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Resposta ao Fugita e ao Carlos Alberto sobre a Imaculada em Santo Tomás de Aquino

  • Daniel Arthur
  • 20 de mai.
  • 19 min de leitura

No dia 23 de janeiro de 2025, eu, Daniel Arthur, participei de uma call pelo Discord no canal do Matheus Fugita. No dia seguinte, 24 de janeiro, a call foi ao ar no canal do Fugita (pode ser vista aqui). A call foi sobretudo uma conversa entre mim, Fugita e Carlos Alberto, mas também não deixou de ter seus momentos de debates, até porque os dois estão atualmente em uma “guerra ao tomismo”, e eu numa cruzada em defesa de São Tomás especificamente na questão da Imaculada Conceição, portanto, eu mesmo já esperava que uma hora ou outra entraríamos em “combate”.


Pois bem, o convite do Fugita foi feito para eu ir em seu canal, de início declinei e preferi que ele gravasse um vídeo à parte em resposta à minha aula magna (pode ser vista aqui). Fugita assim o fez e lançou sua resposta intitulada “TOMÁS NEGOU A IMACULADA CONCEIÇÃO, SIM! | Fugita reage a Daniel Arthur (Fraternidade Newman)” (aqui). Eu respondi ao vídeo do Fugita e aproveitei para me aprofundar mais ainda no assunto a partir de novas descobertas que tinha feito em minhas pesquisas sobre o tema (aqui).

Pouco tempo depois, como havíamos entrado em acordo, aceitei ir ao canal do Fugita conversar/debater sobre o assunto com ele e com o Carlos Alberto e responder suas objeções ao vivo ao mesmo tempo. Ocorre que como deixei a desejar em alguns pontos ao ser pressionado em alguns temas mais profundos de metafísica (estamos falando de Carlos Alberto!) ou mesmo de interpretação dos textos de São Tomás, achei por bem fazer uma análise dos pontos dos dois.


Assim, responderei aqui aos pontos principais levantados tanto pelo Fugita quanto pelo Carlos, com exceção de um apenas: a questão da distinção entre natureza e pessoa em Tomás, relevante somente para a abordagem do Ceslaus Maria Schneider adotada por mim em meu último vídeo. Deixarei para abordar o tema em meu futuro livro sobre a questão (ainda preciso terminar de ler os dois livros do Schneider e a tese de doutorado do Andreas Riester que tratam do tema). Ocorre que os dois já sabem que faria uma resposta aos pontos deles – alguns já respondidos na própria call, mas que aqui só reforçarei. Envie para o Carlos há quase dois meses um esboço dessa resposta para que ele a lesse e, se quisesse, desse um feedback. Como muito tempo se passou, creio que já estava na hora de finalmente postar a resposta, mas como não queria mais encher nosso canal do YouTube com vídeos do mesmo assunto, achei melhor trazer a resposta em artigo para nosso site. Dito isso, mãos à massa.



1. Sobre a interpretação maculista do Expositio


Fugita e Carlos defenderam uma interpretação maculista desse sermão de Santo Tomás, mas preferiram não lidar diretamente com o “nec originale”, antes, Fugita chegou mesmo a defender o seguinte:


Dado todo o contexto, pra mim, apesar de... mesmo que a gente considere que atualmente as melhores cópias coloquem, incluam o pecado (sic), incluam o ‘nec originale’, parece que pra dar coesão pro texto de Aquino faz muito mais sentido defender a visão maculista do texto” (1h52min) 


Então, mesmo que o atual status quaestiones aceite a autenticidade da expressão, Fugita acha melhor descartá-la, afinal, como ele afirma em seguida, outros manuscritos mais antigo e em maior número podem vir à tona. Sim, de fato, isso pode acontecer e parece que tem acontecido,  a título de exemplo: quando Rossi escreveu seu artigo na Divus Thomas de Piacenza já se haviam descoberto ao todo 49 manuscritos, sendo que o “nec originale” apareciam em 43 deles (número muito mais significativo do que os 16 dos 19 manuscritos usados em sua edição crítica do Expositio de 1931); ocorre que até 2024, conforme Fr. Marc Millais OP da Comissão Leonina, já se chegou a 75 manuscritos e o “nec originale” mantém-se autêntico. Trago abaixo um trecho do email que o estudioso me mandou respondendo a uma pergunta minha:


“Para responder à sua pergunta, a edição da Ave Maria ainda não apareceu na edição leonina onde terá lugar no volume 44/2. Entretanto, como claramente notou, a edição de referência continua a ser a de G.-F. Rossi de 1931: Tomás de Aquino, Expositio salutationis angelicae. Introdução e texto, edição secundária, I.-F. Rossi ed., em Divus Thomas [Piacenza] 34(1931) p. 445-479 e 4 pl. (reimpresso de “Monografie del Collegio Alberoni” 11, Piacenza Collegio Alberoni 1931, 39 p. e 4 pl.).


É uma edição científica baseada em 19 manuscritos e a edição crítica em 75 manuscritos só diferirá deste texto de 1931 em pontos menores e certamente não no famoso “nec originale” que lhe diz respeito. O editor, GF Rossi (que não estava isento de segundas intenções ou preconceitos se você ler suas outras publicações sobre o assunto no Divus Thomas de Piacenza) fez, no entanto, um bom trabalho crítico e restabeleceu a lição exata que havia desaparecido das edições desde a de Milão 1488: não devemos ler "ipsa Virgo" (Marietti § 1120) que não se encontra em nenhum manuscrito, mas "nec originale" em seu lugar (Rossi, separata p. 32, l 13-14).


Ipsa Virgo” é uma intervenção ideológica para apagar uma dificuldade de interpretação que foi utilizada por aqueles que queriam colocar os tomistas em dificuldade no seu apego à doutrina da Tertia pars. A criação ex nihilo da variante "ipsa Virgo" visa, portanto, harmonizar Tomás consigo mesmo, pelo menos na mente dos "corretores" de Tomás no século XV, e tornar o ensino de Tomás totalmente coerente para melhor defendê-lo de sua própria doutrina”.


O que me parece é que, à luz do senso comum, é fácil perceber que qualquer copista que quisesse fazer a interpolação do “nec originale” em alguma obra de Aquino jamais escolheria justamente um opúsculo onde, poucas linhas acima, o Angélico afirma que Maria fora concebida no pecado original. O mais natural de se supor é que algum copista, constrangido com a aparente contradição e na ânsia de preservar o Anjo da Escola de tão patente embaraço, tenha omitido a expressão no manuscrito de que era responsável – movido talvez pela crença de que a expressão se tratasse de uma interpolação de algum copista anterior? Só Deus sabe. Mas o que a crítica textual comprova a nós é que a expressão consta nos melhores e mais antigos manuscritos que temos em mãos. Mas veja o que se disse – “aparente contradição”. Sim, pois é disso mesmo que se trata como afirmam miríades de autores que analisaram a terminologia de Aquino, principalmente no que se refere à animação e concepção.


Ocorre que Fugita e Carlos também procuraram responder a isso defendendo que, na passagem em questão, por “concepção” Aquino se refere à concepção da pessoa mesmo, ou em outras palavras, por concepção se deve entender concepção da alma, não do corpo. Entretanto, afirmo que isso é altamente improvável segundo a terminologia de Aquino. Cornoldi afirma categoricamente:


“Afirmo sem hesitação que nunca foi dito por esse Doutor (S. Tomás) que a animação em si mesma, ou seja, a criação da alma racional e sua infusão no corpo, fosse chamada de concepção” (I. M. CORNOLDI, S. J, Sententia S. Thomae Aq. De immunitate B. V. Dei Parentis a peccati originalis labe, Romae, 1889, p. 17)


Embora se possa achar até duas exceções à sentença de Cornoldi, ela se mantém em essência ou na maior parte das vezes, e no que se refere à Virgem Maria, sempre há a distinção clara entre concepção e animação. Ademais, levanto ainda outras objeções, mas primeiro vejamos a tradução da passagem:


“Primeiramente, quanto à alma, na qual teve plenitude de graça. Pois a graça de Deus é dada para dois fins: para fazer o bem e evitar o mal. E, quanto a esses dois fins, a Bem-Aventurada Virgem teve a graça mais perfeita. Ela evitou todo pecado mais do que qualquer santo, exceto Cristo. O pecado é ou original, do qual foi purificada no útero, ou mortal ou venial, dos quais foi livre. Como diz o Cântico dos Cânticos (4,7): ‘Você é toda bela, minha amiga...’ (Augusto): ‘Se todos os santos e santas se reunissem...’ (exceto Maria). Mas Cristo supera a Bem-Aventurada Virgem, pois foi concebido e nascido sem pecado original; enquanto a Bem-Aventurada Virgem foi concebida com pecado original, mas não nascida com ele.”


Observe que Aquino diz que ela EVITOU TODO pecado:


“Com efeito, ela evitou todo pecado mais do que qualquer santo, exceto Cristo.”


Quem afirma do gênero, por tabela, afirma das espécies. Ora o pecado tomado como “todo”, isto é, enquanto gênero, engloba as suas duas espécies: original e atual. Se Aquino diz que ela EVITOU TODO (gênero), então ela evitou também suas espécies, o que inclui o original, só que detalhe: mais que qualquer santo. O que não se daria caso ela tivesse sido contaminada pelo original e depois purificada dele, pois esse é o caso de todos os santos, e assim ela não teria evitado todo pecado mais do que eles.


Veja também que Tomás diz que Cristo supera a Virgem nisso: Ele foi concebido sem pecado, ela não; embora ambos tenham nascido sem pecado:


“No entanto, Cristo supera a Bem-aventurada Virgem neste ponto: porque Ele foi concebido e nasceu sem o pecado original, enquanto a Bem-aventurada Virgem foi concebida no pecado original, mas não nasceu nele.”


Mas interpretando a expressão “concebida” como se referindo à alma de Maria, então não apenas Maria seria superada por Cristo nesse ponto, mas todos os santos. Mas Aquino na passagem está falando que Maria evitou todo pecado mais que qualquer santo, sendo superada somente por Cristo e nesse ponto em específico. Mas se se entende que Maria foi concebida quanto à alma em pecado, o texto se torna ininteligível, pois:


1) Maria não evitaria o pecado original mais que qualquer santo.


2) Não seria característica singular de Maria ser superada por Cristo nisso: em ela ser concebida com pecado e Ele não, pois se se toma o ser concebida quanto à alma, não há nada que distinga Maria dos demais santos quanto ao ser concebida.


A dificuldade que resta é que Aquino diz:


“O pecado é ou original, e dele ela foi purificada no útero; ou mortal ou venial, e de tais pecados estava livre.


Rossi cita a seguinte passagem para ilustrar que Aquino às vezes interpretava o “purificar” como “preservar”, isto é, que o purificar para ele não exige uma mancha prévia:


“O Espírito Santo veio sobre a Virgem, purificando-a, isto é, preservando-a de conceber com pecado original” (III, q. 32, a. 4, ad. 1)


Aqui se poderia objetar que ela foi preservada de conceber com pecado original, não que ela foi preservada do pecado original, mas sim purificada deste. Entretanto, como já demonstrei em outras ocasiões, os termos “purgatio” ou “mundata” não requerem uma mancha prévia, mas apenas a iminência da mancha (culpa), além de que Aquino explica um termo (purgans) por outro (praeservans) pela partícula “idest” (isto é), fica claro que ele atribui a essa purificação um sentido de preservação. Mas para que tal se prove seria necessário Aquino afirmar claramente que a purificação de Maria não foi sobre uma mancha atual, em outras palavras, sobre a culpa atual. Mas há isso? É o que veremos.


Para deixar mais claro, façamos a seguinte questão:


Admitindo que o mundata, purgatio etc., possam não requerer uma mancha prévia, no caso de Maria, sua santificação no ventre foi de alguma mancha (culpa) prévia ou não?


