Sobre a Supremacia do Papa
- Jefferson Santos
- 8 de jul.
- 43 min de leitura
Cardeal Nicholas Patrick Stephen Wiseman
Tradução: Jefferson Santos
MATEUS XVI, 17-19
«Bem-aventurado és, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas meu Pai, que está nos céus. E eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do reino dos céus; e tudo o que ligares na terra será ligado também nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado também nos céus.»

A linha de demonstração, talvez um pouco interrompida pelas duas últimas preleções, conduziu-vos, espero, meus irmãos, a formar uma concepção da Igreja de Cristo conforme as imagens empregadas e as instituições descritas na palavra escrita de Deus. Ela vos foi apresentada em ambas sob a forma de um reino sagrado, no qual todas as partes estão cimentadas e firmemente unidas em unidade de crença e prática, resultante de um princípio comum de fé, sob uma autoridade constituída por Deus. Mas a aplicação dessa descoberta foi necessariamente adiada; pois apenas determinamos vagamente a existência dessa autoridade na Igreja de Cristo, sem definir onde, como ou por quem ela deve ser exercida.
A tendência, até onde examinamos, de toda instituição na Igreja para produzir e nutrir essa unidade religiosa, nos levará naturalmente a supor que a autoridade que principalmente a assegura deve igualmente ser convergente, em seu exercício, para o mesmo atributo. Vimos como, na antiga lei, a autoridade constituída para ensinar se estreitou em etapas sucessivas, até se concentrar em um homem e sua linhagem; vimos como todas as figuras dos profetas nos levaram a esperar uma forma de governo justamente simbolizada como uma monarquia; e embora Deus deva ser seu Governante, e o Filho de Davi seu Cabeça eterno, ainda assim, como sua ação sobre o homem é invisível e indiscernível, enquanto os objetos e fins visados, como a unidade de fé, são sensíveis e dependentes de circunstâncias externas, poderíamos naturalmente esperar encontrar alguma autoridade vicária ou representativa que, e só ela, pudesse assegurar esses benefícios à Igreja.
Com efeito, pareceria bastante antinatural que todas as outras instituições nela fossem exteriores e visíveis, e aquela, de todas a mais necessária para lhes dar eficácia, fosse de natureza contrária e tal que não pudesse ter poder sobre os elementos que se destinava a controlar.
É ao exame deste ponto importante que desejo voltar a vossa atenção esta noite; e nos resultados da nossa investigação, confio que encontrareis a perfeita conclusão daquele plano que até agora vos tenho exposto. Pois assim como, começando pelo alicerce, lançado nos princípios mais simples e baseado na palavra de Deus e nas instituições de ambas as alianças, vimos gradualmente erguer-se diante de nós esta sagrada morada de Deus com os homens, assim também esta porção que agora acrescentarei pode ser considerada a pedra angular de todo o edifício, pela qual ele é firmado e mantido unido, estreitamente ligado e, ao mesmo tempo coroado, — aquilo que simultaneamente assegura e adorna, fortalece e completa.
Mas, ao abordar, como naturalmente haveis suposto que é minha intenção fazer, a Supremacia da Santa Sé, sinto-me confrontado por tantos preconceitos populares, tantas deturpações repetidas, que algumas observações preliminares se tornam necessárias. O que entendem, pois, os católicos pela Supremacia do Papa, que durante tantos anos nos foi exigido abjurar, se quiséssemos participar dos benefícios das leis do nosso país? Significa nada mais do que isto: que o Papa ou Bispo de Roma, como sucessor de São Pedro, possui autoridade e jurisdição, em coisas espirituais, sobre toda a Igreja, de modo a constituir-se seu cabeça visível e vigário de Cristo na terra. A ideia desta Supremacia envolve dois privilégios distintos, mas intimamente ligados: o primeiro é que a Santa Sé é o centro da unidade; o segundo, que ela é a fonte da autoridade. Pelo primeiro, entende-se que todos os fiéis devem estar em comunhão com ela, através dos seus respectivos pastores, que formam uma cadeia ininterrupta de ligação desde o mais humilde membro do rebanho até aquele que foi constituído seu pastor universal. Violar esta união e comunhão constitui o grave crime de cisma e destrói um princípio constitutivo essencial da religião de Cristo.
Igualmente sustentamos que o Papa é a fonte da autoridade; pois todos os governantes subordinados na Igreja estão sujeitos a ele e recebem direta ou indiretamente a sua jurisdição dele e por ele. Assim, o poder executivo está investido em suas mãos para todos os fins espirituais dentro dela; a ele foi confiada a missão de confirmar seus irmãos na fé; é seu ofício velar pela correção dos abusos e pela manutenção da disciplina em toda a Igreja; em caso de erro surgindo em qualquer parte, ele deve fazer as investigações necessárias para descobri-lo e condená-lo; e ou trazer os rebeldes à submissão, ou separá-los, como ramos secos, da videira. Em casos de desordem grave e influente na fé ou na prática, ele convoca um concílio geral dos pastores da Igreja; preside-o pessoalmente ou por seus legados; e sanciona, com sua aprovação, os seus cânones ou decretos.
Que, com tal crença acerca das altas prerrogativas do soberano Pontífice, a maior veneração deva ser sentida para com ele por todo católico, não pode ser motivo de surpresa. Seria, pelo contrário, antinatural supor que um respeito proporcional ao seu alto ofício pudesse ser recusado. Quando São Paulo repreendeu severamente Ananias por ordenar que ele fosse injustamente golpeado na boca, e quando os que estavam presentes disseram: “Ultrajas o sumo sacerdote de Deus?”, São Paulo respondeu: “Não sabia, irmãos, que ele era o sumo sacerdote; pois está escrito: Não falarás mal do príncipe do teu povo.” Dessas palavras é evidente que um respeito e honra são devidos a qualquer um constituído em tal dignidade, independentemente de suas virtudes ou qualificações pessoais. Segue-se igualmente que tão alta dignidade pode ser conferida sem referência à isenção de seu detentor de pecado e crime. Na verdade, é uma deturpação frequentemente repetida que os católicos imaginam o supremo Pontífice como livre de toda responsabilidade por transgressão moral, como se acreditassem que nenhuma ação realizada por ele pudesse ser pecaminosa. Dificilmente será necessário negar uma imputação tão grosseira e absurda.
Não apenas o sabemos, por mais exaltado que seja, tão sujeito à maldição de Adão quanto o mais humilde de seus súditos, mas o consideramos exposto a perigos ainda maiores devido à sua própria elevação; acreditamos que ele está sujeito a todas as causas habituais de ofensa e obrigado a recorrer às mesmas precauções e aos mesmos remédios que outros homens frágeis.
A supremacia que eu descrevi é de caráter puramente espiritual e não tem conexão com a posse de qualquer jurisdição temporal. A soberania do Papa sobre seus próprios domínios não é parte essencial de sua dignidade: sua supremacia não era menor antes de ser adquirida, e se os insondáveis decretos da Providência, no curso dos séculos, privassem a Santa Sé de sua soberania temporal, como aconteceu com Pio VII devido à usurpação de um conquistador, seu domínio sobre a Igreja e sobre as consciências dos fiéis não seria, com isso, prejudicado.
Nem essa supremacia espiritual tem qualquer relação com o amplo domínio outrora exercido pelos pontífices sobre os destinos da Europa. Que a chefia da Igreja naturalmente conquistasse o maior peso e autoridade, em um estado social e político fundamentado em princípios católicos, não nos surpreende. Esse poder surgiu e desapareceu com as instituições que o produziram ou sustentaram e não faz parte da doutrina mantida pela Igreja acerca da supremacia papal. Mas sobre este e outros temas semelhantes, frequentemente alvo de preconceito, poderei acrescentar algumas observações adicionais, se o tempo permitir, ao final do discurso desta noite.
Como a preeminência reivindicada pela Igreja Católica para o Bispo de Roma se baseia na circunstância de ele ser o sucessor de São Pedro, segue-se que o direito pelo qual essa reivindicação é sustentada deve naturalmente depender da demonstração de que o apóstolo possuía tal autoridade e jurisdição superiores. O tema da disquisição desta noite torna-se portanto duplo; pois, primeiro, devemos examinar se São Pedro foi investido por nosso Salvador com uma superioridade, não meramente de dignidade, mas também de jurisdição, sobre os demais apóstolos; e, se assim for, devemos ainda determinar se isso foi apenas uma prerrogativa pessoal ou tal que fosse necessariamente transmitida a seus sucessores, até o fim dos tempos.
1. Era uma prática comum entre os mestres judeus conferir um novo nome a seus discípulos, por ocasião de alguma demonstração distinta de excelência; havia sido o meio ocasionalmente usado pelo Todo-Poderoso para denotar um evento importante na vida de seus servos, quando os recompensava por fidelidade passada, concedendo-lhes alguma preeminência notável. Foi assim que Ele alterou os nomes de Abraão e Sara, quando fez com o primeiro a aliança da circuncisão; prometeu à segunda um filho em sua velhice; e abençoou ambos, para que deles surgissem “nações e reis de povos”. Foi assim que Jacó recebeu dEle o nome de Israel, quando, após lutar com um anjo, foi-lhe dada a garantia de que sempre seria capaz de prevalecer contra os homens. É singular que, no momento em que Simão foi apresentado ao nosso bendito Redentor, ele recebeu a promessa de que uma distinção semelhante lhe seria concedida. “Tu és Simão, filho de Jonas, tu serás chamado Cefas, que se interpreta Pedro.”
