Quatro Objeções ao Purgatório Refutadas: Parte 1- A acusação de paganismo
- Kertelen Ribeiro
- 2 de fev.
- 26 min de leitura
Atualizado: 9 de fev.

Objeção 1. O Purgatório é uma corrupção pagã?
Não acredito que seja. Os católicos receberam essa doutrina de antigas crenças judaicas no entorno palestino onde o cristianismo surgiu, já que os apóstolos e Cristo eram judeus, além de muitos rabinos com influência religiosa e cultural. Um exemplo claro disso é encontrado no livro de 2 Macabeus, uma obra escrita mais de 150 anos antes dos evangelhos e que comprova a existência da prática de rezar pelos mortos e de oferecer sacrifícios para purificá-los dos pecados no meio litúrgico judaico do Segundo Templo, numa época anterior ao nascimento do Cristianismo:
Bendisseram, pois, a mão do justo juiz, o Senhor, que faz aparecer as coisas ocultas, e puseram-se em oração, para implorar-lhe o perdão completo do pecado cometido. O nobre Judas falou à multidão, exortando-a a evitar qualquer transgressão, ao ver diante dos olhos o mal que havia sucedido aos que foram mortos por causa dos pecados. Em seguida, organizou uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de dez mil dracmas para que se oferecesse um sacrifício pelos pecados. Belo e santo modo de agir, decorrente de sua crença na ressurreição! Pois, se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles. Mas, se ele acreditava que uma belíssima recompensa aguarda os que morrem piedosamente, era esse um bom e religioso pensamento. Eis por que ele pediu um sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres de suas faltas. (2 Macabeus 12: 41-46)
Há quem diga que o registro não prova nada [muitas vezes acusando a suposta falta de inspiração divina do livro], mas o dado é historicamente verificável. Ou seja, a ideia de que havia judeus que rezavam pelos mortos na época anterior aos apóstolos é um dado factual. O historiador Jacques Le Goff (2017, p. 67) admite que as duas escolas rabínicas mais influentes no Judaísmo da época apresentavam a crença num estado intermediário após a morte, o que é testificado em dois tratados do período entre a destruição do segundo templo [70] e a revolta de Bar Kochba [132-135]:
O primeiro é um tratado sobre o início do ano (Ros Hasana):
“Ensina-se segundo a Escola de Shammay: haverá no julgamento três grupos: o dos totalmente justos o dos totalmente ímpios e o dos intermediários. Os totalmente justos são logo inscritos e selados para a vida do século; os totalmente ímpios são logo inscritos e selados para a geena, segundo o que está dito (Dn 12,2). Quanto aos intermediários, descem à geena, reclusos, e depois sobem, segundo o que está dito (Zc 8,9; 1Sm 2,6). Mas os hilelitas dizem: aquele que é abundante em misericórdia inclina-se para a misericórdia, e é sobre esses que Davi fala (Sl 116,1), sobre Deus que escuta e pronuncia a respeito deles toda esta passagem [...]. Pecadores israelitas e gentis que pecaram em seu corpo, punidos na geena durante doze meses, depois aniquilados [...].
O segundo é um tratado sobre os tribunais (Sanhedrin), em que diz quase a mesma coisa:
Os samaítas dizem: existem três grupos, um para a vida do século, o outro para a vergonha e o desprezo eterno; são os totalmente ímpios, dos quais os menos graves descem à geena para nela serem punidos e dela subirem curados, segundo Zc 8,9, é sobre eles que se diz (1Sm 2,6): Deus condena à morte e vivifica. Os hilelitas dizem (Ex 34,6) que Deus é abundante em misericórdia; inclina para a misericórdia e Davi fala sobre eles em todo o Sl 66,1. - O Nascimento do Purgatório, p. 67
Veja que nas descrições, este terceiro grupo de almas [os intermediários] que não sobe diretamente ao céu, tampouco se encontra entre os condenados ao inferno, de fato, constitui o cerne da discussão nesse período remoto, e Le Goff chega a concluir que “Esta concepção, levará a distinguir na geena uma parte superior, onde ocorrerão estes castigos temporários”. Tais castigos “temporários” darão origem a uma doutrina na Igreja Primitiva chamada “Penas Temporais”, que está ligada diretamente ao purgatório, todavia, não falarei desse assunto neste artigo, mas em outro. Embora a narrativa soe familiar, muitos decidem não observar as conexões claras, sob o pretexto de uma suposta paganização helenística [já que os judeus se encontravam sob ocupação grega]. Todavia, é importante destacar, além de tudo, que os mártires macabeus foram heróis da nação de Israel, e altamente venerados e estimados pela Igreja cristã primitiva por sua resistência ao rei Antíoco IV Epifânio, que tentou forçar os judeus a adotarem práticas gregas verdadeiramente pagãs.
Judeus “Pagãos”?
Judas Macabeu, anteriormente citado como oferecendo sacrifícios pelos mortos, era o terceiro de cinco filhos de um sacerdote do Templo judaico chamado Matatias, que liderou a resistência contra a ocupação estrangeira e morreu justamente para evitar a paganização e a imposição da cultura grega a Israel. O rei Antíoco IV Epifânio estava perseguindo os judeus, forçando-os a práticas proibidas, além de queimar as Escrituras e profanar o Templo de Jerusalém [2 Macabeus 6,1-8]. De fato, o Hanukkah, que significa Dedicação [2 Mac 10], é uma celebração judaica que dura oito dias e fora estabelecida justamente para festejar a vitória de Judas e a rededicação do Templo que havia sido profanado pelos gregos, algo que ocorreu em 164 a. C.
