, usada pela Igreja para alegar que cada uma de suas doutrinas havia sido "crida em todos os lugares, sempre, e por todos" tornou-se intelectualmente equivalente a um tipo de folclore. A máxima de São Vicente de Lérins, usada pela Igreja para alegar que cada uma de suas doutrinas havia sido ‘crida em todos os lugares, sempre, e por todos’ tornou-se intelectualmente equivalente a um tipo de folclore. 


Ignorando os embustes citados como avanços na pesquisa, nascimento da historiografia e disseminação de informação - não é simples coincidência ele não fornecer evidências para tal - as intenções do protestante neste trecho é bastante explícita: impelir um contexto de defasagem como se o trecho escrito por São Vicente de Lérins fosse uma espécie de norma teológica universal e a defesa do sentido restrito como a única via de interpretação. Via esta que, teoricamente, em determinado momento da história passou a ser desacreditada e com a compreensão mais extensa do desenvolvimento doutrinário foi impugnada pela própria Igreja Católica.


O que o apologista protestante não expõe aos seus leitores (propositalmente?) é que o Commonitorium era uma obra totalmente desconhecida para a grande maioria dos teólogos medievais. E, no pouco que foi citada, não havia sistematização restrita obrigatória da regra de Vicente que só foi ter sua disseminação como conhecemos hoje apenas após a controvérsia da Reforma Protestante. Apenas por este fato histórico já é possível perceber que não existe coerência na insinuação da norma restrita como defendida pelo apologista protestante. Não se impugna algo que sequer existiu.


O silêncio que envolve o Conmonitorium ao longo da Idade Média é paralelo à escassez de notícias que observamos na antiguidade sobre o seu autor. Os catálogos das bibliotecas medievais não o mencionam. Seu nome está faltando nos grandes escolásticos, Hugo de São Vítor, Pedro Lombardo, Santo Alberto, São Tomás, São Boaventura, Pedro de Olivi, Escoto, Occam, Wyclef, etc. Por outro lado, a história da Teologia moderna mais do que compensou o esquecimento passado. Após a edição de Sichard em 1528, já existiam 35 edições antes do final do século XVI. Resultado da discórdia entre católicos e protestantes nos dias da Reforma quando ambos os lados invocaram o famoso cânone da Tradição. (MADOZ, 1933, p. 55)

A partir daqui, tratando especificamente da interpretação da Regra, São Vicente entendeu que as interpretações e sentidos expostos pelos hereges seriam, em teoria, contidos ao distinguir a verdade cristã do erro e acreditando na fé sustentada em todos os lugares, sempre e por todos. As palavras ​​do monge são citadas em muitas oportunidades devido a sua simplicidade e objetividade, embora elas também sejam descartadas pelo mesmo motivo. E de fato este padrão estabelecido por São Vicente acaba se tornando não aplicável a quase todos os ensinamentos cristãos. 


Por exemplo, apesar da herança herdada de Nicéia feita sob a ótica das Escrituras para que a Santíssima Trindade fosse reconhecida, não se pode garantir a doutrina com base no consenso dos escritores primitivos como a Regra de Vicente aplicada de forma literal supõe. Isto já colocaria em contradição as evidências históricas com a característica de universalidade e consenso. A sua literalidade gera um resultado maior para dúvidas do que para soluções, pois a aplicação restritiva da regra mutila a sua verdadeira mensagem. Dentro deste contexto, Pedro Gaião cita São John Henry Newman:


“Não parece possível, então, evitar a conclusão de que, qualquer que seja a chave apropriada para harmonizar os registros e documentos da Igreja Primitiva e da Igreja mais tardia e considerando como verdadeiro o ditado de Vicente, deve ser considerado em abstrato, talvez até possível ser aplicado em sua própria época, quando ele quase que poderia pedir aos séculos primitivos o seu testemunho. Isso dificilmente está disponível agora, ou efetivo para qualquer resultado satisfatório. A solução que ele oferece é tão difícil quanto o problema original." (NEWMAN, John H. An Essay on the Development of Christian Doctrine. New York: Longmans, Green and Co., 1927. p. 27.)