Foi por ocasião de sua confissão da missão divina do Filho de Deus que a promessa foi cumprida. No início da resposta de nosso Salvador, Ele ainda o chama por seu antigo nome: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne nem sangue que to revelou, mas meu Pai que está nos céus”. Ele então procede à inauguração de seu novo nome: “E eu te digo que tu és Pedro”. De acordo com a analogia dos exemplos citados acima, devemos esperar alguma alusão no nome à recompensa e distinção que o acompanhava. E este é realmente o caso. O nome Pedro significa uma rocha; pois na língua falada nesta ocasião por nosso Salvador, não existe a mais leve diferença, mesmo hoje, entre o nome pelo qual este apóstolo, ou qualquer um que leve seu nome, é conhecido, e a palavra mais comum que indica uma rocha ou pedra. Por isso a frase de nosso Redentor soaria da seguinte forma aos ouvidos de sua audiência: “E eu te digo que tu és uma rocha”. Agora veja como a parte restante da frase seguiria em conexão com o preâmbulo: “e sobre esta rocha edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Tal é a primeira prerrogativa concedida a Pedro: ele é declarado a rocha sobre a qual a Igreja inexpugnável será fundada.
2. Nosso Salvador prossegue dizendo: “E eu te darei as chaves do Reino dos Céus; e tudo o que ligares na terra será ligado também nos céus; e tudo o que desligares na terra será desligado também nos céus”. A segunda prerrogativa é a posse das chaves e o poder de fazer decretos, que serão necessariamente ratificados nos céus.
3. Às duas amplas autoridades concedidas aqui devemos acrescentar uma terceira comissão distinta, conferida a ele após a ressurreição, quando Jesus por três vezes lhe pediu uma prova de amor superior ao dos outros apóstolos, e por três vezes lhe deu a incumbência de alimentar todo o seu rebanho, — seus cordeiros e suas ovelhas. “Quando, portanto, eles haviam jantado, Jesus disse a Simão Pedro: Simão, filho de João, amas-me mais do que estes? Ele lhe disse: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Ele lhe disse: Apascenta os meus cordeiros. Ele lhe disse novamente: Simão, filho de João, amas-me? Ele lhe disse: Sim, Senhor, tu sabes que te amo. Ele lhe disse: Apascenta os meus cordeiros. Ele lhe disse pela terceira vez: Simão, filho de João, amas-me? Pedro entristeceu-se porque ele lhe dissera pela terceira vez: Amas-me? E ele lhe disse: Senhor, tu sabes todas as coisas; tu sabes que te amo. Jesus lhe disse: Apascenta as minhas ovelhas.”
Com base nestas passagens principalmente, a Igreja Católica sempre manteve que São Pedro recebeu uma preeminência e supremacia espirituais. E, realmente, se nestas várias incumbências foi dado a Pedro um poder e jurisdição que lhe eram próprios exclusivamente, e superiores aos conferidos a todos os outros apóstolos, será prontamente reconhecido que tal supremacia, como cremos, lhe foi realmente concedida por Deus.
Ora, o fato de ele ter sido constituído o fundamento da Igreja implica tal jurisdição. Pois, qual é a primeira ideia que esta figura sugere, senão que todo o edifício cresce em unidade e recebe solidez por ter sido encaixado e rebitado nesta base comum? Mas, o que pode ser simplesmente efetuado, num edifício material, pelo peso ou tenacidade de suas partes componentes, só pode ser permanentemente assegurado num corpo moral por uma influência coercitiva, ou pelo exercício de autoridade e poder. Chamamos as leis de base da ordem social, porque é seu ofício assegurar, por sua administração, os justos direitos de todos, punir transgressores, arbitrar diferenças, garantir uniformidade de conduta em todos os seus súditos. Chamamos nossa tríplice autoridade legislativa de fundamento da Constituição Britânica; porque dela emanam todos os poderes que regulam as partes subordinadas do corpo político, e nela repousam o governo, a modificação, a reforma do todo.
E observai, eu vos peço, que este raciocínio exclui a possibilidade, não apenas de uma autoridade superior, mas até mesmo de uma autoridade igual e coordenada. Pois, se as leis não são supremas, mas existe uma regra de força igual, e não sujeita ao seu controle, ainda assim atuando na mesma esfera e sobre os mesmos objetos, reconhecereis que elas não são mais a base de uma ordem que não podem garantir e preservar. Se uma nova autoridade surgisse no Estado, igualmente habilitada a legislar, governar e dirigir, como as atuais autoridades supremas, sem que elas pudessem interferir, e as desafiando, pergunto-vos se todo o tecido político não seria necessariamente dissolvido, e se uma desorganização geral não se seguiria? Não é evidente que estas autoridades perderiam sua denominação atual, e não mais formariam o fundamento de nossa constituição? Aplicai este raciocínio ao caso de Pedro. Ele é constituído o fundamento de um edifício moral; pois tal é a Igreja. A nomeação em si implica um poder para manter unidos os materiais do edifício num todo unido; e isto claramente vimos consistir na autoridade suprema para controlar e governar suas partes constituintes.
Tem-se argumentado — e esta é a única interpretação do texto pela qual nossos oponentes podem fazer até mesmo uma oposição aparente — que este caráter de Pedro foi cumprido por ele ter sido o primeiro enviado para converter tanto judeus quanto gentios, de modo que a Igreja pudesse ser dita como tendo surgido e brotado dele; e que, nesse sentido, ele foi o fundamento da Igreja. Mas, meus irmãos, foi ele assim feito a rocha sobre a qual esta Igreja foi fundada? Se nosso Bendito Salvador tivesse dito: “Tu lançarás o fundamento da minha Igreja”, este sentido poderia ter sido dado às suas palavras. Mas não há diferença entre tal frase e “tu serás a rocha sobre a qual eu a edificarei?” Em outras palavras, esta figura pode implicar nada mais do que ele deveria dar um início ao edifício; que ele deveria colocar a primeira pedra? Alguém daria a outro o nome de rocha, para significar esta relação entre ele e um edifício? Não há ideia de estabilidade, de durabilidade, de firmeza, transmitida pelo nome, mas apenas uma de simples começo?
Mas raciocinemos um pouco mais de perto. Alguém ousaria aplicar a isso um exemplo paralelo? O Evangelho foi pregado pela primeira vez aos irlandeses por São Patrício e aos anglo-saxões por Santo Agostinho; vocês ousariam dizer que Patrício ou Agostinho foram o fundamento dessas duas Igrejas, ou a rocha sobre a qual elas foram construídas? Quando se diz que Jesus Cristo é o fundamento sobre o qual somente alguém pode edificar, vocês permitiriam que o ariano sustentasse que deste texto nada mais poderia ser concluído, senão que o cristianismo surgiu dele, e não que ele é “o consumador, assim como o autor da nossa fé”, que ele é o objeto assim como o instituidor da nossa crença? Quando somos ditos como “edificados sobre o fundamento dos apóstolos”, vocês permitiriam que o livre-pensador afirmasse que isso lhes dava nenhuma outra distinção senão a de terem pregado a fé primeiro, e que não se quer dizer que sua autoridade dê evidência do cristianismo, ou de sua verdade? E ainda assim estes teriam o direito de argumentar assim, se, de Pedro ser chamado a rocha sobre a qual a Igreja é fundada, nenhuma outra consequência pudesse ser tirada senão que ele foi a pessoa que teve que começar sua formação.
Em segundo lugar, nosso Salvador não diz meramente que Pedro é a rocha sobre a qual a Igreja deve ser fundada, mas, além disso, que, em consequência desse fundamento, esta Igreja será inexpugnável e inamovível. “Sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.” Digo que esta sentença evidentemente implica que a Igreja será imperecível, em consequência deste fundamento sobre Pedro; porque a conexão entre as duas ideias, de um fundamento firme e de um edifício durável, é tão estreita e natural, que os usos da linguagem nos obrigam a considerá-las reunidas apenas em virtude dessa conexão. Para provar isso com um exemplo familiar: quando nosso Salvador diz que o homem insensato “edificou a sua casa sobre a areia, e vieram as chuvas, e sopraram os ventos e bateram contra aquela casa, e ela caiu,” imediatamente concluímos, ainda que não esteja expressamente dito, que a fácil queda daquela casa é atribuída à instabilidade de seu fundamento. Da mesma forma, teríamos atribuído a firmeza da casa do construtor prudente à circunstância mencionada, que foi edificada sobre a rocha, mesmo que nosso Salvador não tivesse expressamente dado a mesma razão. No nosso caso, portanto, como a Igreja de Deus é dita estar fundada sobre Pedro, como sobre uma rocha, e, ao mesmo tempo, é declarada impenetrável aos poderes da destruição, podemos concluir que esta segurança contra a ruína é a consequência natural de estar assim fundamentada. Pedro, então, não é apenas o iniciador da Igreja, mas seu verdadeiro sustentáculo; e isso, como já vimos, exige poder e autoridade.