Lemos o seguinte em 2 Macabeus 2, 14-22:
Vamos, pois, celebrar a purificação do templo, e é por isso que vos escrevemos. Seria bom que também celebrásseis essas festas. Foi Deus quem salvou todo o seu povo e restituiu a todos a herança, o reino, o sacerdócio e a santificação, como havia prometido pela Lei. Este Deus, em quem esperamos, sem dúvida terá logo piedade de nós e de toda a terra, nos reunirá no solo sagrado. Pois já nos livrou de grandes males e purificou o templo. Os acontecimentos efetuados no tempo de Judas Macabeu e de seus irmãos, a purificação do augusto templo e a dedicação do altar, como também as guerras sustentadas contra Antíoco Epífanes e seu filho Eupátor, as manifestações celestes sobrevindas em favor dos bravos, que lutaram corajosamente em defesa do judaísmo e que, apesar de seu número reduzido, se tornaram senhores de todo o país, puseram em fuga as hordas bárbaras, recobraram a posse do templo famoso em todo o universo, livraram a cidade e restabeleceram as leis em via de abolição, tudo isso, graças ao Senhor que lhes foi misericordioso [...] - Bíblia Ave Maria

Os Sete Irmãos Macabeus com sua Mãe no Caldeirão Fervente (1517), Domínio Público
Judas não foi o único a sofrer uma morte piedosa, o que é descrito em 1 Mc 9, 18-21, mas também se dirigiu ao martírio o bravo ancião Eleazar [2 Mc 6,18-31], um dos doutores da Lei mosaica da época e mais outros sete mártires irmãos cuja memória é celebrada pela venerada Igreja, os quais também são lembrados como exemplos de coragem e fidelidade à religião judaica em tais tempos. Estes passaram para a outra vida por meio de uma morte extremamente dolorosa e cruel, o que serviu de exemplo a muitos cristãos durante os anos de ferro e de perseguição dos primeiros séculos. Acima, vemos a imagem dos sete irmãos macabeus, que foram martirizados diante dos olhos de sua mãe.
O rei grego queria forçá-los a transgredir a Torá, mas os corajosos santos, tal como Sadraque, Mesaque e Abedenego diante de Nabucodonosor [Daniel 3], preferiram morrer a desobedecer a lei de sua religião. Em resposta a isso, Antíoco ordenou que caldeirões de ferro fossem aquecidos em chamas a altíssima temperatura e que os sete jovens fossem lançados ali dentro, um a um. Antes disso, os torturou de forma sádica, arrancando-lhes a língua, o couro cabeludo e, por último, amputando suas mãos e seus pés, o que é descrito em 2 Mc 7. O que mais chamou atenção em tal relato, no entanto, foi a coragem e a força dos mártires, cuja fé na ressurreição os levou a caminhar para a morte agonizante, ao som dos gritos da mãe, que os incentivava com palavras de consolo e perseverança.
Um deles disse ao rei:
“Maldito, tu nos arrebata a vida presente, mas o Rei do universo nos ressuscitará para uma vida eterna, pois morremos por fidelidade às suas leis”. [2Mc 7, 9]
E outro declara:
“Do céu recebi estes membros, mas eu os desprezo por amor às suas leis, e dele espero recebê-los um dia de novo”. [2Mc 7, 11]
Ainda outro chegou a ecoar o mesmo:
“É uma sorte desejável perecer pela mão humana com a esperança de que Deus nos ressuscite. Para ti, porém, certamente não haverá ressurreição para a vida!” [2Mc 7, 14]
Judas Macabeu, Eleazer, os sete irmãos e inúmeros outros judeus sofreram martírio unicamente porque foram fiéis a Deus, e isso fizeram porque tinham esperança na ressurreição dos justos. Todavia, estes judeus, acusados injustamente de paganismo [enquanto lutavam contra o verdadeiro paganismo] por aqueles que consideram pagão o costume de rezar pelos mortos, acreditavam que a razão de rezarem e oferecerem sacrifícios pelos mortos estava enraizada na sua crença judaica na ressurreição [uma doutrina que os gregos desprezavam].
Veja:
Belo e santo modo de agir, decorrente de sua crença na ressurreição! Pois, se ele não julgasse que os mortos ressuscitariam, teria sido vão e supérfluo rezar por eles.
Ora, se a oração pelos mortos surgiu do fato de que alguns judeus acreditavam na ressurreição, e usavam tal ideia para sustentar a oblação em favor dos mortos, então por que essa prática é vista como pagã? Se os inimigos pagãos contra quem esses judeus lutavam negavam a ressurreição [fundamento da oração pelos mortos]? Isso não parece fazer sentido. Lembrando que, como ressaltou Bremmer (2003, p. 41), acadêmico e historiador holandês que atuou por anos como professor de Estudos Religiosos e Teologia na Universidade de Groningen e é especialista em história da religião antiga, em religião grega antiga e em cristianismo primitivo, “para os gregos e os romanos, esta era uma ideia impensável”.