E a explicação que o protestante traz para este trecho é que “Newman quebra com a Regra de Vicente”. Passando por cima de padrões básicos de interpretação na citação e manipulando a informação no sentido de tratar São John Henry Newman como antagônico a São Vicente de Lérins, se percebe que apenas uma leitura honesta por parte do apologista protestante da mesma obra citada já seria suficiente para demonstrar que a sua explicação é falsa. 


São John Henry Newman explica que “ser considerado em abstrato” não é uma forma de desprezar a Regra de Vicente em prol de uma ideia completamente nova. A afirmativa é, desde o princípio, apenas sobre a dificuldade da aplicação literal da regra e nada mais além disto. Logo, esta visão restritiva deve ser considerada em abstrato. Isto é uma conclusão lógica.


A Regra de Vicente não é de caráter matemático ou demonstrativo, mas moral, e requer um julgamento prático e bom senso para ser aplicada. Por exemplo, o que se entende por ser 'sempre ensinado'? Isso significa em cada século, em cada ano, ou em cada mês? E 'em toda parte significará em todos os países, ou em todas as dioceses? E será que 'o consenso dos Padres' nos obriga a apresentar o testemunho direto de cada um deles? Quantos Padres, quantos lugares, quantas instâncias preenchem os requisitos do teste proposto? Esta é, portanto, por natureza, uma condição que nunca poderá ser tão plenamente satisfeita quanto poderia. Ela admite aplicação variada e desigual em instâncias variadas; e qual é o grau de aplicação suficiente precisa ser decidido pelos mesmos princípios que nos guiam na condução da nossa vida, que nos determinam na política, no comércio ou na guerra, e que nos levam a aceitar a própria Revelação (em favor da qual temos no máximo a probabilidade para invocar) ou mesmo a acreditar na existência de um Criador inteligente. (NEWMAN, 2020, p. 37)

No mesmo sentido, explica Madoz:


Newman estava muito correto quando disse que o cânone lirinense era mais adequado para saber o que não é católico, do que para saber o que é. O mesmo zelo polêmico o afasta da declamação. Em vez de desvendar o sentido das suas fórmulas, de as fundar devidamente e de apresentar a sua cobertura em aplicações adequadas, o seu pensamento é envolto nos contornos vaporosos das imagens retóricas, a sua mente imprecisa perde-se numa nuvem de declamações intermináveis. Daí a dificuldade em especificar os termos dos seus cânones, e a sua esterilidade e incerteza na sua aplicação. (MADOZ, 1933, p. 132)

E São Newman, acrescentando mais um detalhe, deixa explícito que a estratégia usada por protestantes ao contestar o real sentido da Regra de Vicente é uma mentira. O que Pedro Gaião insinua para São John Henry Newman hoje, já foi desmentido pelo próprio santo há 180 anos atrás.


Não se pense por um só momento que eu contesto a ortodoxia dos primeiros teólogos, ou o peso do seu testemunho para os investigadores justos. Estou apenas avaliando-os segundo essa falsa interpretação da regra de Vicente que é necessária para que ele possa ser invocado contra a Igreja de Roma. (NEWMAN, 2020, p. 44)

Diante disto, o protestante se prova incapaz de compreender o real sentido das referências que ele mesmo utiliza em seu próprio blog. Gaião complementa:


“John Henry Newman se destaca por sua ruptura direta com o tradicionalismo vicentista, propondo um novo modelo de ver as contradições entre o modelo apostólico e aquilo que foi definido posteriormente pelo Magistério Romano: a doutrina se desenvolvia".


Aqui, finalmente, ele já aborda a ideia central do seu texto: o desenvolvimento - ou progresso na doutrina - é incompatível com São Vicente de Lérins. Porém, como anteriormente em todos os aspectos deste assunto, o protestante demonstra inabilidade com o assunto pois é possível entender como a imutabilidade e a integridade do depósito de fé pode ser conservado enquanto ao mesmo tempo se admite desenvolvimento.