A segunda prerrogativa de Pedro, a comissão de segurar as chaves e de ligar e desligar, não menos implica jurisdição e poder. Isso também foi explicado da mesma maneira, como se apenas implicasse que Pedro deveria abrir as portas da Igreja para judeus e gentios. Mas alguém pode acreditar em um significado tão frio e, poderíamos quase dizer, tão mesquinho como esse? Onde, em qualquer ocasião, entre escritores profanos ou sagrados, essa imagem foi usada nesse sentido? A entrega das chaves sempre foi um símbolo do confiar da suprema autoridade para comandar. É assim usada na Escritura. Deus “porá sobre o ombro” do Messias “a chave da casa de Davi; e ele abrirá, e ninguém fechará; e fechará, e ninguém abrirá” — isto é, Deus lhe dará o comando supremo na casa de Davi. Da mesma forma, diz-se que ele recebeu “as chaves da morte e do inferno,” para significar seu domínio supremo sobre ambos.
Entre as nações orientais, essa conexão do poder real com seus emblemas é fortemente marcada. O mais preciso dos anais orientais nos conta como as chaves do templo de Meca estavam nas mãos de certa tribo, e com elas o comando naquele lugar; e tão necessariamente esses dois estavam unidos que, quando as chaves materiais foram arrancadas por fraude de seu possuidor, ele perdeu irrevogavelmente seu domínio sobre o santuário. E, em outra ocasião, ele mostra que a posse do emblema realmente conferia o poder que representava. Entre as nações europeias, a mesma analogia existe, embora talvez não tão fortemente. Pois, quando se diz que as chaves de uma cidade foram confiadas a alguém por seu soberano, quem pensaria em entender com isso que lhe foi dado poder para abrir ou fechar seus portões a estranhos e recém-chegados? E quando se diz que as chaves de uma fortaleza foram entregues a um conquistador, quem não entende que a posse do lugar forte e o domínio sobre ele são igualmente transferidos? E não está implícito o mesmo sentimento no costume, que agora se tornou mera cerimônia, nesta cidade, de seu portão ser fechado quando o monarca a visita, e as chaves serem apresentadas a ele por seu magistrado-chefe, implicando assim que a autoridade suprema prevalece sobre a que foi meramente delegada? Quando, portanto, Pedro recebe as chaves do Reino dos Céus, ou da Igreja, só podemos considerá-lo como investido de seu comando supremo.
O mesmo deve ser dito do poder de ligar e desligar. Seja que o entendamos como autoridade para decretar e proibir, ou para punir e perdoar, as únicas duas interpretações que têm alguma plausibilidade; ou, com maior probabilidade, unamos as duas, igualmente implica um privilégio de jurisdição.
Finalmente, a comissão irrestrita para alimentar todo o rebanho de Cristo implica um primado e jurisdição sobre o todo. Pois a comissão para alimentar é uma comissão para governar e dirigir. Nos clássicos mais antigos, como Homero, cuja linguagem se aproxima mais da Escritura, reis e chefes são distinguidos pelo título de “pastores do povo”. No Antigo Testamento, a mesma ideia aparece constantemente, especialmente ao falar de Davi, contrastando sua ocupação inicial de guardar os rebanhos de seu pai com sua posterior nomeação para governar o povo de Deus. É uma imagem favorita dos profetas descrever o governo do Messias e de Deus sobre sua herança escolhida, depois que ela fosse restaurada ao favor. E o próprio nosso Bendito Redentor a adota ao falar da conexão entre ele e seus discípulos — suas ovelhas que ouvem sua voz e o seguem. Nos escritos dos apóstolos, encontramos, a cada passo, a mesma ideia. São Pedro chama Cristo de “Príncipe dos Pastores” e ordena ao clero que alimente o rebanho que está entre eles; e São Paulo adverte os bispos que havia reunido em Éfeso que foram postos sobre seus rebanhos pelo Espírito Santo para “governar a Igreja de Deus”.
Mas, de fato, meus irmãos, resumindo os argumentos extraídos dessas diversas comissões, se nelas São Pedro não recebeu jurisdição e autoridade, tampouco os apóstolos as receberam em qualquer outro lugar. Analisem todos os cargos jamais conferidos a eles, e não encontrarão nenhum mais decisivo em favor de sua autoridade do que serem chamados fundamentos da Igreja, — serem investidos do poder de ligar e desligar, com a certeza de ratificação no Céu, — e serem constituídos governantes e pastores do rebanho de Cristo.
São Pedro, então, meus irmãos, primeiro nas proximidades de Cesareia de Filipe e depois no mar da Galileia, foi solenemente investido de uma autoridade e jurisdição distintamente conferidas somente a ele, como recompensa por profissões de fé e de amor que partiram dele individualmente, precedidas por uma mudança de nome e um discurso pessoal que mostraram terem sido concedidas exclusivamente a ele. Ele foi, portanto, investido de uma autoridade de natureza distinta e superior à de seus colegas apóstolos, que se estendia a toda a Igreja pela comissão de alimentar todo o rebanho; que excluía a ideia de autoridade coordenada, como a rocha sobre a qual todos devem ser mantidos em unidade; que pressupunha comando supremo pela posse das chaves. E tudo isso é mais que suficiente para estabelecer sua supremacia.
Existem apenas dois meios de escapar dessa conclusão. O primeiro nega o fato em que nossas provas se fundamentam, e é uma objeção fraca; o segundo apenas nega as conclusões e exigirá mais atenção.
No primeiro desses pontos, refiro-me à tentativa feita há muitos anos e recentemente renovada de provar que a rocha sobre a qual Cristo promete que edificará a Igreja não era Pedro, mas Ele mesmo. Supõe-se que, tendo dirigido-se a esse discípulo na primeira parte de sua frase, dizendo-lhe: “Tu és Pedro”, isto é, uma pedra, nosso Salvador subitamente mudou o assunto do discurso e, apontando para si mesmo, disse: “E sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”. Essa interpretação, como percebereis, meus irmãos, pode se vangloriar mais de sua engenhosidade do que de sua plausibilidade; parece antes calculada para revelar os expedientes a que nossos oponentes se sentem obrigados a recorrer para fugir de nossos argumentos, do que para oferecer qualquer resistência efetiva à sua força. Se a partícula conjuntiva e o pronome demonstrativo “esta” não forem suficientes para conectar duas partes da mesma frase, já não estará ao alcance das formas gramaticais fazê-lo. Se pudermos afastar-nos do significado óbvio de uma frase, meramente supondo que ela foi ilustrada, quando proferida, por sinais ou gestos omitidos na narração, então a imaginação deverá ser considerada tão útil quanto a razão na explicação da Escritura. Não apenas isso, mas todos os que estão familiarizados com as corrupções da moderna ciência bíblica entre os protestantes da Alemanha sabem que, por esse expediente de imaginar e suprir olhares, gestos e palavras que supõem terem sido omitidos, tentativas as mais arbitrárias têm sido feitas para minar a verdade dos milagres mais importantes do Novo Testamento. Com igual razão poderíamos dividir o discurso de Deus a Abraão, quando mudou seu nome, e, depois de dirigir-lhe as palavras: “Não se chamará mais o teu nome Abrão, mas serás chamado Abraão, porque te constituí pai de muitas nações”, interpretar as palavras seguintes, “e te farei crescer excessivamente,” como dirigidas não ao patriarca, mas a seu filho Ismael; om igual direito como nas palavras de nosso Salvador, que o anjo apontava para este último.
Mas há outra objeção ao nosso raciocínio, mais plausível e ponderosa; porque, sem pretender fugir ao significado óbvio das palavras, procura desarmá-las de toda a sua força; porque admite os fatos que são palpáveis e apenas combate nossas conclusões. É verdade, tal é o argumento a que me refiro, que Pedro recebeu um poder e uma jurisdição, e que estes lhe foram conferidos individual e distintamente, como recompensa devida a seus méritos superiores; mas não é menos verdade que nada foi aqui dado a Pedro que não tenha sido posteriormente concedido aos doze. No Apocalipse, os doze fundamentos da Jerusalém celestial têm inscritos “os nomes dos doze apóstolos do Cordeiro”. São Paulo diz aos fiéis que os apóstolos são o fundamento sobre o qual estão edificados. Estes, portanto, não são menos o fundamento da Igreja do que Pedro. Novamente, no capítulo 18 de São Mateus, é conferido aos doze exatamente o mesmo poder de ligar e desligar na terra, com um efeito correspondente no céu, como é conferido a Pedro no capítulo 16. Assim, as faculdades aqui concedidas a ele são posteriormente estendidas a todos os seus companheiros, e tudo o que lhe foi dado individualmente é absorvido na comissão comum e geral, na qual os demais foram colocados em pé de igualdade com ele.