A suposta paganização
A alegação de paganismo foi suscitada com comparações da doutrina católica e judaica com as crenças de povos vizinhos contidas, por exemplo, em obras como Eneida, de Virgílio, ou A República, de Platão. Há quem sugira que essas ideias de um além intermediário, um terceiro grupo de almas e sacrifícios e orações por tais mortos, que desembocam num purgatório, sejam fruto da helenização no judaísmo [e consequentemente, no cristianismo]. É verdade que nesses dois casos citados, podemos encontrar a noção de que os mortos recebem recompensas ou pagam por seus pecados após a morte. Vejam as menções desses conceitos a seguir em uma das referências:
Supunham estarem aptos para subir e sair, porém a abertura não admitia o seu ingresso, mas emitia bramidos toda vez que um daqueles indivíduos incuravelmente perversos ou que não fora suficientemente punido tentava encetar o caminho acima. E havia, ele diz, homens selvagens de aparência ígnea que se mantinham a postos e que, atentos ao bramido, agarravam alguns desses criminosos e os afastavam dali. Quanto a Ardieu e outros, ataram--lhes mãos, pés e pescoços, os estenderam sobre o solo e os esfolaram, arrastando-os em seguida e os dilacerando sobre espinheiros, e indicando a todos os passantes por que eram tratados daquela forma e que seriam arrojados no Tártaros. E ele disse que, de seus muitos e diversos medos, o maior experimentado por cada um deles era que o bramido fosse ouvido quando se dispusesse a subir, e todos se sentiram profundamente aliviados por serem saudados pelo silêncio. Foram esses os julgamentos e castigos, bem como recompensas, a eles correspondentes. Depois de passar sete dias no prado, cada grupo no oitavo dia tinha de subir e empreender uma viagem. No quarto dia de viagem chegou a um lugar de onde pôde ver de cima um feixe reto de luz, semelhante a uma coluna, que se estendia sobre o todo do céu e da Terra, mais parecido com um arco-íris, porém mais resplandecente e mais puro. Decorrido mais um dia, alcançaram a própria luz e ali, no meio desta, avistaram as extremidades de seus laços do céu, pois a luz se uniu à total abóbada celeste revolvente à maneira dos cabos que cingem os flancos de uma trirreme. - A República, Platão, p. 486-7
Após a morte, esses povos também entendiam que as almas dos mortos passariam por provações de acordo com suas escolhas pessoais na vida, estando muitas vezes como que em sofrimento, ao serem açoitadas, penduradas pelos ventos ou queimadas pelo fogo até que a mancha do crime seja removida ou aniquilada e possam se tornar limpos para entrar em uma existência superior. Mas a ideia não está presente somente entre os escritos de tradição grega, mas também no hinduísmo, no Zoroastrismo e até no Islã (não podendo esta última religião competir com os gregos como a suposta fonte da paganização judaico-cristã, pelo fato de ter nascido posteriormente, no século VI, mas para fins de informação foi citada). O fato de haver tal compartilhamento, no entanto, para os católicos, apenas confirma aquilo que o divino apóstolo Paulo mencionou acerca de pagãos que compartilhavam de verdades que lhes foram clarificadas pela luz da natureza e da razão [Romanos 2]. Eles chegaram a perceber aquelas verdades porque elas eram coerentes com a realidade e com a lei presente em suas consciências.
O APÓSTOLO PAULO SOBRE A LEI INTERIOR
Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; Os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os; No dia em que Deus há de julgar os segredos dos homens, por Jesus Cristo, segundo o meu evangelho.
Romanos 2, 14-16
A antiga doutrina persa acerca da vida após a morte, por exemplo, explica que haverá um purgatório para purificar os homens de acordo com suas obras também, e o ilustra com metáforas como metal derretido [mais severo] e leite morno [menos severo], de acordo com a justiça dos homens que passarão por ele:
[...] todos os homens passarão por aquele metal derretido e se tornarão puros. Se alguém é justo, parece-lhe apenas como se andasse em leite morno; mas se for perverso, então parece-lhe de tal maneira como se, estando no mundo, andasse continuamente em metal derretido.
A Bíblia apresenta tanto a ideia grega anteriormente citada por Platão com respeito a guardas a impedir a passagem do homem pecador ao reino celestial [Genesis 3,24] quanto a ideia de uma purificação de pecados persa [Malaquias 3, 2-3]. A Bíblia compara esse processo com o encontro com Deus, que é como o fogo que refina os homens ou como o sabão dos lavandeiros. Alguém pode propor diante disso: “Então os judeus [e consequentemente, os católicos] roubaram o purgatório dos persas, e não dos gregos!”. Bom, o problema com isso é que nós temos mais de uma possibilidade e as evidências não parecem favoráveis a essa tese. Por exemplo, não é por que um povo entrou em contato com outro que ele irá abraçar a religião estrangeira. Isso é bem possível de acontecer, ainda mais quando haja elementos harmônicos ou questões de política de dominação, mas não é uma regra. E não parece razoável que isso se aplique a Macabeus 1 e 2, e vimos anteriormente o motivo.
Outro exemplo claro foi a situação dos gregos, que não engoliram a noção de ressurreição persa, como lemos do professor PhD. da Universidade de Columbia, A. V. Williams Jackson (p. 150): “Foi essa doutrina de uma ressurreição corporal, bastante estranha à ideia grega, por mais forte que seja a crença na imortalidade, que forma um princípio fundamental na fé dos magos”. E sabemos ao ler S. Paulo na bíblia que os gregos ainda não aceitavam a ideia da ressurreição mesmo em sua época. Também, ainda, devemos lembrar que somente pelo fato de possuírem, dois povos, elementos religiosos em comum, como a crença na imortalidade da alma, isso não prova que seja uma derivada da outra. Ou que a crença compartilhada seja uma corrupção. O caso mais emblemático é o da ressurreição.