II - O PROGRESSO NA DISTINÇÃO ENTRE O LEGÍTIMO E O CORRUPTO


O depósito da fé não mudou e nunca mudará, a verdade é imutável. Porém, com uma infinidade de heresias surgindo e criando problemas para a Igreja primitiva, Vicente se viu forçado a reconhecer uma continuidade que recebe progresso ao longo do tempo já que a aplicabilidade literal e isolada de sua regra cânone não era eficaz. Ele precisava entender com mais clareza o que distinguia as mudanças ilegítimas de doutrina (heresias) de mudanças legítimas, a exemplo das introduzidas pelos concílios ecumênicos. Para expor com precisão esta distinção, Vicente classifica as mudanças em duas possibilidades:


Mas alguém dirá, talvez: Não haverá, então, nenhum progresso na Igreja de Cristo? Certamente; todo o progresso possível. Pois quem há de ser, tão invejoso dos homens, tão cheio de ódio a Deus, que procuraria proibi-lo? No entanto, com a condição de que seja um progresso real (profectus), não alteração da fé (permutatio). Pois o progresso exige que o sujeito seja ampliado em si mesmo e, alteração, que seja transformado em outra coisa.” (Common. 23,54)

Esta distinção em duas hipóteses derruba os limites que classificam a regra cânone como estática e restritiva. O profectus pode ser classificado como um avanço legítimo de algo que já sabido como verdadeiro mas ainda não explicitado com toda a sua plenitude. É a base fundamental do desenvolvimento que preserva o depósito de fé e é guiado pela salvaguarda do Espírito Santo. O permutatio, diferente disto, se propõe a ter o mesmo padrão com a diferença de que ele é uma distorção, um desvio do depósito e da fé original. 


Na conclusão de Vicente de Lérins, a Igreja, em sua plenitude e como guardiã, trabalha na admissão e reconhecimento do profectus enquanto ao mesmo tempo combate com firmeza a prática do permutatio para que assim a fidelidade com a apostolicidade seja preservada. Com esta básica noção do progresso doutrinário no Commonitorium é possível confrontar a afirmação de Pedro Gaião de que o desenvolvimento é uma “ruptura direta com o tradicionalismo vicentista”.



O progresso pode existir desde que a identidade e o princípio sejam cuidadosamente mantidos. O progresso, para que esteja dentro dos limites do profectus, deve preservar o mesmo ensino, o mesmo sentido. A ideia do desenvolvimento doutrinário é tão impregnada nos escritos de São Vicente de Lérins que podemos classificá-la em quatro tipos diferentes (MADOZ, 1933, p. 118):


  • Progresso no conhecimento


A inteligência, então, o conhecimento, a sabedoria, tanto dos indivíduos quanto de todos, tanto de um homem quanto de toda a Igreja, deve, no decorrer das eras e séculos, aumentar e fazer muito e vigoroso progresso; mas ainda apenas em sua própria espécie; isto é, na mesma doutrina, no mesmo sentido e no mesmo significado. (Common. 23,54)


Que aquilo que antes era acreditado , embora imperfeitamente apreendido, conforme exposto por você seja claramente compreendido. Que a posteridade acolha, compreendido por sua exposição, o que a antiguidade venerou sem entender. No entanto, ensine ainda as mesmas verdades que você aprendeu, para que, embora fale de uma maneira nova, o que você fala não seja novo. (Common. 23,54)


  • Progresso na aplicação de palavras mais apropriadas


Finalmente, que outro objetivo os Concílios sempre almejaram em seus decretos, senão providenciar que o que antes era crido com simplicidade fosse no futuro crido com diligência, que o que antes era pregado friamente fosse no futuro pregado com seriedade, que o que antes era praticado negligentemente fosse daí em diante praticado com dupla solicitude? (Common. 23,59)


  • Progresso semelhante ao desenvolvimento da criança, ou ao desenvolvimento da semente em uma planta perfeita


“O crescimento da religião deve ser análogo ao crescimento do corpo, que, embora no decorrer dos anos se desenvolva e atinja seu tamanho total, ainda permanece o mesmo. Há uma grande diferença entre a flor da juventude e a maturidade da idade; no entanto, aqueles que antes eram jovens ainda são os mesmos agora que envelheceram, de modo que, embora a estatura e a forma externa do indivíduo tenham mudado, sua natureza é uma e a mesma, sua pessoa é uma e a mesma. Os membros de uma criança são pequenos, os de um jovem são grandes, mas a criança e o jovem são a mesma coisa. Os homens quando adultos têm o mesmo número de juntas que tinham quando crianças; e se houver algum a quem a idade mais madura tenha dado à luz, estes já estavam presentes no embrião, de modo que nada de novo é produzido neles quando velho, que já não estivesse latente neles quando crianças.


