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  • Anderson Hopkins

Santo Agostinho e Sola Scriptura: a conclusão apressada de Gavin Ortlund

O pastor protestante Gavin Ortlund possui um canal no YouTube, chamado Truth Unites, onde, em um de seus vídeos, defende que Santo Agostinho não só afirmou o princípio protestante da Sola Scriptura, mas também “não poderia ter sido mais claro ao afirmá-lo”. Neste artigo demonstraremos que as conclusões de Gavin são generalizações precipitadas, pois foram tiradas com base em evidências insuficientes.



O pastor protestante Gavin Ortlund possui um canal no YouTube, chamado Truth Unites, onde, em um de seus vídeos, defende que Santo Agostinho não só afirmou o princípio protestante da Sola Scriptura, mas também “não poderia ter sido mais claro ao afirmá-lo”. Neste artigo demonstraremos que as conclusões de Gavin são generalizações precipitadas, pois foram tiradas com base em evidências

insuficientes.


Primeiramente, Ortlund dá a sua definição de Sola Scriptura, onde diz: A Escritura é a única regra infalível para fé e prática. A tradição possui seu lugar, credos e concílios podem ser obrigatórios e autoritários, mas tudo o que é subsequente à Escritura é reformável à luz da Escritura. Em seguida, apresenta as citações onde, supostamente, o santo ensina a Sola Scriptura. Eis a primeira:


“Mas quem pode deixar de estar ciente de que o cânone sagrado das Escrituras, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, está confinado dentro de seus próprios limites, e que ele está tão absolutamente em uma posição superior a todas as cartas posteriores dos bispos, que sobre ele não podemos ter nenhum tipo de dúvida ou disputa se o que está confessadamente contido nele é correto e verdadeiro; mas que todas as cartas de bispos que foram escritas, ou que estão sendo escritas, desde o encerramento do cânon, estão sujeitas a serem refutadas se houver algo nelas que se afaste da verdade, seja pelo discurso de alguém que seja mais sábio no assunto do que eles mesmos, seja pela autoridade mais pesada e pela experiência mais erudita de outros bispos, pela autoridade dos Concílios; e ainda, que os próprios concílios, que são realizados nos vários distritos e províncias, devem ceder, além de qualquer possibilidade de dúvida, à autoridade dos Concílios plenários [ecumênicos] que são formados para todo o mundo cristão; e que, mesmo entre os Concílios plenários, os primeiros são frequentemente corrigidos por aqueles que os seguem, quando, por meio de alguma experiência real, são trazidas à luz coisas que antes estavam ocultas, e é conhecido o que antes estava oculto, e isso sem qualquer turbilhão de orgulho sacrílego, sem qualquer arrogância, sem qualquer luta de ódio invejoso, simplesmente com santa humildade, paz católica e caridade cristã?” ¹

Ortlund retira as seguintes conclusões da citação acima:


  1. Agostinho traça uma distinção clara entre a Escritura e todos os escritos subsequentes com respeito à sua autoridade e veracidade.

  2. Agostinho sustenta que os concílios, mesmo os plenários (ecumênicos/universais), podem errar e ser corrigidos por concílios posteriores.

  3. Logo, Sola Scriptura, já que todas as outras fontes podem ser corrigidas posteriormente.


A princípio, é importante destacar que o verbo "corrigir" em português pode ter o significado de aprimorar ou melhorar, não se limitando apenas a corrigir algo que antes estava defeituoso. Muitas vezes, tendem-se apegar apenas à conotação mais convencional dessa palavra, negligenciando outras possibilidades. Além disso, o termo utilizado originalmente é o verbo latino “emendari" ², que Schaff traduziu por “corrigir”, vale ressaltar que este verbo latino também pode significar simplesmente "melhorar", exatamente o que o Segundo Concílio Ecumênico [de Constantinopla] fez com o Credo formulado no Primeiro Concílio [de Nicéia], que foram os únicos concílios que Santo Agostinho conheceu. Contudo, ele encerra a discussão ao mencionar que essas correções já ocorreram, deixando claro que não se trata de uma correção dos dogmas conciliares, uma vez que o Concílio de Constantinopla I não corrige, no sentido de consertar, o que foi estabelecido dogmaticamente no Primeiro Concílio de Niceia. Está seria a diferença entre a Bíblia e os Concílios no pensamento de Agostinho, no primeiro nada pode ser “corrigido”, enquanto o segundo está sujeito a este tipo de “mudança”.