A Ressurreição é uma crença compartilhada com pagãos também
Por algum tempo, alguns sustentaram que a crença na ressurreição contida no Judaísmo fosse uma derivação persa do Zoroastrismo. O motivo disso? O fato de os persas terem sua própria doutrina da ressurreição, assim como os judeus, e que tal ideia gozava, no meio gentílico, de uma aceitação maior da ressurreição do que no meio rabínico hebreu. Mas isso prova algo? E se o mesmo rigor crítico usado para tratar do purgatório for usado também com respeito à ressurreição [um conceito disputado na época de Cristo, aceito somente por alguns judeus], será que os cristãos serão acusados de paganismo também por recitarem o Credo Apostólico, dizendo “Creio na Ressurreição da carne”, em razão de abraçarem essa tradição judaica disputada?
Jon Douglas Levenson, estudioso da Bíblia hebraica americano e Professor de Estudos Judaicos na Harvard Divinity School, apresentou em seu livro Resurrection and the Restoration of Israel (2006) [Trad.: A Ressurreição e a Restauração de Israel] uma rica defesa do desenvolvimento interno da ressurreição dentro da tradição judaica a partir de noções bíblicas, exemplos proféticos/tipológicos e construções socioculturais. Ainda assim, o tema da origem da doutrina da ressurreição no Judaísmo continua controverso, mas os dados atuais não confirmam a origem persa, como ressalta C. D. Elledge, professor de Novo Testamento, Ph.D no Seminário Teológico de Princeton, com pesquisa na área de Judaísmo Primitivo, de Arqueologia bíblica e Manuscritos do Mar Morto.
Ele (2017, p. 7) argumenta que o desenvolvimento da ressurreição se deu de maneira interna, com ênfase na “forte confiança intertextual em tradições bíblicas anteriores”, sem negar a possibilidade do reforço – a essas tradições internas – da articulação harmoniosa com visões de povos geograficamente próximos, que compartilhavam da visão com os judeus. Ele continua: “bem como a articulação ocasional da esperança da ressurreição na linguagem mitológica dos seus vizinhos regionais”. Ou seja, o assunto não deve ser visto de maneira a apresentar dois argumentos autoexcludentes, pois os dados “parecem proibir uma abordagem dicotômica deste velho problema”. Ao mesmo tempo em que se tratava de uma fé judaica aludida por variados textos contidos na bíblia e em outros documentos da tradição judaica, sendo aceita em razão da crença na autoridade deles, era crida também por povos gentílicos próximos.
No cap. 7 de sua obra Resurrection of the Dead in Early Judaism, 200 BCE - CE 200 [Trad.: “Ressurreição dos mortos no judaísmo primitivo, 200 a.C. – 200 d.C.” – Oxford University Press, 2017], diz em referência a 1 Enoque:
Não é preciso esperar por 2 Macabeus para identificar uma concepção física, corporal e terrena de renovação humana no judaísmo primitivo. À luz dos Vigilantes, 2 Macabeus 7 parece ter feito uma apresentação mais filosófica e apologética aos ideais de ressurreição física que já existiam no Judaísmo ao longo do século anterior. Uma vez que esta compreensão material existe nos Vigilantes já no final do terceiro século a.C., parece sensato evitar o tratamento da ressurreição física como um desenvolvimento posterior que só ocorreu após os anteriores tipos celestes e espirituais de esperança de ressurreição. - Ressurection of the dead in Early Judaism, p. 147.
É notório o peso dos estudos feitos em torno do tema para desconstruir a certeza de alguns na alegada herança zoroastrista. Jan N. Bremmer, anteriormente citado, também escreveu sobre isso em sua obra The Rise and Fall of the Afterlife [Trad.; “Ascensão e Queda da vida após a morte”], na qual esclarece que “a conexão entre a visão de Ezequiel e as práticas persas não pode ser considerada um fato comprovado” (p. 48). Dizer que ambas as tradições apresentam a mesma ideia não prova uma apropriação. E o historiador ateu Bart Ehrman (2020) também observou isso em sua obra Heaven and Hell: An History of the After Life [Trad.: Céu e Inferno: Uma História acerca do Pós-Vida], mencionando a interpretação que alguns judeus deram a certos textos de profetas, e que se tornaram essenciais no Cristianismo para a doutrina da ressurreição:
A partir do sexto século a.C., os profetas hebreus começaram a proclamar que a nação que havia sido destruída seria restaurada à vida por Deus. Em certo sentido, ela seria “ressuscitada dos mortos”. Esta foi uma ressurreição nacional — não das pessoas que viviam na nação, mas uma restauração da própria nação de Israel — para se tornar, mais uma vez, um estado soberano. Perto do fim do período do Antigo Testamento, alguns pensadores judeus passaram a acreditar que essa futura “ressurreição” não se aplicaria às fortunas da nação, mas aos indivíduos. Se Deus fosse justo, certamente ele não poderia permitir que o sofrimento dos justos não fosse correspondido. Haveria um futuro dia de julgamento, quando Deus literalmente traria seu povo, cada um deles, de volta à vida. Esta seria uma ressurreição dos mortos: aqueles que estavam do lado de Deus retornariam aos seus corpos para viver para sempre. Jesus de Nazaré herdou essa visão e a proclamou com força. - Heaven and Hell: A History of the Afterlife, p. 13.