Confesso, meus irmãos, que este argumento à primeira vista, tem alguma aparência de solidez; e não me surpreendo ao ver muitos comentaristas protestantes fundamentarem sua rejeição à Supremacia de Pedro quase exclusivamente neste raciocínio. Seria realmente fácil iludir sua força; mas desejo convertê-la em um argumento a meu favor. Ouvi, então, com atenção, eu vos peço. — Diz-se que Pedro não recebeu preeminência de jurisdição porque não lhe foi conferido nenhum poder ou comissão individual que não tenha sido, em outra ocasião, concedido coletivamente aos doze. Ora, é assim que raciocinais em qualquer outro caso semelhante na Escritura, ou não é diametralmente oposto? Vejamos alguns exemplos. Nosso Bendito Salvador inculcou constantemente a todos os seus discípulos, e mesmo a todos os seus ouvintes, a necessidade de segui-Lo. Apenas “aquele que segue não anda nas trevas”; todos devem “tomar a sua cruz e segui-Lo”; todas as suas ovelhas devem conhecer Sua voz e seguir o pastor.
Quando, portanto, Ele dirigiu individualmente a Pedro e André, a Mateus e aos filhos de Zebedeu, o mesmo convite, “Segue-me”, ocorreu-vos alguma vez raciocinar que, como o mesmo convite foi repetido, em outras ocasiões, a todos os judeus em comum com eles, portanto, não se pretendia que O seguissem de maneira distinta e mais peculiar? Novamente, diz-se repetidamente que nosso Bendito Redentor amou ternamente todos os seus apóstolos; Ele os chamou não de servos, mas de amigos — sim, ninguém poderia ter maior amor por outro do que Ele manifestou por eles, dando a vida por eles. Quando, portanto, João é simplesmente chamado por si só de discípulo amado, como todos os outros discípulos também são ditos terem sido amados, pensastes alguma vez em argumentar que, como nada mais é predicado dele isoladamente em um caso do que de todos os doze em outros, portanto o amor de Jesus por João não era nada distintivo e preeminente? Mais uma vez. A todos os apóstolos foi dada a comissão de ensinar todas as nações, de pregar o Evangelho a toda criatura, começando por Jerusalém e Samaria, até os confins da terra.
Quando, portanto, o Espírito de Deus lhes disse para separar Saulo e Barnabé para o ministério dos gentios, ou quando Paulo individualmente se chama apóstolo deles, pensastes alguma vez em concluir que, como esta comissão individual estava incluída e compreendida na geral dada a todos, portanto Paulo nunca foi investido de nenhuma missão pessoal, não recebeu aqui mais do que os outros apóstolos, e apenas arrogou sem fundamento para si o apostolado dos gentios como seu ofício peculiar? Se em todos esses casos não admitiríeis tais conclusões, como podem ser admitidas no caso de Pedro? Por que seus poderes especiais devem ser invalidados apenas por aqueles que recebeu em comum com os demais?
Mas eu disse que não me contentaria em apenas responder à objeção, mas desejaria obter um argumento a favor da minha causa, e ele é brevemente este: Pelos exemplos que dei, é evidente que posso extrair esta regra ou cânone de interpretação na Escritura quando um chamado, uma prerrogativa, uma comissão é concedido a uma pessoa singularmente, ainda que o mesmo tenha sido concedido a outros coletivamente, e a ela mesma junto com eles, deve-se supor que ela recebeu um grau distinto e superior em relação aos demais. Assim, portanto, deve ser com Pedro. Se os apóstolos foram investidos de autoridade nas comissões dadas a eles, quando apenas o mesmo havia sido dado a ele individualmente, ele deve ter adquirido, por isso, um grau mais elevado dessa autoridade do que eles. Mas não vos desagradará ouvir esta objeção respondida por um Padre do século III, da Igreja Grega.
Assim escreve o arguto e erudito Orígenes: “O que antes foi concedido a Pedro parece ter sido concedido a todos, — mas como algo singularmente excelente devia ser concedido a Pedro, foi dado somente a ele: ‘Eu te darei as chaves do Reino dos Céus’. Isso foi feito antes que as palavras 'tudo o que ligares na terra' fossem pronunciadas (no capítulo 18). E verdadeiramente, se considerarmos as palavras do Evangelho, ali encontraremos que as últimas palavras eram comuns a Pedro e aos outros, mas que as primeiras, ditas a Pedro, implicavam uma grande distinção e superioridade.” Eu poderia acrescentar que a comissão para apascentar o rebanho de Cristo não é dada em nenhum lugar aos outros; e se o fosse, eu perguntaria: seria necessário que nosso Salvador exigisse três vezes de Pedro uma afirmação de que O amava mais do que os outros, para que ele estivesse qualificado a receber uma recompensa igual?”
Há ainda outra passagem que não incluí nas já mencionadas, porque nela não há uma concessão expressa de autoridade, embora ela claramente estabeleça uma distinção entre as prerrogativas de Pedro e as dos outros apóstolos, mostrando como ele seria objeto de um cuidado e proteção especiais: “E o Senhor disse: Simão, Simão, eis que Satanás vos pediu para vos peneirar como trigo. Mas eu roguei por ti, para que tua fé não desfaleça; e tu, uma vez convertido, confirma teus irmãos.” Nesta passagem, Cristo parece traçar uma nítida distinção entre os desígnios de Satanás contra todos os apóstolos e o Seu próprio interesse em relação a Pedro. A oração de nosso Salvador é oferecida especificamente por ele, para que sua fé não desfaleça e para que, uma vez levantado de sua queda, ele fosse o fortalecedor dessa virtude entre seus companheiros apóstolos. Nele, então, haveria uma medida maior dessa virtude; e por que, se ele não fosse de modo algum superior aos outros membros desse corpo? Ou, antes, a própria comissão para fortalecer a fé deles não implica que ele foi colocado em uma posição mais elevada e de autoridade?
Mas já fui suficientemente extenso sobre essas provas de que Pedro recebeu uma jurisdição suprema e um primado sobre toda a Igreja, além dos outros apóstolos; e, em conformidade com essa visão, nós o vemos sempre nomeado como o primeiro entre eles, sempre assumindo a liderança em todas as suas ações comuns, sempre falando como o órgão da Igreja.
Mas, se Pedro realmente desfrutou dessa distinção, como vimos, não teria sido um privilégio pessoal, que terminou com aquele a quem foi concedido? É hora de examinar este ponto e provar-vos que ele o transmitiu a seus sucessores em sua sé.
Eu presumo que não será necessário entrar em qualquer argumento para mostrar que São Pedro foi o primeiro Bispo de Roma. Os monumentos que ainda existem em todas as suas partes, e o testemunho de escritores eclesiásticos desde os tempos mais antigos, colocam o fato acima de qualquer dúvida; e basta dizer que autores da mais alta eminência literária, e notáveis por sua oposição à supremacia da Sé Romana, como Cave, Pearson, Usher, Young e Blondel, tanto o reconheceram quanto o apoiaram. Entre os modernos, pode ser suficiente observar que nenhum escritor eclesiástico de nota pretende negar esse fato. “A Pedro”, como observa Santo Irineu, “sucedeu Lino; a Lino, Anacleto; e então, em terceiro lugar, Clemente”. E, a partir desse momento, a série dos Papas é ininterrupta e certa até os dias atuais. Tendo isso como premissa, procederei a expor brevemente alguns dos argumentos que provam a perpetuação do primado de São Pedro naqueles que ocupam sua sé.
1. Em primeiro lugar, sempre se entendeu, desde o início, que quaisquer prerrogativas de jurisdição, ainda que pessoais, trazidas a uma sé por seu primeiro bispo eram continuadas a seus sucessores. Assim a cátedra de Alexandria foi primeiramente ocupada por São Marcos, que, como discípulo de Pedro, desfrutou de jurisdição patriarcal sobre o Egito, a Líbia e a Pentápole, e essa jurisdição permanece até hoje ligada à sua sé. Tiago governou Jerusalém primeiro e exerceu autoridade sobre as Igrejas da Palestina, e o Bispo de Jerusalém permanece até hoje como patriarca. Pedro sentou-se primeiro na cátedra de Antioquia, e essa cátedra sempre reteve seu domínio sobre uma grande parte do Oriente. Da mesma forma, portanto, se à Sé de Roma ele trouxe não apenas o patriarcado do Ocidente, mas o primado sobre o mundo inteiro, essa jurisdição acidental tornou-se inerente à sé e hereditária por vinculação a seus sucessores.