Deixo o próprio Aquino responder:


“a santificação da Virgem no ventre da mãe não foi de qualquer impureza de culpa” (III, q. 27, a. 3, ad 3)


Claro como a água do mar. Mas ainda disputaremos sobre essa passagem mais à frente. Esta purificação ou santificação definitivamente não foi, segundo a mente de São Tomás, de qualquer impureza de culpa! Portanto, a expressão “A Bem-Aventurada Virgem foi purificada do pecado original no útero” não significa que ela foi purificada de qualquer impureza de culpa (mancha atual). Ninguém pode contestar isso. O sentido maculista da interpretação de Fugita e Carlos cai por terra.


E mais, defendo o seguinte ainda: o termo “não nasceu” (non nata) se refere à natividade in utero, isto é, a animação, não à natividade ex utero. É assim que Tomás entende tal natividade (I, q. 27, a. 2, solut), e era assim que os demais escolásticos consensualmente a entendiam, basta checar no Comentário às Sentenças de São Boaventura:


Sed nativitas in utero est in animae infusione: “Mas a natividade no útero ocorre na infusão da alma” (III Sent, d. 3, p. 1, a.1, q. 1: Q III,  65b–66a).


Isso faz mais sentido pelo contexto da passagem: São Tomás diz “Cristo supera a Bem-aventurada Virgem neste ponto: porque Ele foi concebido e nasceu sem o pecado original, enquanto a Bem-aventurada Virgem foi concebida no pecado original, mas não nasceu nele”. Essa fala pode ter dois sentidos:


  1. Cristo foi concebido (animado) e nascido (do útero) sem pecado, mas Maria foi concebida (animada) no pecado, mas não nascida (do útero).

  2. Cristo foi concebido (geração do corpo) e nascido (animado) sem pecado, mas Maria foi concebida (geração do corpo) no pecado, mas não nascida (animada).


Por óbvio que qualquer mudança de sentido dos termos aplicados a Cristo e a Maria num espaço de duas linhas seria absurdo; portanto, é no mesmo sentido que se aplica aos dois. Ora, assim sendo, o sentido (2) é o que tem mais coerência, pois no (1) Cristo superaria não só a Virgem, mas todos os demais santos, de quem já havia sido dito que a própria Virgem já supera ao evitar todos os pecados mais que eles. Para deixar mais claro o que estou dizendo, apresento o seguinte esquema:


No sentido (1) temos:

Pessoas:

Jeremias e João Batista

Maria

Jesus

Na concepção

Com pecado

Com pecado

Sem pecado

Na animação

Com pecado

Com pecado

Sem pecado

Nascimento do útero

Sem pecado

Sem pecado

Sem pecado

No sentido (2) temos:

Pessoas:

Jeremias e João Batista

Maria

Jesus

Na concepção

Com pecado

Com pecado

Sem pecado

Na animação

Com pecado

Sem pecado

Sem pecado

Nascimento do útero

Sem pecado

Sem pecado

Sem pecado

Observe que é somente no sentido (2) que Maria é o perfeito meio termo entre João Batista e Jeremias de um lado e Jesus do outro. Enquanto todos os demais humanos seriam concebidos, animados e nascidos com o pecado original; João Batista e Jeremias seriam concebidos, animados, mas não nascidos com o pecado original; Maria seria concebida com pecado, mas não animada e nem nascida com ele; enquanto Cristo não seria nem concebido, nem animado e nem nascido com pecado. E como Tomás adota o princípio de Anselmo que diz que “a pureza da Virgem é a maior que pode ser pensada abaixo da de Deus”, segue-se perfeitamente o esquema apresentado acima.