Os judeus fariseus entendiam a ressurreição como literal e escatológica, enquanto que os judeus saduceus a entendiam como metafórica. O apóstolo Paulo era fariseu [At 23,6] e Cristo, mais de uma vez, negou a interpretação dos saduceus [Mc 12, 18-37], o que fez com que os seus seguidores a rejeitassem também. Enquanto criticava os excessos do farisaísmo, Jesus confirmou seu entendimento de Daniel 12, e o seu embasamento em textos como Isaías 26,19; Ezequel 37,1–14 e outros.
E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno. Dn 12,2
Além de a ideia ter recebido o suporte de documentos como o livro de 1Enoque e outros de natureza profética, Levenson, anteriormente citado, demonstra em sua pesquisa sobre o tema, como figuras emblemáticas, tais como o homem de Deus Eliseu ressuscitando uma criança dos mortos [Reis 4:8-32] e a imagem frequentemente aludida de Israel como a Mãe recebendo seus filhos da sepultura, construíram o imaginário escatológico judaico que desembocou na ressurreição individual, o que se deu de forma natural e orgânica. Tal grupo, que não entendia as profecias de vivificação dos filhos de Judá como um símbolo da ascensão nacional, logo se tornou proeminente e essa ideia coincidiu com um conceito presente na tradição persa, o que não indica necessariamente uma paganização e uma corrupção tardia.
O ATEU BART EHRMAN NEGA ORIGEM DA RESSURREIÇÃO NO ZOROASTRISMO PERSA
O historiador Bart Ehrman, anteriormente mencionado, nega que sejam comprovadas as afirmações categóricas daqueles que alegam que os judeus tenham herdado a sua doutrina da ressurreição dos mortos do Zoroastrismo, o que demonstra que só porque uma religião compartilha de crenças em comum com outra, isso não significa necessariamente uma corrupção arbitrária.
Mais recentemente, os estudiosos questionaram a ideia de que a doutrina judaica [da ressurreição] tenha derivado da religião persa em razão de certos problemas envolvendo a datação. Alguns especialistas minaram a tese inteira ao apontar para o fato de que, na verdade, não temos nenhum texto do Zoroastrismo que apoie a ideia da ressurreição antes de ela ter surgido nos escritos do Judaísmo primitivo. Não está claro quem influenciou quem [...]Ainda mais significativo é o fato de que o momento em que isso se deu não faz sentido: Judá emergiu do domínio persa no quarto século a.C., quando Alexandre, o Grande (356–323 a.C.) varreu o Mediterrâneo oriental e derrotou o Império Persa. Mas a ideia de ressurreição corporal não aparece em textos judaicos a não ser em um período distante bem mais de um século depois disso. Embora fatores externos possam ter exercido algum nível de influência, é possível que a ideia de uma futura ressurreição particular possa ter surgido principalmente como um desenvolvimento interno em resposta às situações sociais e políticas preocupantes que confrontavam os fiéis judeus (EHRMAN 2020, p. 100)
Se uma doutrina pode ser crida por duas religiões sem que isso necessariamente indique uma apropriação, como ocorre com o caso da ressurreição dos mortos, então este critério não pode constituir uma regra absoluta aplicada a toda e qualquer semelhança doutrinária encontrada nos diversos sistemas de crenças das variadas religiões existentes. Seria desastroso se descartássemos a doutrina da ressurreição como uma falsidade só por isso, ou mesmo a doutrina da imortalidade da alma e do próprio monoteísmo, só pelo fato de essas ideias estarem presentes em outros credos. A Igreja fornece uma razão bíblica para isso, que é a mesma que o apóstolo Paulo citou aos romanos, o que foi mencionado acima.
32. [...] São Paulo afirma a respeito dos pagãos: «”O que se pode conhecer de Deus é manifesto para eles, porque Deus lho manifestou. Desde a criação do mundo, a perfeições invisíveis de Deus, o seu poder eterno e a sua divindade tornam-se pelas suas obras, visíveis à inteligência” » (Rm 1, 19-20). E Santo Agostinho diz: «Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar interroga a beleza do ar que se dilata e difunde, interroga a beleza do céu [...] interroga todas estas realidades. Todas te respondem: Estás a ver como somo belas. A beleza delas é o seu testemunho de louvor [«confessio»]. Essas belezas sujeitas à mudança, quem as fez senão o Belo [«Pulcher»], que não está sujeito à mudança?».
33. O homem: Com a sua abertura à verdade e à beleza, com o seu sentido do bem moral, com a sua liberdade e a voz da sua consciência, com a sua ânsia de infinito e de felicidade, o homem interroga-se sobre a existência de Deus. Nestas aberturas, ele detecta sinais da sua alma espiritual. «Gérmen de eternidade que traz em si mesmo, irredutível à simples matéria», a sua alma só em Deus pode ter origem.
Catecismo da Igreja
OS PAGÃOS PODEM CHEGAR A CERTAS VERDADES ETERNAS ACERCA DE DEUS ATRAVÉS DA NATUREZA E DA RAZÃO, POIS POSSUEM A LEI INTERIOR EM SI
A noção do purgatório surge a partir da reflexão envolvendo a santidade de Deus em contraste com o pecado humano. Os pagãos que chegaram a conceberem a existência do purgatório o fizeram por concluir que Deus ou os deuses estão tão elevados em pureza, justiça e santidade, acima de sua criação, que os mortais precisariam necessariamente de uma limpeza para participar de sua comunhão e amizade.