2. Mas isso pode parecer colocar a supremacia da Santa Sé na mesma autoridade que a dos patriarcados, isto é, em uma autoridade eclesiástica ou disciplinar; enquanto nós sustentamos que ela é detida por um direito divino e imprescritível. Em segundo lugar, portanto, afirmo que ela é transmitida como uma instituição divina na Igreja de Deus, formando uma parte integral e essencial da mesma. Jesus Cristo, meus irmãos, é o mesmo ontem e hoje. Assim como Ele estabeleceu Seu reino no princípio, assim deveria ser perpetuado até o fim; aquela forma de governo que Ele instituiu em sua fundação não pode ser alterada, mas deve continuar a governá-la até o fim dos tempos. Por que então a autoridade episcopal não foi meramente prerrogativa dos apóstolos e discípulos? Por que seus sucessores, em suas respectivas sés, empunharam seu báculo, e ensinaram, e ordenaram, e corrigiram, e puniram, assim como eles haviam feito, senão porque a própria natureza da Igreja exigia que o tempo não alterasse sua constituição hierárquica? Ora, se Pedro foi feito o fundamento da Igreja, não se poderia entender que após sua morte o fundamento fosse despedaçado, e as pedras do santuário dispersas pelo mundo.
Dois objetivos estão evidentemente incluídos sob a figura de tal fundamento: unidade e durabilidade. Pois a unidade no edifício resulta de todas as suas partes estarem conectadas por um único alicerce ou base: e os primeiros Padres entenderam que a supremacia foi conferida a Pedro principalmente para assegurar esta bênção à Igreja. “Um dos doze é escolhido”, diz São Jerônimo, “para que, pela nomeação de uma cabeça, fosse removida a ocasião de cisma.” “Para manifestar a unidade”, diz São Cipriano, “Ele ordenou autoritativamente que a unidade brotasse de um.” “Você não pode negar”, escreve São Optato, “que São Pedro, o chefe dos apóstolos, estabeleceu uma cátedra episcopal em Roma: esta cátedra era uma, para que todas as outras pudessem preservar a unidade pela unidade que tinham com ela, de modo que quem quer que erguesse uma cátedra contra ela, seria um cismático e um transgressor. É nesta única cátedra, que é a primeira marca da Igreja, que São Pedro se assentou.”
Ora, meus irmãos, se para preservar a unidade na Igreja nosso bendito Salvador julgou necessária a instituição de um primado, quando ainda o fervor do cristianismo estava ardente e intacto, quando os apóstolos ainda viviam, dispersos pelo mundo, cada um sob a especial orientação do Céu, quando o número de cristãos era comparativamente pequeno, quando quase todos os membros da Igreja pertenciam a um mesmo estado, falavam uma só língua e não estavam divididos por predisposições políticas ou nacionais; eu pergunto, haveria menos necessidade de tal salvaguarda quando o esfriamento da caridade celestial, as luzes inferiores dos pastores, a dispersão mais ampla dos fiéis e a divisão de estados e reinos tornaram infinitamente menores os meios humanos e as possibilidades morais de preservar a unidade na crença e na prática? Se então a unidade é uma característica essencial da verdadeira fé, e se o estabelecimento de uma supremacia foi o meio de assegurá-la, como demonstram a própria ideia de seu fundamento e os testemunhos da Igreja antiga, então essa supremacia necessariamente se torna igualmente essencial à verdadeira religião de Cristo, assim como a unidade que ela sustenta; e consequentemente deve ser perpétua.
A segunda qualidade incluída sob a figura do fundamento sobre esta rocha é a durabilidade. Já mostrei que as palavras de nosso Salvador claramente implicam que a durabilidade da Igreja era uma consequência de seu fundamento. Mas ser imperecível em consequência de seu fundamento implica que o próprio fundamento não falhará, mas permanecerá para sempre. Vimos que esse fundamento consistia em uma jurisdição suprema concedida a Pedro; e a conclusão necessária é que essa jurisdição suprema deve perdurar na Igreja até o fim dos tempos.
3. Em terceiro lugar, a autoridade de Pedro deve ter sido intencionada para ser perpétua no cristianismo, porque verificamos que, desde os primeiros tempos, todos reconheceram sua existência em seus sucessores, como um direito inerente. O Papa Clemente examinou e corrigiu os abusos da Igreja de Corinto; Vítor, os de Éfeso; Estêvão, os da África. São Dionísio, no terceiro século, convocou seu homônimo, patriarca de Alexandria, a comparecer perante ele para prestar contas de sua fé, como havia sido acusado por seu rebanho em Roma; e o santo patriarca obedeceu sem murmurar. Quando Santo Atanásio foi destituído da mesma sé pelos arianos, o Papa Júlio convocou todas as partes perante si e foi acatado por todos. Além de restaurar esse grande patriarca à sua sé, ele tomou conhecimento da causa de Paulo, patriarca de Constantinopla, e o restaurou da mesma maneira. O grande São João Crisóstomo, patriarca da mesma Igreja, quando injustamente deposto, escreveu ao Papa Inocêncio, implorando que lhe fosse permitido um julgamento. Selecionei esses poucos exemplos de autoridade suprema, exercida pelos Bispos de Roma sobre os prelados e até mesmo os patriarcas do Oriente, durante os quatro primeiros séculos, meramente como amostras escolhidas dentre muitas outras que o tempo não me permitirá mencionar.
Se eu tentasse apresentar-vos, em sua totalidade, a autoridade dos Padres sobre este assunto, certamente prolongaria meu discurso além de minha medida habitual. Contentar-me-ei, portanto, com uma seleção muito limitada. Santo Irineu, um dos mais antigos, escreve o seguinte: — “Como seria tedioso enumerar toda a lista de sucessores, limitar-me-ei à de Roma, a maior, mais antiga e mais ilustre Igreja, fundada pelos gloriosos apóstolos Pedro e Paulo, recebendo deles sua doutrina, que foi anunciada a todos os homens, e que, através da sucessão de seus bispos, chegou até nós. A esta Igreja, por causa de sua superior chefia, todas as outras devem recorrer, isto é, os fiéis de todos os países. Eles, portanto, tendo fundado e instruído esta Igreja, confiaram sua administração a Lino. A ele sucedeu Anacleto; depois, em terceiro lugar, Clemente. A Clemente sucedeu Evaristo; a ele, Alexandre; e então Sixto, que foi seguido por Telésforo, Higino, Pio e Aniceto. Mas Sóter, tendo sucedido Aniceto, Eleutério, o décimo segundo desde os apóstolos, governa agora a Igreja.”
Da mesma forma, Tertuliano apresenta um método conciso para resolver diferenças e controvérsias — indicando às partes contendentes que recorram à Igreja apostólica mais próxima — “se na África”, diz ele, “Roma não está longe, à qual podemos recorrer prontamente”; e então acrescenta: — “Feliz Igreja! que os grandes apóstolos impregnaram com todas as suas doutrinas e com seu sangue.”
Avançando um pouco mais no tempo, encontramos São Cipriano usando exatamente a mesma linguagem; pois ele escreve nos seguintes termos: — “Depois dessas tentativas, tendo escolhido para si mesmos um bispo, ousam navegar e levar cartas de cismáticos e homens profanos à cátedra de Pedro e à Igreja principal, de onde surgiu a unidade sacerdotal; sem considerar que os membros dessa Igreja são romanos (cuja fé foi elogiada por Paulo), aos quais a perfídia não pode ter acesso.” Assim ele não apenas a chama de Sé de Pedro e de Igreja principal, mas também afirma que dela brota a única unidade possível, e que está protegida de todo erro por um cuidado especial da Providência Divina.
Outro testemunho notável e ainda mais forte encontramos nos decretos do concílio realizado em Sárdica, na Trácia, a pedido de Santo Atanásio, do qual participaram 300 bispos. Em seus decretos consta esta expressão: — “Parecerá mais apropriado que, de todas as províncias, os sacerdotes do Senhor se refiram à cabeça — isto é, à Sé de Pedro.” Então temos aqui um concílio reconhecendo que havia um recurso final à cabeça da Igreja; e esta é especificada como sendo a Sé de Pedro, onde residiam seus sucessores.
São Basílio Magno recorre ao Papa Dâmaso sobre as aflições de sua Igreja; e para comovê-lo mais, apresenta exemplos de intervenções anteriores dos Pontífices Romanos nos assuntos de sua Sé. Estas são suas palavras: — “Dos documentos preservados entre nós, sabemos que o bem-aventurado Dionísio — que entre vós foi eminente por sua fé e outras virtudes — visitou com suas cartas nossa Igreja de Cesareia; confortou nossos antepassados e libertou nossos irmãos da escravidão. Mas nossa condição agora é muito mais lamentável. — Por que, se não estiverdes agora disposto a nos ajudar, em breve todos, sendo submetidos aos hereges, não restará ninguém a quem possais estender vossa mão.” Em outra passagem ele diz que Eustáquio, Bispo de Sebaste, tendo sido deposto, dirigiu-se a Roma; o que foi tratado entre ele e o Bispo daquela cidade ele não sabia; mas, ao retornar, Eustáquio apresentou uma carta do Papa ao Concílio de Tiana, com base na qual foi imediatamente restaurado à sua Sé. De modo que aqui, um bispo oriental recorre ao Papa, retorna com uma carta dele a um sínodo provincial; e, embora seja evidente que neste caso São Basílio considera que havia algum motivo para sua deposição, todavia, com a exibição da carta do santo Pontífice, ele é restaurado em seus direitos.