2. Sobre a dupla santificação da Virgem que fala Aquino e Damasceno


Fugita objetou minha interpretação de que a primeira das duas santificações de Maria, de que fala Aquino, tenha sido a do ventre materno. Ele afirmou que Aquino na objeção cita o texto de Damasceno (Exposição da Fé Ortodoxa, Livro III, cap. 2) no qual o santo fala sim de duas santificações da Virgem, mas sendo uma na Anunciação e outra na concepção de Cristo. Quanto a isso, de fato, não há o que se objetar, é isso mesmo que Damasceno fala. O que objeto é que Aquino aceite isso de Damasceno sem mais. A isso nego.


Segundo a objeção de Fugita, Aquino fala que a primeira santificação da Virgem foi quase preparatória para a concepção de Cristo, portanto, teria sido um pouco antes da concepção de Cristo, sendo, provavelmente na Anunciação. Recorre-se, para tanto, ao texto de Damasceno (Exposição da Fé Ortodoxa, Livro III, cap. 2), onde, pelo contexto, Damasceno fala da Anunciação do Anjo a Maria, e, portanto, a primeira santificação de que fala Aquino como sendo “quase preparatória à concepção de Cristo” só pode se referir também à Anunciação. Ora, se assim fosse, então Aquino admitiria três santificações na Virgem, não duas.


Mas, como já dito, isso contraria o que Aquino explicitamente ensina sobre a dupla santificação da Virgem, pois, em todas as passagens em que Aquino trata da quantidade de santificações da Virgem em seu estado de peregrina (homo viator), ele sempre fala em duas santificações, uma no ventre de sua mãe e outra na concepção de Cristo. Ele não fala em três, a não ser quando fala na santificação na Glória, que não diz respeito ao nosso tema. Assim, por exemplo, ele afirma explicitamente: “Há uma dupla santificação da Bem-aventurada Virgem: a primeira pela qual ela foi santificada no útero; a segunda na concepção do Salvador” (III Sent., Dist 3, q. 1, a. 2, qc. 1, solut 1).


O Fugita insistiu que deveríamos focar no contexto imediato da passagem da III, q. 27, a. 3, ad 3, não no contexto mais amplo das demais obras de Aquino. Mas isso é colocar Aquino em contradição consigo mesmo, pois em todas as demais passagens ele falaria em duas santificações, mas aqui, e somente aqui, ele falaria em três: 1) no útero, 2) na anunciação e 3) na concepção de Cristo. O subterfúgio está em argumentar que porque Damasceno fala da Anunciação, logo, a dupla santificação da Virgem foi também na Anunciação. Isso está errado, pois na passagem paralela a esta, a saber, III Sent., d. 3 q. 1, a. 2 qc. 1, solut., a mesma citada acima, o Angélico repete seu princípio: houve uma dupla santificação na Virgem, uma no útero, a outra, na concepção de Cristo.


“Respondo à primeira questão dizendo que se reconhece uma dupla santificação da Bem-Aventurada Virgem: a primeira, pela qual foi santificada no ventre materno; e a segunda, na concepção do Salvador. E, como a santificação implica purificação da culpa, a qual não pode existir sem a graça, e como é próprio da graça conferir certa firmeza, o efeito geral da santificação é duplo: a saber, purificar e confirmar. E, em ambos os aspectos, a segunda santificação aperfeiçoou a primeira”. (III Sent., d. 3 q. 1, a. 2 qc. 1, solut) 


Mas não só isso, nessa mesma passagem ele também cita Damasceno e diz:


“Pois alguns dizem que pela primeira santificação o fomes foi completamente removido: ao que eles são contraditos pelo que é dito no texto das palavras de Damasceno, que na segunda santificação o Espírito Santo veio sobre ela, purificando-a: o que não pode ser entendido exceto como purificação do fomes, porque ela não havia cometido pecado atual, como diz Agostinho”.