A Igreja entende que essa capacidade que os pagãos possuem para chegar a determinadas verdades é parte da provisão salvífica, já que Deus revela a Si mesmo a todo homem por outros meios além da Escritura e da Tradição da Igreja. E não somente o Santo Paulo falou dessa realidade, mas muitos profetas e salmos disso deram testemunho. Sendo assim, por causa da misericórdia, uma vez que o homem é dotado da centelha da divindade e feito à imagem de seu Criador, pode ele chegar a certas verdades pela própria razão natural e pela sua consciência. Além disso, o mundo também de Deus testifica, fornecendo evidência de ordem e sabedoria na disposição da sua estrutura e de seu funcionamento.
Ainda assim, no entanto, é importante ressaltar que a Igreja é categórica ao declarar: “Qualquer bem ou verdade encontrada entre eles [pagãos] é considerada pela Igreja como uma preparação para o Evangelho” [LG 16]. Pois a plenitude da Verdade só pode ser vivida e experimentada no seio da Igreja Católica. Isso significa que, “embora se encontrem muitos elementos de santificação e de verdade” fora da igreja, eles são “dons pertencentes à Igreja de Cristo” e “impelem para a unidade católica” [LG 8] – i. e., para que os homens se voltem para Cristo.
O que a Igreja Primtiva achava?
Eu vou apresentar pelo menos três evidências que demonstram que a Igreja Primitiva apoiava a prática e não achava que os judeus que criam na ressurreição e que por isso ofereciam sacrifícios pelos mortos eram pagãos:
Os primeiros cristãos aceitaram a herança judaica de rezar pelos mortos;
Os primeiros cristãos não consideravam os mártires macabeus pagãos ou mesmo judeus traidores envolvidos num culto demoníaco e proibido, mas os elogiavam como santos;
Os primeiros cristãos entendiam a prática litúrgica de Sacrifício pelos mortos relatada em 2 Macabeus como perfeitamente harmônica com o Cristianismo e aperfeiçoada na Missa [também sendo celebrada em favor dos mortos]
OS PRIMEIROS CRISTÃOS REZAVAM PELOS MORTOS
As especulações são inúmeras em torno do além intermediário e das orações pelos mortos, do purgatório, e etc. Há quem sugira que sim, que trata-se de uma doutrina alienígena. Há quem argumente que não. Mas digam o que quiser os adversários da doutrina, todavia, a Igreja primitiva não achava que se tratava de uma paganização, e desde cedo vemos a adoção da prática descrita em 2 Macabeus 12 nas inscrições cristãs como parte da devoção comum dos seguidores de Cristo, o que está registrado em tumbas antigas, como o epitáfio de Abércio de Hierápolis, na Frígia, nas atas de martírio de santos celebrados, nos tratados teológicos e cartas de Pais da Igreja eminentes.
O SACERDOTE ABÉRCIO

Bispo de Hierápolis
“Cidadão de uma cidade proeminente, ergui isto enquanto vivia, para que pudesse ter um local de descanso para o meu corpo. Abércio é o meu nome, discípulo do casto Pastor que apascenta suas ovelhas nas montanhas e nos campos, que tem grandes olhos a perscrutar todas as coisas, o qual me ensinou os fiéis escritos da vida. De pé, eu, Abércio, mandei que fosse escrito isto: Verdadeiramente, eu estava no meu septuagésimo segundo ano. Que todo aquele que esteja de acordo com isso e que o entenda ore por Abércio”. - Epitáfio de Abércio, ano 180-190 d.C.
O fato de um bispo da Igreja Católica e pastor do rebanho de Cristo, Abércio de Hierápolis, ter sido capaz de deixar uma inscrição pública requerendo a oração dos fiéis em favor de sua alma, sem qualquer constrangimento, demonstra a popularidade da prática numa época remota da era cristã. Isso é um dado a se considerar, pois além disso, a presença da devoção não se encontrava apenas presente no clero e na liderança cristã, como demonstrado acima, mas nas camadas baixas dos leigos, e em estórias populares e piedosas, o que fica demonstrado pelas atas de martírio de Felicidade e Perpétua e pelo apócrifo, Atos de Paulo e Tecla:
Veja que a ideia de “transferência” de mortos de uma situação de penalidade para uma situação de refrigério, por meio das orações dos vivos, é encontrada em documentos extremamente antigos da Igreja cristã primitiva, como aquele apresentado na descrição do Martírio de Felicidade e Perpétua [“ele havia sido transportado do lugar de punição”- ano 202 d. C.]. A mesma ideia também está contida no apócrifo Atos de Paulo e Tecla [“e eu seja transferida para o lugar dos justos” – ano 160 d. C.].
O MARTÍRIO DE PERPÉTUA E FELICIDADE
“Naquela mesma noite, isso me foi revelado em uma visão: eu [Perpétua] vi Dinócrates saindo de um lugar sombrio, onde também havia vários outros, e ele estava ressecado e com muita sede, com um semblante imundo e cor pálida, e a ferida em seu rosto que ele tinha quando morreu. Este Dinócrates tinha sido meu irmão segundo a carne, de sete anos de idade, o qual morreu miseravelmente com uma doença… Por ele eu havia feito minha oração, e entre ele e eu havia um grande abismo, de modo que nenhum de nós poderia se aproximar do outro… e eu sabia que meu irmão estava sofrendo. Mas confiei que minha oração traria alívio ao seu sofrimento… Orei por meu irmão dia e noite, gemendo e chorando para que ele me fosse concedido. Então, no dia em que permanecíamos acorrentadas, isso me foi revelado: vi que o lugar que antes eu tinha observado ser uma escuridão, agora estava claro; e Dinócrates, com um corpo limpo e bem vestido, estava recebendo refrigério… E ele saiu da água para brincar alegremente, tal como as crianças, e então eu acordei. Dessa forma, compreendi que ele havia sido transportado do lugar de punição”. - O Martírio de Perpétua e Felicidade 2:3–4, ano 202 d.C.