São Jerônimo, escrevendo ao mesmo Papa, dirige-se a ele em termos que qualquer católico dos dias atuais poderia usar, e talvez vá ainda além: — “Não sigo outro senão Cristo, unido à comunhão de Vossa Santidade, isto é, à cátedra de Pedro. Sei que a Igreja está fundada sobre aquela Rocha. Quem come o Cordeiro fora dessa Casa é um homem profano. Quem não está na arca perecerá no dilúvio. Mas como, estando retirado no deserto da Síria, não posso receber o sacramento de vossas mãos, sigo vossos colegas, os bispos do Egito. Não conheço Vitalis; não comungo com Melécio; Paulino é estranho para mim (homens de fé suspeita): quem não colhe convosco, espalha.”
Há uma passagem, à qual me referi anteriormente, que contém os sentimentos de São João Crisóstomo, que lerei porque é particularmente clara e enérgica. Ele escreve ao Papa Inocêncio, Bispo de Roma, em consequência de ter sido privado de sua Sé e tratado com a maior injustiça: — “Suplico-vos que ordeneis que o que foi feito iniquamente contra mim, enquanto eu estava ausente e não recusei um julgamento, não tenha efeito; e que aqueles que assim procederam sejam submetidos a punição eclesiástica. E permiti-me, que não fui condenado por nenhuma ofensa, desfrutar do consolo de vossas cartas e da companhia de meus antigos amigos.” Isto não supõe a crença de que o Bispo de Roma tinha jurisdição e poder para punir os bispos da Ásia? E este apelo a ele, de um patriarca de Constantinopla, não é uma forte atestação de seu domínio supremo na Igreja universal? E novamente, temos estas expressões ainda mais fortes: — “Por que razão Cristo derramou seu sangue? Certamente, para ganhar aquelas ovelhas, cujo cuidado Ele confiou a Pedro e seus sucessores.”
Estas citações não representam nem um vigésimo daquelas que omito. Mas há uma classe de passagens que não posso deixar de mencionar; refiro-me aos repetidos reconhecimentos dos concílios gerais, isto é, concílios de toda a Igreja, da autoridade papal suprema em decisões sobre todos os assuntos eclesiásticos. Isto, por um lado, é reivindicado em seu nome pelos legados apostólicos, que sempre presidiram, e foi sempre permitido pelos padres ou bispos que compunham o sínodo. Por exemplo, no concílio de Éfeso, Filipe, um dos delegados do Papa Celestino, assim se dirigiu à venerável assembleia: — “Ninguém duvida; na verdade, é conhecido por todos os séculos, que o santíssimo Pedro, o príncipe dos apóstolos, a coluna da fé e o fundamento da Igreja, recebeu de nosso Senhor as chaves do reino e o poder de ligar e desligar os pecados. Ele vive até hoje em seus sucessores e sempre exerce esse juízo neles. Nosso santo pai, Celestino, o legítimo sucessor de Pedro, que agora ocupa seu lugar, nos enviou em seu nome a este sagrado concílio, — um concílio convocado por nossos mais cristãos imperadores, para a conservação da fé recebida de seus pais.”
Da mesma forma, os Padres do Concílio de Calcedônia, ao ouvirem a epístola do Papa Leão lida para eles, exclamaram unanimemente: — “Esta é a fé de nossos pais; Pedro assim falou através de Leão; os Apóstolos assim ensinaram.” E quando, ao final do sínodo, se dirigiram àquele santo Pontífice, suas expressões são tão extraordinariamente notáveis que não posso deixar de citá-las: “Na pessoa de Pedro,” escrevem, “designado nosso intérprete, vós preservastes a corrente da Fé, por ordem de nosso Mestre, descendo até nós. Por isso, usando-vos como guia, indicamos a verdade aos fiéis, não por interpretação privada, mas por uma confissão unânime. Se, onde dois ou três estão reunidos em nome de Cristo, Ele está no meio deles, como deve ter estado com 520 Ministros? Sobre estes, como a cabeça sobre os membros, vós presidistes por aqueles que ocupavam vosso posto; suplicamos-vos, portanto, que honreis nossa decisão com vossos decretos; e como concordamos com a Cabeça, assim permita vossa Eminência completar o que é próprio para vossos filhos. Além disso, Dióscoro dirige sua ira contra aquele a quem Cristo confiou o cuidado de sua vinha, isto é, contra vossa apostólica Santidade.”
Assim vedes, meus irmãos, que esta não é uma doutrina nova, mas que toda a antiguidade nos apoia na crença de que nosso Bendito Salvador concedeu a Pedro uma chefia e primazia sobre Sua Igreja, e que esta foi continuada, através dos séculos seguintes, nas pessoas de seus sucessores, os Bispos de Roma. Vemos estes exercendo atos de autoridade decisiva sobre os mais altos dignitários da Igreja Oriental; observamos que são reconhecidos como supremos pelos Padres mais eruditos; temos registrados, em termos vigorosos, a deferência e submissão até mesmo dos Concílios Gerais às suas decisões e decretos. E se tudo isso não bastar para provar a crença daqueles tempos na Supremacia Papal, não sei como poderemos chegar ao conhecimento do que eles sustentavam sobre qualquer assunto.
4. Mas, em quarto lugar, a melhor interpretação de uma profecia é a história de seu cumprimento. As profecias que predizem a dispersão e o abandono de Israel eram sem dúvida obscuras até que chegassem os dias de seu cumprimento. Os judeus seriam meramente privados de seu templo, ou de qualquer outra forma de culto coletivo? Estariam simplesmente destituídos de um governo doméstico; ou seriam privados de cidadania e comunidade com o resto do mundo? Lede a profecia à luz da história, e tudo se torna claro, consistente e convincente. Apliquemos então esta regra à promessa feita a Pedro. Um poder, que afirma descender dele, é visto existindo, de século em século, no meio do cristianismo, sujeito a nenhuma das variações, vicissitudes e interrupções de todo domínio temporal. Ele forma o único fio que, sem se desenredar e sem se quebrar, percorre cada século e mantém unidos os elementos da história sagrada e profana. Pois, enquanto pequenas dinastias surgem e se dissolvem ao seu redor, o cronista só pode fixar as épocas de seu começo, seus eventos e término, referindo-se à sucessão infalível de seus governantes.
Nem esta perpetuidade resulta de uma homenagem cega paga à sua autoridade. Repetidas vezes seu patrimônio é usurpado pelo estrangeiro, sua capital é saqueada pelo invasor, sua Sé é reduzida a cinzas pelo bárbaro; são mantidos por gerações no exílio por seus próprios súditos turbulentos; são lançados em cadeias, são privados da vida — em suma, tudo lhes acontece, o que põe fim a dinastias mortais e principados humanos. Mas um vigor desconhecido parece animar esta raça de príncipes sagrados; e embora outras sés episcopais possam ser varridas da face da terra, aqui Pontífice sucede a Pontífice, apesar de todos os obstáculos; o capítulo para sua eleição é realizado ora em uma província distante da Itália, ora na França ou na Alemanha; ainda assim um sucessor é devidamente eleito e aceito por todos; e toda tentativa de quebrar sua linhagem se torna vã e abortiva.
Enquanto isso, esta instituição exerce uma influência importante sobre a civilização, a cultura e a felicidade dos homens. Com as virtudes de seus sucessivos membros, as virtudes de toda a terra parecem desabrochar; com a rara, mas influente, imoralidade de alguns entre eles, todo o mundo cristão parece simpatizar e definhar; toda a maré da virtude humana sobe e desce, flui e refluxa, apenas pelo seu aumento ou declínio. Mas sua influência vai ainda mais longe. O destino de toda religião parece entrelaçado com o seu destino; durante séculos, pode-se dizer que ela não existe em nenhum lugar, exceto em sua conexão e dependência; nenhum pastor que não receba sua jurisdição dela; nenhum pregador que não professe ter aprendido ali suas doutrinas; nenhum fiel que não espere a salvação por estar unido à sua comunhão. Tudo o que é brilhante na religião parece ser apenas um reflexo de sua luz; formas e cerimônias, cânones e leis, símbolos de fé e termos de comunhão — tudo é derivado dela com obediência implícita.
Meus irmãos, um sistema que por tantos séculos esteve tão intimamente entrelaçado com o cristianismo e regulou sua própria existência não pode ser uma mera modificação acidental; deve ser ou uma parte integrante de seu esquema, ou deve ter existido por tanto tempo apesar dele. Ele é ou um órgão importante, necessário para suas funções vitais, e que age vigorosamente até os extremos mais distantes do corpo, sim, seu próprio núcleo e coração; ou é uma concreção monstruosa, que se enraizou profundamente e exerce uma influência antinatural e mórbida através do corpo. Desejais considerá-lo neste último sentido? Então vede que dificuldades incorreis.