Isso, então, é a verdadeira e legítima regra de progresso, a ordem estabelecida e mais bela de crescimento, que a idade madura sempre desenvolve no homem aquelas partes e formas que a sabedoria do Criador já havia moldado de antemão na criança. Enquanto isso, se a forma humana fosse transformada em alguma forma pertencente a outra espécie, ou pelo menos, se o número de seus membros fosse aumentado ou diminuído, o resultado seria que todo o corpo se tornaria um naufrágio ou um monstro, ou, pelo menos, seria prejudicado e enfraquecido.” (Common. 23,55)


Por exemplo: Nossos antepassados ​​antigamente semeavam trigo no campo da Igreja. Seria muito inapropriado e iníquo se nós, seus descendentes, em vez da verdade genuína do grão, colhêssemos o erro falsificado do joio. Este deveria ser o resultado — não deveria haver discrepância entre o primeiro e o último. Da doutrina que foi semeada como trigo, deveríamos colher, no aumento, doutrina do mesmo tipo — trigo também; de modo que quando no decorrer do tempo qualquer semente original for desenvolvida, e agora florescer sob cultivo, nenhuma mudança pode ocorrer no caráter da planta. Pode haver forma, formato, variação na aparência externa, mas a natureza de cada tipo deve permanecer a mesma. (Common. 23,57)


Esta mesma analogia é encontrada também na formação do processo da teoria do desenvolvimento de doutrina de São John Henry Newman. O que comprova que, ao contrário do que Pedro Gaião supõe, os dois autores têm muito em comum.


Essa preservação é sugerida prontamente pela analogia com o crescimento físico, que ocorre de tal forma que as partes e proporções da forma desenvolvida, embora alteradas, correspondem àquelas que pertencem aos seus rudimentos. O animal adulto tem a mesma estrutura que possuía no nascimento; as aves jovens não se transformam em peixes, nem a criança degenera nos animais, selvagens ou domésticos, sobre os quais têm, por herança, o senhorio. Vicente de Lérins adota este exemplo em diversas referências à doutrina cristã. “Deixe a religião da alma", diz ele, "imitar a lei do corpo que, com o passar dos anos, se desenvolve realmente e revela suas devidas proporções, e contudo permanece idênticamente aquilo que era. Pequenos são os membros de um bebé; os de um jovem são maiores, mas continuam sendo os mesmos. (NEWMAN, 2020, p. 210)

  • Progresso de polimento e aperfeiçoamento de uma fé esboçada e disforme


Pois é certo que essas antigas doutrinas da filosofia celestial devem, com o passar do tempo, ser cuidadas, suavizadas, polidas; mas não que elas devam ser mudadas, não que elas devam ser mutiladas. Elas podem receber prova, ilustração, definição; mas devem reter, ao mesmo tempo, sua completude, sua integridade, suas propriedades características. (Common. 23,57)


Estando provado que o pensamento de São Vicente de Lérins expressa claramente uma noção de progresso que pode ser aplicado ao corpo de doutrinas da Igreja, agora trato do papel da própria Igreja no contexto da Regra.


III - A FORÇA APLICADORA


Pedro Gaião escreve:


São Vicente defende um desenvolvimento que seja "um progresso real, e não uma alteração da fé. [...]; isso é, na mesma doutrina, no mesmo sentido, e no mesmo significado.". São Newman, por oposicão, revela um viés de confirmação digno de um fanático cego:  


"Ainda assim, os fundamentalistas perguntam, onde está a prova da Escritura? A rigor, não há nenhuma. Foi a Igreja Católica que foi comissionada por Cristo a ensinar a todas as nações e ensiná-los infalivelmente. O simples fato de que a Igreja ensina a doutrina da Assunção como definitivamente verdadeira é uma garantia de que ela é verdadeira ".


