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  • Anderson Hopkins

São Justino Mártir e o Sola Scriptura

Uma análise sobre o equívoco de se usar os escritos de São Justino Mártir, um dos primeiros apologistas cristãos, como suporte para o conceito fundamental do protestantismo.



Ainda permeia no meio protestante uma tentativa de embasar o Sola Scriptura, princípio central da reforma protestante, nos escritos dos padres da Igreja e de escritores cristãos antigos. De fato, as aberrantes evidências contrárias ao Sola Scriptura na antiguidade [1] põem os protestantes em uma péssima situação, visto que se este princípio não remete a Igreja antiga, todo o movimento pretensamente restauracionista assim como toda a base epistemológica da reforma caí por terra.


Recentemente, mais uma dessas tentativas vieram a tona em uma página protestante, onde, baseando-se no Diálogo com Trifão de São Justino, eles tentaram rastrear esse ensino na Igreja antiga, apontando que em Justino encontramos “uma das defesas mais antigas registradas do Sola Scriptura” [2]. Este texto pretende não só responder às alegações da página, mas também oferecer uma visão geral do pensamento de São Justino. A página apresenta uma passagem do capítulo trinta e dois do Diálogo com Trifão, onde Justino declara:


Senhor, se as Escrituras que vos citei não dissessem que sua figura era sem glória e que sua geração é inexplicável, que por sua morte os ricos serão entregues à morte, que por suas feridas nós somos curados e que devia ser conduzido como ovelha; se, por outro lado, eu tivesse distinguido duas vindas dele: uma em que foi transpassado por vós; outra em que reconhecereis a quem transpassastes e vossas tribos baterão no peito, tribo por tribo, as mulheres de um lado e os homens de outro; então, o que digo poderia parecer obscuro e difícil. [3]

Antes de partirmos para uma análise do pensamento geral de Justino, é preciso primeiro estabelecer o contexto em que esta obra foi escrita. Trifão era um judeu que argumentava contra Jesus, alegando que ele não cumpria o que foi profetizado, sendo assim, Justino buscou argumentar apenas com o Antigo Testamento, que era aceito por ambos os cristãos e judeus. Isso fica claro em torno de todo o debate e mais ainda nas declarações de Justino ainda no mesmo parágrafo:


Contudo, em todos os meus raciocínios eu parto das Escrituras proféticas, que são santas para vós, e apoiado nelas eu vos apresento as minhas demonstrações, esperando que alguém de vós possa encontrar-se no número dos [4].

Este fato já é suficiente para refutar a suposta presença do Sola Scriptura neste trecho, uma vez que dentro do contexto do debate, não faria sentido apelar para uma Tradição Apostólica não aceita e irrelevante para o seu oponente [5]. Dito isso, é necessário ter em mente que as obras de Justino que chegaram até nós possuem uma natureza apologética, seja contra pagãos ou contra judeus, e ele não trata explicitamente sobre o papel da Igreja ou da Tradição, mas devido a alguns fatores, parece seguro dizer que ele não defendia uma regra de Fé como a Sola Scriptura: A princípio, temos o fato de que Justino foi uma fonte de Santo Irineu de Lyon, um defensor inegável da existência de uma Tradição Apostólica e da autoridade da Igreja [6]; Como citado por Dave Armstrong, Brooke Foss Westcott, estudiosa protestante da patrística, há uma indicação em Justino de uma Tradição Apostólica:


“De fato, há traços do reconhecimento de uma doutrina Apostólica autorizada em Justino, mas não se pode afirmar, a partir da forma de sua linguagem, que ele olhou isso como contido em um Novo Testamento escrito. "Fomos ordenados", diz ele, "pelo próprio Cristo a obedecer não aos ensinamentos dos homens, mas àqueles preceitos que foram proclamados pelos Profetas abençoados e ensinados por Ele mesmo". Mas este ensinamento de Cristo não se limitou estritamente a Suas próprias palavras, como Justino explica em outra passagem:


Assim como Abraão creu na voz de Deus e isso lhe foi reputado como justiça, nós também cremos na voz de Deus, pois ele nos fala novamente pela boca dos apóstolos de Cristo, depois que ele foi anunciado pelos profetas, e por essa fé renunciamos até à morte a tudo o que pertence ao mundo. [Diálogo com Trifão, cap 119. Tradução da editora Paulus]

Assim, as palavras dos Apóstolos eram, na sua opinião, em certo sentido, as palavras de Cristo e, portanto, temos razão em interpretar sua linguagem em geral, de modo a estar de acordo com o julgamento certo de seus sucessores imediatos. Seus escritos marcam a era de transição da regra oral para a regra escrita. Seu reconhecimento de um Novo Testamento foi prático e não formal. As circunstâncias da Igreja Cristã ainda não tinham levado à separação final dos escritos canônicos dos Apóstolos de outros que reivindicavam mais ou menos diretamente a autoridade dos mesmos.” [7]


Visto isso, é evidente que a tentativa protestante de encontrar a Sola Scriptura em um pai da Igreja como Justino é, antes de tudo, anacrônica e em última instância uma tentativa quase desesperada de salvaguardar um fundamento crucial, mas ainda extremamente frágil da epistemologia protestante.


NOTAS E REFERÊNCIAS:


[1] Veja “Não Somente pelas Escrituras”, de Robert Sungenis


[2] Em outra publicação, a página tenta rastrear o mesmo pensamento em Irineu de Lyon, isso será respondido em uma publicação futura.


[3] Dialogam com Trifão, capítulo 32. Editora Paulus.


[4] Ibid


[5] Para uma análise mais detalhada da obra, veja “Some Reections on the Dialogue of Justin Martyr with Trypho”, de H. P. Schneider.


[6] Veja Contra as Heresias.


[7] Para um desenvolvimento maior dos argumentos apresentados aqui, leia os artigos de Dave Armstrong: https://www.patheos.com/blogs/davearmstrong/2017/04/justin-martyr-d-c-165-vs-sola-scriptura.html


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