Primeiro, quebrais em pedaços, sim, esmagais completamente em pó todas as mais belas maravilhas do cristianismo. A submissão do coração e da vontade ao ensino da fé, a âncora que a esperança dá em outro mundo, os laços de caridade e afeto religioso entre pessoas das mais variadas disposições; o apego, em todas as extremidades, aos grandes máximas da religião, todo o aprendizado dos doutores, toda a constância dos mártires, toda a dedicação dos pastores, tudo o que faz do cristianismo algo mais santo, mais nobre, mais divino, do que o que a terra ou o homem já produziu antes; tudo isso não existiu em lugar algum durante séculos, exceto em comunhão com esta autoridade usurpada, como supondes, e se gloriou em prestar-lhe deferência e apoiá-la, e dar testemunho dela. Vós então proclamais que eles podem ser testemunhos de uma monstruosa falsidade e engano; privais-os, consequentemente, de toda eficácia como prova; e deveis, portanto, buscar em outro lugar as evidências mais comoventes e mais belas do cristianismo.
Em segundo lugar, deveis explicar o apoio constante e ininterrupto que recebeu da Providência Divina. Pois o destino das instituições humanas é crescer, florescer e murchar: ser erguido com trabalho, permanecer por algum tempo e depois desmoronar para sempre. Nunca uma dinastia, nunca um reino durou metade de seu tempo, nunca o desígnio mais favorecido por Deus foi levado triunfantmente através de tantas vicissitudes. Não, seu destino pareceu o dos justos — a tribulação foi enviada para provar e castigar, não para derrubar. E ainda assim devemos supor que esse extraordinário exercício da Providência foi todo em favor de uma usurpação anticristã, que enganava os homens e arruinava a causa de Deus?
Por fim, deveis explicar como o Todo-Poderoso utilizou uniformemente essa terrível apostasia como o único meio em Suas mãos para preservar e disseminar Sua religião. Como o único meio para preservá-la: pois, durante o lapso de tantos séculos, nenhuma única heresia — eu falo daquelas que os próprios protestantes devem chamar por esse nome — foi condenada, esmagada e erradicada, exceto por seus meios e através de seus decretos: arianos, macedônios, eutiquianos, nestorianos, pelagianos e milhares mais foram anatematizados pelos Papas; e assim somente a doutrina da Igreja foi mantida pura, e sua fé não foi prejudicada por seus erros. Concílios foram convocados, cânones foram estabelecidos apenas sob seus nomes e autoridade; e assim os costumes dos fiéis foram aprimorados e preservados. Como o único meio para disseminá-la: pois todas as partes da terra que foram convertidas ao cristianismo desde os dias dos apóstolos devem esse benefício à Santa Sé.
Escócia, Irlanda, Inglaterra, Alemanha, Dinamarca, Hungria, Polônia e Livônia foram convertidas, do quinto ao décimo século, por missionários enviados de Roma. As Índias Orientais e Ocidentais estão sob a mesma obrigação: pode-se dizer que elas nada sabem do cristianismo, exceto como a fé da Igreja Romana, à qual se curvam com submissão. E direi, sem medo de contradição, que enquanto dificilmente há um país sob o globo onde o soberano pontífice não tenha muitos súditos, nenhuma outra Igreja, como já mostrei, pode se orgulhar do poder de conversão em qualquer extensão, ou com qualquer durabilidade... Agora, no exato momento em que deveis supor que esse sistema anticristão foi empregado por Deus como Seu único instrumento para preservar e disseminar o cristianismo, observai que ele publicamente se vangloriava e referia-se a essas mesmas circunstâncias como prova de que era a rocha sobre a qual o cristianismo foi fundado, — o representante da única autoridade pela qual deveria ser recebido como vindo de Deus. E Ele não estaria apoiando ao máximo uma mentira e engano tão horríveis, se admitirdes essa hipótese?
Não me direis que Deus sabe tirar o bem do mal e pode usar os piores instrumentos; e que pouco importa se o evangelho é pregado até por contenda, contanto que seja pregado.* Tais meios são Seus recursos extraordinários, não podem ser o curso ordinário de Sua providência. Posso concebê-Lo enviando um Senaqueribe ou um Nabucodonosor para converter Seu povo e purificá-lo com castigos; mas não posso, sem blasfemar de Sua bondade, imaginá-Lo dando tais homens como governantes habituais, confiando-lhes por séculos a proteção de Sua herança e de Seu culto. Posso imaginar um Balaão, que veio amaldiçoar, sendo forçado contra sua vontade a trazer bênçãos sobre o povo de Deus e profetizar o surgimento da estrela de Jacó; mas não posso admitir, sem ultrajar Sua santidade, que os profetas, de Samuel a Malaquias, possam ter sido uma série de Balaãos, arrastados contra sua vontade para instruir uma nação à qual deveriam superar em maldade. Nem São Paulo poderia ter imaginado todos os apóstolos e mestres do evangelho por séculos pregando suas doutrinas apenas por um espírito de contenda. Mesmo assim este é o caso paralelo, e tais são as dificuldades em que incorreis ao supor que a supremacia da Santa Sé existiu no cristianismo apesar das ordenanças de Deus.
Mas admiti que ela foi dada em Pedro, e tudo se torna consistente; tudo é maravilhoso; tudo é belo. Através de cada século, traçamos o cumprimento da promessa; explicamos como ela resistiu ao choque de tantas convulsões; como emergiu indomada sob tantas ondas; como sacudiu a mortalidade que se acumula sobre todo estabelecimento terreno, sendo a rocha na qual as partes do vasto edifício foram cimentadas, crescendo num só edifício santo, preservando-as inabaláveis de século em século.
E é, verdadeiramente, meus irmãos, uma instituição cuja sublimidade é digna de Deus. Ver a religião assim tornar-se um objeto sobre o qual a terra e suas mudanças não têm controle; que despreza os limites traçados pela engenhosidade do homem ou pela mão mais ousada da natureza para interceptar toda comunicação entre os homens; que pode fazer seus decretos respeitados e obedecidos por nações que nunca ouviram falar do nome e das conquistas romanas, exceto em conexão com suas verdades; que pode dar um interesse comum, um vínculo de amor, a povos da fala, cor e traços mais diversos — esta é, de fato, a ideia que naturalmente teríamos formado de uma religião vinda d'Aquele a quem pertencem os confins da terra. Que pensamento, que quando, na próxima festa da Páscoa, o Soberano Pontífice estender sua mão e abençoar todo o seu rebanho, essa bênção voará sobre mares e oceanos, alcançará climas onde o sol ainda não terá nascido, e cairá como orvalho sobre igrejas que só terão notícia desse dia muito depois que os brotos que agora incham nas árvores murcharem e caírem em seu túmulo outonal!
É doloroso afastar-se desses pensamentos consoladores para enfrentar as objeções que o preconceito ou a ignorância podem fazer a essa visão do poder papal. Mas sei que alguns podem desejar intervir aqui e lembrar-me dos volumes que foram escritos sobre os crimes e iniquidades dos Papas. Serei informado de que, por séculos, eles não passaram de uma raça de homens mundanos, apenas ávidos por poder terreno e tentando arrancar coroas das cabeças dos soberanos; ansiosos por lutar contra todo domínio temporal e se tornarem ao mesmo tempo governantes civis e mestres espirituais do mundo. Em resposta, observaria primeiro que, quaisquer que sejam as impressões de qualquer indivíduo sobre o caráter de alguns, ou muitos, dos Pontífices Romanos, ele não tem o direito de aplicá-las como um teste para explicar as palavras de Cristo ou para julgar a existência de uma instituição.
Muitos detentores do sumo sacerdócio judeu desonraram sua posição, de Heli a Caifás, e ainda assim a santidade desse estado não foi diminuída, nem sua constituição divina; nem nosso Salvador ou São Paulo ensinaram que a adoração e reverência não deveriam ser mostradas a ele. Sabemos que mesmo entre os apóstolos houve um capaz de trair seu Mestre, — de cometer assim o ato mais vil que o sol jamais testemunhou: e ainda assim isso não prejudica o caráter do apostolado. E, da mesma forma, poderíamos dizer que, se esses Pontífices que desonraram sua posição fossem somados, eles não teriam a mesma proporção para com aqueles cujas virtudes foram uma honra para o cristianismo, como o traidor Judas tem para com o corpo apostólico. Se, portanto, a dignidade dos apóstolos não foi prejudicada, ou sua jurisdição diminuída, por essa circunstância, eu pergunto: esta instituição deveria ser julgada pelos crimes de alguns entre seus detentores?
Mas sobre este assunto existe uma massa de engano ou ilusão constantemente repetida, que, se revelada, deixaria os homens pasmos ao perceberem como foram levados a tão grosseiros equívocos. Em primeiro lugar, é costume associar o caráter privado e individual dos Pontífices à sua conduta pública - embora seja necessária uma distinção entre ambos, como observei no início deste discurso. Nosso Salvador, ao conceder-lhes tal poder, ofereceu-lhes tanto um meio para grandes males quanto para o maior dos bens; contudo, não os privou de responsabilidade individual — deixou-os na posse de seu livre arbítrio, numa posição das mais perigosas a que a humanidade poderia ser exposta.