O relato do martírio dessas duas mulheres santas em Cartago é de grande importância historicamente, pois as igrejas celebravam a memória de Felicidade e Perpétua em suas reuniões, lendo nas atas de sua entrega, a oração de Perpétua em favor seu irmão Dinócrates, graças a qual fora ele tirado do “lugar de punição”. O fato de ter ela se lembrado do irmão naquele momento de sofrimento e perseguição despertava a admiração e a devoção nos fiéis cristãos, que elogiavam a caridade da irmã que intercedeu pelo menino.
Lemos ainda, no contexto cristão, o apócrifo Atos de Paulo e Tecla, utilizado como literatura piedosa em muitos círculos cristãos. O texto foi citado por personalidades como S. Ambrósio e S. Jerônimo, e, ainda que S. Agostinho e o magistério da Igreja considerem o documento como contendo elementos lendários, não inspirado, todavia, ainda assim ele serve para fins de pesquisa histórica, confirmando a existência da prática da oração pelos mortos na Igreja Primitiva em um período muito remoto.
OS ATOS DE PAULO E TECLA
“E depois da exposição, Tryfaena novamente a recebeu [Tecla]. Pois sua filha Falconilla havia morrido e disse a ela em sonho: ‘Mãe, você deve receber esta estrangeira Tecla em meu lugar, de modo que ela possa orar por mim e eu seja transferida para o lugar dos justos’”. - Atos de Paulo e Tecla, ano 160 d.C.
O fato de a Igreja não tratar tais registros como literatura inspirada não diminui sua importância como literatura piedosa, e a verdade é que os cristãos não somente liam os Atos de Paulo e Tecla, recomendando-o como um documento apócrifo com informações úteis para instrução [como fez Jerônimo], o que seria coisa impensável no caso de conter ali uma heresia declarada e condenada pela Igreja, como também viam com naturalidade a prática ali exposta. Isso se dava porque eles muito cedo a abraçaram, mesmo em seu culto público litúrgico, como fica exposto a partir da descrição de Tertuliano abaixo, que mostra que os sacerdotes ofereciam a Missa ou os chamados Mistérios em favor também dos falecidos da Igreja:
TERTULIANO DE CARTAGO
Oferecemos sacrifícios pelos mortos em seus aniversários de nascimento [a data da morte—nascimento para a vida eterna”. - De Corona 3:3, ano 211 d. C.

O exposto acima demonstra uma continuidade da prática litúrgica judaica apresentada no livro de 2 Macabeus no meio nascente da comunidade cristã primitiva, de modo que, assim como os israelitas ofereciam o sacrifício pelos mortos no Templo de Jerusalém, os cristãos também ofereciam a Eucaristia pelos mortos na comunhão do Corpo e do Sangue, mantendo a doutrina e entendendo-a como um aperfeiçoamento da obra do Messias Cristo na cruz, a qual redime tanto vivos quanto mortos. O Cristianismo criou um vínculo com a revelação e fez mais do que herdar antigas tradições rabínicas dos judeus do Segundo Templo, eles as ressignificaram e as ampliaram. O próprio Didaquê, uma antiga confissão de fé cristã do ano 80-90 d. C., dá testemunho dessa herança, ao apresentar a forma litúrgica sacrificial do culto primitivo, tendo como centro a Eucaristia.
CAPÍTULO XIV
Reúna-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer após ter confessado seus pecados, para que o Sacrifício seja puro.

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A Missa:
O Divino Sacrifício pelos Vivos e pelos Mortos
S. Agostinho também cita o livro de 2 Macabeus como embasamento para a prática, mesmo que, segundo ele, a autoridade da Igreja fosse suficiente para a adesão do ensino por parte de todos os cristãos. Ele confirma, assim, a noção de continuidade citada acima, o que demonstra a estima que os cristãos mantinham pelos macabeus. Estavam longe de considerá-los pagãos envolvidos em cultos demoníacos.
SANTO AGOSTINHO DE HIPONA
Peço-te, assim, atenção! Lemos, no livro dos Macabeus 2, que foi oferecido um sacrifício pelos mortos. Ainda que não encontremos em qualquer outra parte do Antigo Testamento uma outra referência a esse respeito, não podemos substimar a autoridade da Igreja universal, que manifesta esse costume, pois, nas preces que o sacerdote dirige ao Senhor Deus junto ao altar, existe espaço especialmente reservado para a encomendação dos falecidos.
O Cuidado Devido aos Mortos, ano 421

SANTO HIPÓLITO DE ROMA
S. Hipólito de Roma, entre 202-211, elogia os mártires macabeus como legítimos seguidores do Deus verdadeiro em seu comentário ao livro de Daniel:
20.1. Mas alguém dirá: “Você está produzindo sofismas.” 20.2. Seja educado, ó homem, sobre as coisas que aconteceram sob Antíoco Epifânio. 20.3. Enquanto os sete irmãos junto com sua mãe foram levados, eles foram golpeados com açoites e chicotes [...]e ele disse: “Por que você demora para perguntar e aprender? Pois estamos preparados para morrer em vez de transgredir nossas leis patriarcais”. 20.4. “Mas o rei, ficando agitado com isso, ordenou que panelas e caldeirões fossem aquecidos imediatamente, e que aquele que falou primeiro, tivesse sua língua arrancada e que fosse escalpelado, de modo a ficar mutilado. Enquanto o resto dos irmãos observavam [...]