Ou seja, o que Damasceno considera duas santificações, Aquino considera uma só (a que foi mediante a concepção de Cristo), de modo que a primeira santificação de Damasceno é a segunda de Aquino (a primeira foi no ventre), e por isso na passagem supracitada o Angélico diz que as palavras de Damasceno se referem à segunda santificação. Daí o Angélico dizer que a primeira santificação foi “quase preparatória para a concepção de Cristo”, pois se essa santificação de que fala fosse imediatamente antes da concepção de Cristo (na Anunciação), ela seria preparatória propriamente, mas como ela foi no ventre se explica a expressão “quase preparatória”, uma vez que o tempo entre a primeira santificação e a concepção de Cristo foi maior do que entre a Anunciação e a concepção. Portanto, se mantém tudo o que até aqui foi dito acerca da santificação no ventre não ter sido de nenhuma impureza de culpa, o que só pode ser o caso se tal santificação foi simultânea à animação e preservou a Virgem em sua pessoa do contágio da mancha do pecado original. Era essa a passagem do comentário às Sentenças que procurei na live, mas não achei, dificuldades do ao vivo...


Mas pra deixar mais claro, vamos ler a objeção e a resposta de Aquino. Na Summa III, q. 27, a. 3, arg. 3 lemos:


“Damasceno diz, que o Espírito Santo sobrevém à Santa Virgem, purificando-a antes da concepção do Filho de Deus. O que não pode entender-se senão da purificação da concupiscência, pois, nenhum pecado cometeu, como diz Agostinho. Logo, pela santificação no ventre materno não foi de todo isenta da concupiscência.”


Observe o leitor, mesmo o menos honesto, que a própria objeção já supõe a santificação no ventre. Traduzindo pra termos informais, a objeção diz “Damasceno diz ‘Maria foi purificada antes da concepção de Cristo’, mas como ela não teve pecados pessoais para ser purificada deles, resta que tenha sido purificada da concupiscência; portanto, NA SANTIFICAÇÃO NO VENTRE (esta, portanto, é a primeira santificação) não foi purificada totalmente da concupiscência.


Temos o seguinte: 1) a purificação ou é de pecados pessoais ou da concupiscência; não foi de pecados pessoais; logo, foi da concupiscência; 2) mas, ora, a purificação da concupiscência ou foi no ventre ou foi na Anunciação; foi na Anunciação; logo, não foi no ventre. Essa é praticamente a objeção. No ad 3 lemos:


“O Espírito Santo operou na Virgem uma dupla purificação. – Uma, quase preparatória à conceição de Cristo, que veio, não purificá-la de qualquer impureza de culpa ou da concupiscência, mas imprimir mais profundamente na sua alma o caráter de unidade e elevá-la acima da multidão. Assim, também dizemos que são purificados os anjos, nos quais não há nenhuma impureza, como diz Dionísio. – A outra purificação o Espírito Santo operou na Santa Virgem, mediante a concepção de Cristo, obra do mesmo Espírito. E, por ela, podemos dizer que a purificou totalmente da concupiscência”.


Veja que claramente o sentido desse ad 3 é o mesmo que vimos lá no Comentário às Sentenças, a saber, a dupla santificação de que fala o Angélico: a primeira, pela qual foi santificada no ventre materno; e a segunda, na concepção do Salvador. Está claro que o sentido dessa santificação no ventre, que não foi de nenhuma impureza de culpa, é o mesmo pelo qual os anjos também são santificados; ora, estes são criados já em graça, tendo a sua santificação apenas posteridade de natureza em relação à sua criação.


3. Sobre a “imunidade” não se contrair univocamente para o pecado original e atual


No Comentário às Sentenças, Aquino diz:


“Tal foi a pureza da Bem-aventurada Virgem que foi IMUNE AO PECADO ORIGINAL E ATUAL. Esteve, todavia, debaixo da proteção de Deus, enquanto nela existia potência para pecar” (S. Tomás, Coment. I Sent., dist.44, q. 1, a. 3)


Carlos Alberto objeta que o termo “imune” não se contrai univocamente para o pecado original e para o pecado atual, e que, portanto, tal passagem não é prova de uma imunidade do pecado original desde a concepção da Virgem (concepção passiva, é claro). A isto respondo o que se segue.

São Tomás pretende provar esta proposição:


A Santíssima Virgem é a mais pura de todas as criaturas.


Para estabelecê-la parte deste princípio:


Que a pureza se mede segundo a distância que há do pecado


De onde conclui que:


Entre todas as criaturas, a mais pura é aquela que há estado mais distante possível do pecado.