Podemos observar que, ao atribuir a São Vicente de Lérins o correto zelo pela preservação da doutrina, o protestante exclui a necessidade do papel da Igreja neste no pensamento do autor. Pedro Gaião induz a São Newman o adjetivo de “fanático cego” atribuindo um trecho da obra de Keating ao santo:

Foi a Igreja Católica que foi comissionada por Cristo para ensinar todas as nações e ensiná-las infalivelmente. O mero fato de que a Igreja ensina a doutrina da Assunção como algo definitivamente verdadeiro é uma garantia de que é verdade. Aqui, é claro, entramos em um assunto totalmente separado, a questão da sola scriptura, que é considerada em outro lugar. É suficiente dizer que não há problema com uma Igreja infalível definindo oficialmente uma doutrina que, embora não esteja em contradição com a Escritura, não pode ser encontrada em sua face. Afinal, a Bíblia não diz nada contra a Assunção; silêncio não é o mesmo que rejeição, embora, com certeza, silêncio também não seja o mesmo que afirmação. Silêncio é apenas silêncio. (KEATING, 2010, p. 252)

Ignorando o fato do protestante escolher este trecho aleatoriamente e sem nenhuma ligação objetiva, levemos em consideração que São Newman detém o mesmo princípio de apelação à autoridade da Igreja para decidir o que é um desenvolvimento legítimo. Ou seja, diante do pensamento de São Vicente, São Newman estaria em pleno erro. Será? Veremos que não.


Por conclusão lógica, se existe uma regra então deve existir uma força aplicadora. Podemos considerar duas possibilidades para a aplicação correta da regra vicentina contra os hereges: a suficiência (material) das Sagradas Escrituras e, logo após, a Igreja através de sua Tradição e autoridade que extrai as informações sobre alguma doutrina e as ordena da forma correta. Dentre as duas frentes, a Sagrada Escritura se destaca como a principal autoridade doutrinária do monge. Mas, em um contexto onde a interpretação das Escrituras está em disputa, é preciso recorrer à Tradição e aos ensinamentos de legítimos representantes da Igreja. Vicente reconhece que as heresias já antigas e/ou difundidas com mais frequência podem ser combatidas através da autoridade dos concílios para garantir que a Revelação não seja distorcida e que as Escrituras sejam interpretadas sempre no mesmo sentido.


Que se eu ou qualquer outra pessoa desejasse detectar as fraudes e evitar as armadilhas dos hereges à medida que se levantam, e continuar sãos e completos na fé universal, devemos, com a ajuda do Senhor, fortalecer nossa própria crença de duas maneiras; primeiro, pela autoridade da Lei Divina, e depois, pela Tradição da Igreja Católica. Mas aqui alguém talvez pergunte: Uma vez que o cânon da Escritura é completo e suficiente por si mesmo para tudo, e mais do que suficiente, que necessidade há de juntar a ele a autoridade da interpretação da Igreja? Por esta razão — porque, devido à profundidade da Sagrada Escritura , nem todos a aceitam no mesmo sentido, mas um entende suas palavras de uma maneira, outro de outra; de modo que parece ser capaz de tantas interpretações quanto há intérpretes. […] Portanto, é muito necessário, por conta de tão grandes complexidades de tais vários erros, que a regra para o correto entendimento dos profetas e apóstolos seja enquadrada de acordo com o padrão de interpretação eclesiástica e católica.” (Common, 2,4–5)

Vicente viu na Igreja uma salvaguarda para garantir que a doutrina cristã fosse preservada sob a luz da apostolicidade através das declarações dogmáticas de seus concílios que representam universalidade, antiguidade e onipresença de uma doutrina. A Igreja não inova, ela trabalha para manter a imutável ‘regula fidei’ fornecendo a instância concreta e legítima para a aplicação da regra vicentina. Não existe Regra de Vicente sem a autoridade infalível da Igreja para aplicá-la. A Igreja determina o que é legítimo e o que não é.


Através deste raciocínio, Vicente defendeu como exposição genuína da Revelação termos não bíblicos que dificilmente passariam pelo crivo da regra vicentina de forma restrita tal como “homoousios” (Nicéia) e “Theotokos” (Éfeso). A crença de Vicente em uma hierarquia interpretativa — onde a Igreja é o topo — é exposta com clareza na sua defesa dos Concílios Ecumênicos.


Mas as heresias já amplamente difundidas e antigas não devem de modo algum ser tratadas assim, visto que, com o passar do tempo, há muito tiveram a oportunidade de corromper a verdade. E, portanto, quanto aos cismas e heresias mais antigos, devemos refutá-los, se necessário, pela única autoridade das Escrituras, ou, pelo menos, evitá-los como já tendo sido condenados pela universalidade dos concílios do Sacerdócio Católico. (Common, 28,71)

E aqui podemos observar que São Vicente de Lérins também deveria ser classificado como “fanático cego” por Pedro Gaião já que ele, assim como São Newman, determina que a decisão da Igreja para o que é de fé deve ser aceita sem nenhum tipo de questionamento ou escrúpulo. 