Dito isso, o santo está ensinando que não se pode duvidar do conteúdo da Bíblia, diferente das cartas de bispos e dos concílios, mesmo os ecumênicos, que estão sujeitos a correção posterior, se necessário. No entanto, isto sozinho não prova a Sola Scriptura no pensamento do santo, devido ao fato de que, em nenhum momento, ele afirmou que nada há de infalível nessas cartas ou concílios. A teologia e eclesiologia Católica assumiram exatamente a posição de S. Agostinho, uma vez que o carisma da infalibilidade nunca foi estendido a todo o conteúdo de um concílio ou encíclica papal, embora isso fosse pouco discutido no primeiro e segundo milênio, esta questão foi sistematizada na Contra-Reforma, de modo que nenhum teólogo moderno defende a infalibilidade de todo o conteúdo de uma encíclica ou das atas de um Concílio, como bem resumido e explicado por São Roberto Belarmino:


“...Há pouco na acta de um concílio que seja de fato proposto como parte da fé da Igreja. Assim, nem as discussões conciliares, nem os argumentos em apoio a uma determinada proposição, nem qualquer explicação que a acompanhe fazem parte da fé. Somente os decretos publicados pelo concílio fazem parte da fé da Igreja...” ³

A segunda citação utilizada por Gavin traz S. Agostinho dizendo:


“No que diz respeito aos nossos escritos, que não são uma regra de fé ou prática, mas apenas um auxílio para a edificação, podemos supor que eles contêm algumas coisas que estão aquém da verdade em assuntos obscuros e recônditos, e que esses erros podem ou não ser corrigidos em tratados posteriores. Pois somos daqueles sobre os quais o apóstolo diz: "E, se tiverdes outro sentimento, Deus vos revelará até isto"(Filipenses 3:15). Tais escritos são lidos com o direito de julgamento e sem qualquer obrigação de acreditar. A fim de deixar espaço para essas discussões proveitosas de questões difíceis, há uma linha de fronteira distinta que separa todas as produções posteriores aos tempos apostólicos dos livros canônicos autorizados do Antigo e do Novo Testamento[...]”

A partir dessa passagem, Ortlund conclui que S. Agostinho continua a distinguir a Escritura de tudo o que é posterior aos tempos apostólicos em termos de infalível versus falível. Mas, com uma análise minuciosa, notamos que Santo Agostinho, novamente, não afirma a inexistência de sentenças infalíveis em textos pós-apostólicos. Além disso, quando ele nega que seus próprios escritos são regra de fé e prática, isso não significa que além da Escritura não há mais nenhuma regra de fé e prática, ao contrário, segundo o historiador protestante J. N. D. Kelly:


“De acordo com Agostinho, suas passagens [da Escritura] duvidosas ou ambíguas precisam ser esclarecidas pela 'regra da fé'; além disso, era somente a autoridade da Igreja que, aos seus olhos, garantia sua veracidade.”

Ele parte então para sua terceira e última citação:


“Aprendi a conceder esse respeito e essa honra somente aos livros canônicos das Escrituras: somente nesses eu acredito firmemente que os autores estavam completamente livres de erros. E se nesses escritos eu ficar perplexo com qualquer coisa que me parece oposta à verdade, não hesito em supor que ou o manuscrito está defeituoso, ou o tradutor não captou o significado do que foi dito, ou eu mesmo falhei em entendê-lo. Quanto a todos os outros escritos, ao lê-los, por maior que seja a superioridade dos autores em relação a mim em santidade e erudição, não aceito seu ensinamento como verdadeiro pelo simples fato de a opinião ser sustentada por eles, mas apenas porque eles conseguiram convencer meu julgamento de sua verdade, seja por meio desses próprios escritos canônicos, seja por argumentos dirigidos à minha razão.”

Segundo Ortlund: "Agostinho afirma que acredita que Jerônimo tinha a mesma opinião."


Astutamente, Gavin tenta capturar dois dos maiores doutores da igreja para o time da Sola Scriptura. Mas, novamente, em lugar algum Santo Agostinho diz que a Escritura é a única regra de fé infalível. Na verdade, esta última citação é significativa, porque nela o padre diz "somente destes [os textos da Bíblia] acredito firmemente que os autores estavam completamente livres de erros", ou seja, assim como todos os católicos crêem até hoje, os únicos autores completamente livres de erro foram os autores dos livros sagrados. O Concílio Vaticano I é claríssimo no seu ensino de que mesmo os papas são livres de erros apenas em condições específicas, i.e., falando Ex Catedra sobre Fé ou Moral. Portanto, nas três citações trazidas pelo pastor, Santo Agostinho apenas afirmou a fé católica de sempre. Em vista disso, concluímos que senhor Ortlund acabou por tirar uma conclusão apressada desses textos.