Pois bem, isso foi o que ocorreu com a Bem-aventurada Virgem Maria que foi imune ao pecado original e de todo pecado atual, e, por conseguinte, ela é a mais pura de todas as criaturas. Em minha aula magna citei os motivos que Morgott lista em seu livro Mariología Tomística:


1.São Tomás estabelece um paralelo entre a pureza de Maria e a pureza do próprio Deus: a pureza não tem outra superior senão a do próprio Deus, e unicamente pela razão de que a possibilidade de pecar subsistia nela como em toda criatura dotada de livre arbítrio.


2. Se chega a mesma conclusão também pelo termo escolhido por São Tomás para a isenção do pecado, pois proclama Maria isenta do pecado, immunis a peccato; e essa expressão não tem sentido senão enquanto significa uma isenção absoluta, original e completa do pecado, da mesma maneira que se aplica a Cristo. Podemos confirmar isso:


Nos Padres da Igreja:


Omnis creatura peccatorum capacitati obnoxia est. Sola autem est peccato «immunis», et immaculata sempiterna divinitas. – Toda criatura está sujeita à capacidade de pecar. Mas a divindade imaculada e eterna é a única ‘imune’ ao pecado”. (Ambrosious: De Spir. S. I. III, c. 19, apud MORGOTT, 1899, p. 119) 


Nunc autem quia ex auctoritate totius Ecclesiae venera Te, constat eam ab omni originali peccato immunem fuisse – Mas afora, porque foi venerada pela autoridade de toda a Igreja, é evidente que ela esteve imune de todo pecado original” (S. Ildefonso.; I. I. De Virginitatis Perpetua Sanctae Mariae, I, c. I, PL 96, p. 211).


Nos escolásticos:


Solus enim filius Virginis fuit ab originale culpae, “immunis” et ipsa mater ejus Virgo. – Pois Ele era o único filho da Virgem, ‘imune’ da culpa original, e sua mãe era ela própria uma Virgem” (S. Boaventura. “Serm. De B. Mar. Virg.”).


No próprio Tomás:


Quibusdam videtur, quod Eva peccante, si Adam non peccasset, filii essent ‘immunes’ a culpa. –  Certas pessoas acreditam que, quando Eva pecou, se Adão não tivesse pecado, os filhos teriam sido imunes ao pecado”. I-II. q. 81, a. 5, 2m.


Decimatio erat actus tantum figuralisquantum ad illos; qui in lumbis Abrahae decimabantur, et ideo Christo non competebat, quia ab originali «immunis»¹ fuit – A dizimação era um ato apenas figurativo em relação àqueles que estavam nos lombos de Abraão e, portanto, não se aplicava a Cristo, porque ele foi imune ao pecado original”. IV. dist. 1 qu. 2. a2, qu, 22, 2.


3. Esta proposição: “A Bem-aventurada Virgem Maria foi imune do pecado original e do pecado atual” significa que a Santíssima Virgem não manchada nem por um e nem por outro; se se pudesse ter outro sentido o pensamento de Santo Tomás não determinaria um privilégio exclusivo da Mãe de Deus, nem uma pureza superior à dos homens que recebem o Batismo, pois não haveria entre a Santíssima Virgem e eles senão uma diferença de tempo e não de um grau de pureza mais elevado que se possa existir. Afinal, que privilégio haveria em ser imune ao pecado original, mas não desde sempre?