21.3. pois é necessário que todo homem que aceita a Palavra, ouça o que o rei e mestre celestial prescreve: “Quem não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim”, e “auem não me segue, ... e renuncia a todos os seus bens não é capaz de ser meu discípulo.”
Comentário ao profeta Daniel, Livro II, 20.1-21.3, ano 202-211 d.C.
De fato, a base comum alegada pelos católicos para ensinar a doutrina do purgatório vem do Judaísmo, que interpretava, embasado no ensino da ressurreição, os textos do Antigo Testamento acerca de uma ascensão espiritual no tempo escatológico, em que a alma se liberta dos seus pecados para alcançar a vida com Deus, como que acenando a uma purificação após a morte. Ainda que tal povo tenha estado em contato tanto com os gregos quanto com os persas, que também apresentavam a doutrina em alguma de suas formas, para S. Agostinho e para os Pais da Igreja, no entanto, tal como a Ressurreição, o compartilhamento dessa ideia não é uma prova de corrupção, mas uma continuidade da revelação presente no Antigo Testamento. Como foi dito acima, para o Doutor da Graça, trata-se de um ensinamento bíblico que deve ser acolhido por todos os fiéis, ainda que não estivesse na Escritura [mas está]. O mesmo entendimento é encontrado em vários outros documentos patrísticos:
SÃO CIRILO DE JERUSALÉM
“Em seguida, mencionamos também aqueles que já adormeceram: primeiro os patriarcas, profetas, apóstolos e mártires, para que por meio de suas orações e súplicas, Deus receba a nossa petição; em seguida, mencionamos também os santos padres e bispos que adormeceram e, para simplificar, todos aqueles dentre nós que já dormiram, pois acreditamos que será de grande benefício para as almas daqueles por quem a petição é feita, enquanto este santo e solene sacrifício [a Missa] é apresentado”. - Cartas Catequéticas 23:5:9, ano 350 d.C.

A ideia é fortemente evidenciada pela ampla aceitação do costume desde muito cedo no Cristianismo, mas também pela ausência de grandes debates envolvendo a liturgia sacrificial em favor dos mortos. Isso não chegou a ser questionado, o que mostra o prestígio da prática. S. João Crisóstomo chega a declarar categoricamente o motivo disso, que é o fato de eles acreditarem que a devoção fora introduzida pelos próprios apóstolos na Igreja:
SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
Não foi em vão que os apóstolos decretaram que, nos maravilhosos mistérios, deveria ser feita lembrança daqueles que partiram. Eles sabiam que havia aqui muito proveito para eles, muitos benefícios. Quando todo o povo se levanta com as mãos erguidas, uma assembleia sacerdotal, e aquela impressionante Vítima sacrificial é apresentada [a Eucaristia], como não teríamos sucesso, no momento em que invocamos a Deus, em defesa deles? Mas isso é realizado por aqueles que partiram na fé, enquanto que até mesmo os catecúmenos não são considerados dignos desse consolo, mas são privados de todos os meios de assistência, com exceção de um único. E qual seria? É possível dar esmolas aos pobres em seu nome”.
Homilias sobre Filipenses 3:9–10, ano 402 d.C.

De fato, o purgatório, tal como conhecemos hoje, passou por um desenvolvimento doutrinário, em razão de aprofundamento teológico e filosófico posterior, mas, como bem disse S. John Henry Newman (2020, p.47), as suas ideias fundamentais já estavam contidas na Igreja cristã primitiva desde o seu nascimento, tanto na liturgia do culto público, com sacerdotes oferecendo a Missa pelos falecidos, quanto nas devoções e práticas particulares diárias dos devotos, e isso não pode ser negado sem que primeiro se negue as múltiplas evidências históricas a apontar para essa realidade.
NOTAS
Foi durante o feriado Hanukkah que Cristo respondeu aos fariseus: “Eu e o Pai somos um”, como uma profecia daquilo que havia sido dito com respeito à presença de Deus retornando ao seu povo. Diante disso, os fariseus pegaram em pedras para matá-lo [Jo 10, 22-30].
Por: Kertelen Ribeiro
Bíblia Ave Maria: https://www.bibliacatolica.com.br/.
BREMMER, Jan. N. The Rise and Fall of the Afterlife. Ed. Routledge; 1ª edição. 2003.
Catecismo da Igreja Católica https://www.vatican.va/content/vatican/pt.html.
EHRMAN, Bart D. Heaven and Hell: A History of the Afterlife. Ed. Simon & Schuster; 2020.
ELLEDGE, C. D. Resurrection of the Dead in Early Judaism 200 BCE–CE 200. Nova York: Oxford University Press, 2017.
JACKSON, A. V. Williams. “The Ancient Persian Doctrine of a Future Life.” The Biblical World, vol. 8, no. 2, 1896, pp. 149–63. JSTOR, http://www.jstor.org/stable/3140265 . Acesso 20 Jan. 2025.
LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório, Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
LEVENSON, Jon D. Resurrection and the Restoration of Israel. Yale University Press. 2008.
New advent: http://www.newadvent.org/fathers/1316.htm.
NEWMAN, John H. Ensaio sobre o Desenvolvimento da doutrina cristã. São Paulo: Cultor de Livros. 2020.
PLATÃO, A República. Ed. Edipro. 3ª edição. 2019.
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