[...]Primeiro, eles devem verificar se alguma decisão foi dada nos tempos antigos quanto ao assunto em questão por todo o sacerdócio da Igreja Católica, com a autoridade de um Concílio Geral; e, segundo, se alguma nova questão surgir sobre a qual nenhuma decisão tenha sido dada, eles devem então recorrer às opiniões dos santos Padres, pelo menos daqueles que, cada um em seu próprio tempo e lugar, permanecendo na unidade da comunhão e da fé , foram aceitos como mestres aprovados; e tudo o que estes possam ter sustentado, com uma só mente e com um só consentimento, deve ser considerado a doutrina verdadeira e católica da Igreja, sem qualquer dúvida ou escrúpulo. (Common, 29,77)

Assim explica Guarino:


Primeiro e mais importante, o cânone não é apenas sobre o passado remoto. É verdade que Vicente nos encoraja a olhar para o consenso da antiguidade. Mas quando é precisamente a antiguidade? Se começa com a era apostólica, há um distinto ‘terminus ad quem’ [V]? Nenhum término desse tipo é invocado por Vicente. […] Vicente está insistindo que já existe uma maneira — sempre enraizada nas Escrituras como o fundamento inabalável — para garantir que o ensino apostólico continue imaculado. Para Lérins, os Concílios de Nicéia e Éfeso, as reuniões formais dos mestres reunidos em toda a Igreja, representam por si mesmos o julgamento consentido de uma antiguidade [o que é de fé]. (GUARINO, 2013, p. 5)

IV - CONCLUSÃO


Para os parágrafos do trecho contido na publicação do blog protestante, três argumentos foram utilizados pelo apologista protestante: A Regra de Vicente era normativa e apenas sua interpretação restritiva é a correta, A Regra de Vicente não admite desenvolvimento, a Regra de Vicente diz que a Igreja não possui papel fundamental na aferição do que deve ser ou não uma doutrina legítima. Vimos aqui que todas estas questões são falsas e que o apologista Pedro Gaião demonstra pouquíssima competência ao tratar deste assunto.


Nenhum autor ousa negar que São Vicente de Lérins reivindica que a Igreja passou por progresso durante seu desenvolvimento. Isto é provado pelo fato do apologista protestante apelar apenas para o próprio raciocínio de causa nos seus argumentos. Nenhuma fonte ou evidência foi apresentada por ele a não ser suas próprias conclusões. Mesmo autores ortodoxos que costumam ser conservadores na interpretação da Regra admitem que existe a ideia do progresso na doutrina no pensamento de São Vicente, ainda que apenas em sua terminologia. Podemos, inclusive, afirmar que São Vicente foi o primeiro teólogo a dar uma noção mais robusta de características formativas para a teoria do desenvolvimento da doutrina. Teoria esta que, séculos depois, foi aperfeiçoada por São John Henry Newman ao provar que a Igreja, na medida em que dá forma visível àquilo que Deus anunciou na sua Revelação, permite também a sua perfeita compreensão.


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REFERÊNCIAS


Commonitorium (Vincent of Lerins), De Nicene and Post-Nicene Fathers,’ Second Series, Vol. 11. Editado por Philip Schaff e Henry Wace. (Buffalo, NY: Christian Literature Publishing Co., 1894.) Disponível em: http://www.newadvent.org/fathers/3506.htm


MADOZ, José. El Concepto de la Tradicion en S. Vicente de Lérins: Estudio del “Conmonitorio”. Analecta Gregoriana, vol. V, 1933.


GUARINO, Thomas. Vincent of Lerins and the Development of Christian Doctrine, Baker Academic, 2013.


NEWMAN, J.H. Ensaio Sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã, Cultor de Livros; 1ª edição, 2020.


KEATING, Karl. Catholicism, and Fundamentalism. Public Domain Mark 1.0. Disponível em: https://archive.org/details/karl-keating-catholicism-and-fundamentalism/page/n5/mode/1up


 

Sou Católico e Jesus Cristo é meu Senhor.

Nenhum inimigo da Sua Santa Igreja me assusta.



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