Tomás afirma que Maria foi imune do pecado original e atual. A mesma imunidade dada ao atual é dada ao original. E como se não bastasse isso, ele ainda o afirma nos mesmos termos em que tal imunidade do pecado original é negada por outros escolásticos, como São Boaventura, por exemplo, que afirma em seu Comentário às Sentenças:


São Boaventura diz:


“E porque esta honra, isto é, ser imune de todo pecado, tanto original como atual, pertence apenas ao Filho de Deus, porque só ele foi concebido pelo Espírito Santo e nasceu da Virgem; portanto não deve ser atribuído à Virgem” (III Sent., d. 3, p. I, a. 1, q. 2)


 E Santo Tomás diz:


“E tal foi a pureza da Bem-aventurada Virgem, que foi imune do pecado original e atual" (I Sent., dist.44, q. 1, a. 3, ad 3)


Sendo contemporâneos e até mesmo rivais, seria improvável (pra não dizer impossível) que Aquino não conhecesse a obra de Boaventura e dos demais escolásticos. Boaventura sim nega veementemente a santificação de Maria no mesmo instante de tempo de sua animação, e nega também sua imunidade do pecado original. Isso enquanto Aquino, no mesmo Comentário às Sentenças, afirma sua total imunidade do pecado original e não trata diretamente da santificação no mesmo instante de tempo da animação. Enquanto um nega a imunidade, outro a afirma.


Citando agora Mariano Spada em seu “Esame Crítico”: Os opositores não ficam satisfeitos com esta resposta e, assim, acrescentam: Outros homens nesta vida, às vezes, estão sem pecado, até mesmo venial, e por isso, deles, das crianças recém-batizadas e dos bem-aventurados no Céu, pode-se dizer que não foram contaminados por nenhum contágio de pecado: nem por essa palavra “nenhum” se exclui para sempre deles a culpa. Digo que uma reflexão gramatical resolve a dificuldade. As palavras de Santo Tomás são: “Talis fuit puritas B. Virginis”, ou seja, “nulla contagione peccati inquinata fuit... peccato originali, et actuali immunis fuit”. A conjugação do verbo “fuit” é do passado, sem qualquer partícula restritiva de tempo: portanto, a significação do verbo deve ser tomada em toda a sua extensão, ou seja, por todo o tempo passado, que é o mesmo que sempre.


E é por isso que de Maria se pode dizer: “Nulla contagione peccati inquinata fuit... a peccato originali, et actuali immunis fuit”: mas das crianças, dos justificados e dos bem-aventurados não se pode dizer “nulla contagione peccati inquinati fuerunt”, embora se possa dizer “nulla contagione peccati inquinati sunt”. Da mesma forma que de um protestante convertido ao catolicismo se pode dizer que não é herético, mas não que nunca foi herético, como se pode dizer de outro que sempre esteve no seio da Santa Igreja. Além disso, se este argumento valesse para o pecado original, deveria valer para o pecado atual, e então se poderia concluir que Santo Tomás, nesses textos, não exclui de Maria para sempre o pecado atual.


Mesmo que se conceda que a imunidade não se contraia univocamente, nada impede que em ambos os casos a imunidade seja desde sempre, e é isso que o contexto indica, pois Aquino diz que ela foi sem restrição temporal (fuit).


Até aqui basta.

NOTAS


1 -  Os Papas mesmos se servem de igual expressões em suas Constituições sobre esta matéria; Vetus est Christ fidelium erga ejus Beatissima Matrem Virginem mariam pietas sentientium, ejus animam in primo instante creationis atque infusionis in corpus fuisse speciali Dei gratia et privilegio, intuitur meritorum Jesu Christi ejus Flii, humani generis Redenptoris, a macula peccati originalis praeservatam “immunis – Antiga é a piedade dos fiéis cristãos para com sua bem-aventurada mãe, a Virgem Maria, pelo que pensam que sua alma foi preservada imune da mancha do pecado original, desde o primeiro instante da criação e da infusão no corpo, por especial graça e privilégio de Deus em consideração dos merecimentos de seu filho Jesus Cristo”. (Alex VII. Const. Sollicitudo ommnium Ecclesiarum, 8 dec. 1661. Denz. 2015). O mesmo Pio IX na bua “Inefabilis Deus” de 8 de dezembro de 1854, usa o termo imune para se referir à Virgem, assim, se o argumento do Carlos Alberto de que o termo “immunis” não se contrai univocamente (leia-se: no mesmo sentido) para o pecado original e para o atual vale para Aquino, então deve valer para Pio IX.



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