Além disso, é evidente que Gavin só poderia ter trazido passagens isoladas da patrística para fundamentar sua tese, uma vez que, se consultarmos produções acadêmicas, veremos que é anacronismo atribuir ao bispo de Hipona algo menos do que posição católica. Como comenta o historiador Robert Eno:


“Existe uma certa reciprocidade de autoridade entre a Escritura e a Igreja. Em sua polêmica contra os maniqueístas, Agostinho rejeitou os escritos maniqueístas. Por que ele deveria acreditar neles, em oposição às Escrituras cristãs? Como cristão católico, ele encontra na Igreja uma realidade social e religiosa, uma realidade que abrange o mundo e que, em seus exemplos concretos de santidade, o instiga a aceitar as Escrituras cristãs. Foi nesse contexto que Agostinho escreveu uma de suas frases mais citadas: "Eu não acreditaria no Evangelho se a autoridade da Igreja Católica não me movesse a isso." (Contra epistulam Manichaei V.6). O ponto não é que a autoridade da Igreja seja superior à da Escritura. Ao contrário, quando confrontados com escritos sagrados conflitantes, é o fato monumental da existência da Igreja Católica e a realidade de sua vida que sustentam a afirmação de que a Bíblia é a verdade. Os maniqueístas não podem fazer tal afirmação. Por sua vez, as Escrituras apontam precisamente para a Igreja Católica no mundo como o cumprimento das profecias bíblicas sobre a universalidade do reino de Deus...Esse testemunho da Igreja universal em qualquer momento dado, a crença e prática da Igreja contemporânea, é um fator de autoridade mais significativo para Agostinho do que é para muitos dos Padres. Sua ênfase no consenso contemporâneo e no testemunho da Igreja universal provavelmente se deve em grande parte à sua polêmica contra os donatistas. Um dos principais argumentos de Agostinho contra eles era a absurda posição deles de que eles, na África, eram o único remanescente verdadeiro da verdadeira Igreja. Sua rejeição da Igreja universal em outras terras como apóstata foi constantemente ridicularizada por Agostinho. Assim, a insistência de Agostinho na autoridade do que a Igreja universal acreditava e fazia, pelo simples fato de os cristãos católicos acreditarem e agirem dessa maneira, essas crenças e práticas tinham autoridade.”

NOTAS


[1] Sobre o Batismo. Livro II, cap. 3, parágrafo 4. Grifos de Ortlund. Disponível em:

https://www.newadvent.org/fathers/14082.htm.


[2]Quis autem nesciat sanctam Scripturam canonicam, tam Veteris quam Novi Testamenti, certis suis terminis contineri, eamque omnibus posterioribus episcoporum litteris ita praeponi, ut de illa omnino dubitari et disceptari non possit, utrum verum vel utrum rectum sit, quidquid in ea scriptum esse constiterit: episcoporum autem litteras quae post confirmatum canonem vel scriptae sunt vel scribuntur, et per sermonem forte sapientiorem cuiuslibet in ea re peritioris, et per aliorum episcoporum graviorem auctoritatem doctioremque prudentiam, et per concilia licere reprehendi, si quid in eis forte a veritate deviatum est: et ipsa concilia quae per singulas regiones vel provincias fiunt, plenariorum conciliorum auctoritati quae fiunt ex universo orbe christiano, sine ullis ambagibus cedere: ipsaque plenaria saepe priora a posterioribus emendari; cum aliquo experimento rerum aperitur quod clausum erat, et cognoscitur quod latebat; sine ullo typho sacrilegae superbiae, sine ulla inflata cervice arrogantiae, sine ulla contentione lividae invidiae, cum sancta humilitate, cum pace catholica, cum caritate christiana?”. Disponível em: https://www.augustinus.it/latino/sul_battesimo/index2.htm.


É válido dizer queAgostinho acompanhou muitas correções de Concílios Regionais, como pode ser lido em muitas de suas cartas, cf. Fathers of the Church Patristic Series 12


[3] St. Robert Bellarmine on the Infallibility of General Councils of the Church. P. 191


[4] Contra Fausto. Livro XI, parágrafo 5. Grifos de Ortlund. Disponível em:

https://www.newadvent.org/fathers/140611.htm.


[5] Early Christian Doctrines, p.47


[6] Carta para Jerônimo. Cap 1, parágrafo 3. Grifos de Ortlund. Disponível em:

https://www.newadvent.org/fathers/1102082.htm


[7] Teaching authority in the early church, p. 133-134.

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