Isto supõe a possibilidade de certo número deles serem indignos de sua posição; e que tal tenha ocorrido, ninguém o negará; mas, ao mesmo tempo, em vários casos, há mais deturpação do que se poderia encontrar em qualquer outra parte da história. Quanto aos Pontífices dos primeiros séculos, ninguém contestará que todos foram dignos do que receberam, — um lugar no calendário dos santos. Dos Pontífices dos séculos posteriores, igualmente, foi reconhecido, não apenas por escritores católicos, mas também protestantes, e não em tempos passados, mas muito recentemente, que desde a mudança religiosa em algumas partes da Europa pela Reforma, nada poderia ser mais exemplar, ou mais digno de sua posição do que a conduta de todos aqueles que ocuparam a cátedra de São Pedro.
O único período da história do qual tais objeções podem ser extraídas está naqueles séculos comumente chamados de Idade Média. Ora, as pessoas que pretendem emitir juízo sobre este período histórico são, em geral, totalmente alheias ao seu espírito; e sem serem competentes para julgar, por seus verdadeiros padrões, as medidas então adotadas - mas avaliando apenas pelas visões igualmente peculiares e mais restritas de seu próprio tempo - muitos condenam a conduta dos Papas como sendo orientada por nada além do desejo de engrandecimento temporal e domínio imperial mundano. Mas sobre este caos e confusão, nos quais o preconceito mergulhou a história daqueles tempos, uma luz brilhante começa a penetrar, e provém de uma fonte que não suscitará facilmente desconfiança. Nos últimos dez anos, uma sucessão de obras tem aparecido no Continente, nas quais os caracteres dos Papas da Idade Média não apenas foram reivindicados, mas colocados sob a perspectiva mais bela e magnífica. E agradeço a Deus que elas sejam, como acabo de dizer, provenientes de uma fonte acima de qualquer suspeita - cada uma das obras a que me refiro sendo produção de um protestante.
Tivemos nestes últimos anos várias biografias, ou reabilitações do Pontífice que tem sido considerado o arquétipo daquela sede de engrandecimento atribuída aos Papas medievais. Refiro-me a Gregório VII, comumente conhecido pelo nome de Hildebrando. Numa obra volumosa, publicada há alguns anos por Voigt, e aprovada pelos mais eminentes historiadores da Alemanha moderna, temos a vida desse Pontífice, compilada a partir de documentos contemporâneos, de sua própria correspondência, e do testemunho tanto de amigos quanto de inimigos. O resultado é — e gostaria de poder transmitir-lhes as palavras do autor — que se o historiador se abstrair de meros preconceitos mesquinhos e sentimentos nacionalistas, e contemplar o caráter daquele Pontífice de um plano superior, deverá declarar-se um homem de mente retíssima, de desinteresse absoluto e do mais puro zelo; alguém que em cada instância agiu exatamente como sua posição exigia, e não empregou meios senão aqueles que lhe eram autorizados. Nisto ele é seguido por outros, que falam dele com um entusiasmo que um católico não poderia superar; e de um deles observou-se que não pode referir-se àquele Pontífice sem arrebatamento.
Tivemos também, nos últimos dois anos, outra obra extremamente interessante - uma biografia de Inocêncio III, um dos mais difamados em toda a linha sucessória papal, escrita por Hurter, clérigo da Igreja Protestante da Alemanha.
Ele examinou com frieza todas as acusações levantadas contra o pontífice, baseando seus estudos inteiramente nos monumentos da época, e a conclusão a que chega é que não apenas seu caráter está acima de qualquer reprovação, mas constitui objeto de admiração incondicional. Para lhes dar uma ideia do teor desta obra, ler-lhes-ei dois trechos pertinentes ao meu tema geral. Assim escreve nosso autor: — “Um instrumento tão imediato nas mãos de Deus, para assegurar o bem-estar supremo da comunidade, deve ter sido considerado pelo cristão daqueles tempos, pelo eclesiástico, e ainda mais por aquele que estava mais próximo do centro da Igreja, aquele que era sua cabeça. Toda dignidade mundana trabalha apenas para o bem de uma vida terrena, para um objetivo passageiro; somente a Igreja trabalha para a salvação de todos os homens, para um objetivo de duração eterna. Se o poder temporal vem de Deus, não é no mesmo sentido, medida e definitividade com que o era o supremo poder espiritual daqueles tempos; cuja origem, desenvolvimento, extensão e influência (independentemente de todas as fórmulas dogmáticas) constituem o fenômeno mais notável na história do mundo.”
Em outra passagem ele assim se expressa: — “Olhemos para frente e para trás a partir de qualquer período, sobre os tempos, e vejamos como a instituição do papado sobreviveu a todas as outras instituições da Europa; como viu todos os outros Estados surgirem e perecerem; como, nas infinitas mudanças do poder humano, só ela, invariável, preservou e manteve o mesmo espírito; podemos nos surpreender se muitos a veem como a rocha que se ergue inabalável acima das ondas tempestuosas do tempo?”
Mas para concluir este assunto, confio que, gradualmente, o que está sendo feito no exterior possa ser melhor conhecido entre nós; e quando começarmos a contemplar aquelas épocas com o mesmo espírito verdadeiro que nossos vizinhos continentais, descobriremos muitas imprecisões em relação a pessoas que merecem nosso respeito e admiração, mesmo independentemente da religião. E consequentemente, as objeções levantadas contra a autoridade divina da supremacia papal, com base em exemplos individuais, serão bastante reduzidas. Assim, procurei apresentar-lhes uma visão resumida dos argumentos nos quais fundamentamos a supremacia dos sucessores de São Pedro. Vocês viram qual é o alicerce em que a baseamos; textos claros das Escrituras, interpretados, tenho certeza, sem violência, mas simplesmente por sua própria construção e por referência a outras passagens da sagrada palavra de Deus. Vocês viram como essa instituição foi transmitida e mantida através de uma sucessão de eras e de pontífices, até chegarmos àquele que atualmente ocupa a cátedra de São Pedro.
As simpatias de seus predecessores imediatos estiveram particularmente atentas a esta porção de seu rebanho, e a própria Igreja em que estamos testemunha o que a Santa Sé sentiu e pensou a vosso respeito. Refiro-me especialmente àquele venerável Sumo Sacerdote de Deus, que, mais do que todos, exemplificou em si mesmo a indestrutível permanência de sua dignidade; pois o poderoso Imperador, que tentou destruí-la em sua pessoa, sucumbiu ao destino das coisas mundanas, enquanto ele ressurgiu e sentou-se em pacífica posse do trono de seus antepassados. Ele, Pio VII, demonstrou seu afeto por este mesmo rebanho ao presentear esta igreja, quando recém-erigida, o magnífico serviço de prataria eclesiástica que aqui ainda se conserva.
Eu estava em Roma na época; e lembro-me bem de uma expressão que ele usou quando alguns o repreenderam por desfazer-se dos vasos sagrados mais valiosos que possuía: sua resposta foi: “Os católicos da Inglaterra merecem o melhor que eu posso lhes dar.” E desse sentimento de afeto paternal, aquele que agora ocupa aquela cátedra não degenerou. Dele pode-se dizer que nunca homem algum passou pela prova da prosperidade mais incólume. Elevado, sucessiva e rapidamente, do humilde e mortificado retiro do claustro, a primeiro príncipe e depois governante da Igreja, nada alterou dos hábitos simples, da piedade alegre e da cordialidade sincera que ali o caracterizavam. À tripla coroa que cerca sua fronte foi de fato acrescentada uma coroa de espinhos, na turbulência política de seus próprios domínios e nos atos espoliadores e desobedientes de algumas de suas províncias espirituais. Mas desses temas dolorosos ele pode voltar-se com consolação para contemplar os avanços diários de nossa santa religião neste e em outros países distantes, e o constante aumento de seus filhos, onde, não muitos anos atrás, seu título mal podia ser sussurrado sem perigo. E o nome que ele carrega é de bom augúrio para nós.
Por duas vezes foi fonte de grata recordação para a Inglaterra católica. Foi o primeiro Gregório que enviou Agostinho e seus companheiros para converter nossos antepassados à fé; e quando um espírito leviano de erro ameaçou derrubar e destruir a obra, o 13º do nome colocou-se na brecha, proveu os meios de educação para nosso clero e acalentou em seu peito a pequena centelha que agora mais uma vez se transforma em bela chama. É da própria casa do grande Gregório e de seus discípulos, Agostinho e Justo, que o atual Pontífice saiu para governar a Igreja, animado pelo mesmo zelo e ligado à mesma causa. Oh! Que os mesmos resultados coroem seus desejos; que ele viva para ver todas as ovelhas que não são de seu rebanho unidas a ele, para que haja um só rebanho e um só pastor; para que, quando Jesus Cristo, “o príncipe dos pastores”, de quem ele é vigário, aparecer, todos nós “recebamos a incorruptível coroa da glória.”
WISEMAN, N. P. Lectures on the Principal Doctrines and Practices of the Catholic Church. Baltimore: John Murphy & Co., 1857. Vol. I, Lecture VIII, p. 225–254.
コメント