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  • Enzeo Emmanuel

Princípios de Tipologia Bíblica



O artigo a seguir foi retirado e adaptado do livro "Entendendo a devoção à Virgem Maria", escrito por Enzeo Emmanuel. É possível adquiri-lo na íntegra aqui: https://enzeoemmanuel.hotmart.host/pagina-de-vendas-08677f6c-6c13-4c14-aa7f-6b65e3b96f3a.


Neste capítulo, nosso intuito é não somente apresentar diversas e importantes figuras, tipos ou símbolos e relações proféticas entre eles, mas também mostrar como fazem sentido dentro da ação providencial ordinária, na história, no transcurso que vai do relato da criação, em Gênesis, até a consumação dos séculos, no Apocalipse.


Os seres enquanto palavras divinas


São Bernardo de Claraval, um dos mais célebres Santos da Igreja e exímio teólogo, por quem tão bem honrada e defendida a Virgem Maria foi em seus escritos, adverte que, na anunciação da Redenção, após a jovem eleita humildemente perguntar como se daria, nela, o ser mãe do Emmanuel das profecias messiânicas se “não conhecia varão” — o que desde já indica claramente um prévio e acordado voto de virgindade com São José —, o anjo Gabriel, que lho anunciara, respondeu-lhe que o Espírito Santo viria sobre ela e a cobriria com sua sombra, pelo que se encarnaria o Verbo em seu ventre, e que Isabel, prima dela, em sua velhice concebera, quia non erit inpossibile apud Deum omne verbum (“porque nenhuma palavra é impossível a Deus”).


Essa foi a tradução adotada por São Jerônimo, em sua Vulgata, dos vocábulos gregos rhema ou rhma (na Septuaginta “ῥῆμα”), que significam “palavra” ou “verbo”, “dito”, mais no plano da oralidade que da escrita, mui semelhantes a logoi ou logos, que São João Apóstolo utiliza no início de seu Evangelho para designar o Filho de Deus.


Em seguida, quando Maria responde ao anjo, ela diz “Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Dixit autem Maria: Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum), “verbum” sendo aqui traduzido, como d’antes, de rhema (εἶπεν δὲ μαριάμ, ἰδοὺ ἡ δούλη κυρίου· γένοιτό μοι κατὰ τὸ ῥῆμά σου). Normalmente, em Português e em Francês encontramos que “nada” (rien) ou “coisa alguma” (quelque chose) é impossível a Deus, mas a Douay-Rheims Bible traduz ipsis litteris: Because no word shall be impossible with God.


Longe de ser ingenuidade de São Lucas Evangelista, versado na cultura helênica de então e, portanto, em Grego, colocar naquele importante relato um substantivo inadequado, ele acentua o modo como enxergavam, teologicamente, os judeus o relato da Criação.


De fato, a ação criadora do Senhor — o bará (א ָּר ָּב (exclusivo da divindade — não se dá sobre uma matéria preexistente, como na ideia grega de demiurgo, nem de maneira bruta ou grosseira, sujeitando-se à maleabilidade do que já existe, tampouco como emanação da própria essência divina, como funestamente defendem os panenteístas. O que Deus cria já existe nEle, desde toda a eternidade, como ideia (noção da qual é inseparável a de palavra ou conceito), e uma ideia só se exprime, só vai “para fora” quando é dita, falada, verbalizada. O falar humano está unido à emissão de sopro, de ar, que é essencialmente dinâmico e móbil, ao mesmo tempo em que imperceptível.


Ora, sucede que, enquanto nós falamos e não produzimos a ideia que está expressa nas nossas palavras, Deus, cujo ato criador é eminentemente espiritual e transcendente, dá o ser ao que existe com sua palavra, lançando-as qual sopro — que com Ele não se identifica — ao horizonte da existência, inscrevendo-as como realidades substanciais e verdadeiras, absolutamente dependentes dEle. Porque Deus diz, e o dito por Ele é então uma criatura, uma palavra de Deus que assumiu o ser.


Com isso, assemelha-se, enquanto provinda e dependente dEle, ao Verbo eterno do Pai, donde haver em todas as criaturas um vestígio da Santíssima Trindade. Aqui, apenas a analogia da palavra e ordem divinas, no instante da Criação, é meio conveniente de ensinar a todos o dogma de que tudo foi criado por Deus ex nihilo (de nada) e quanto essa criação revela a onipotência e transcendência divinas.


Pois bem, atento a isso, São Bernardo de Claraval explica, com os olhos na unidade e harmonia perfeitíssimas existentes entre a inteligência e vontade divinas, que apenas em Deus a ação é idêntica à palavra, e o conhecer, ao amar, no sentido de que tudo o que Deus conhece vem à existência quando Ele o quer e tudo o que Ele ama se torna amável por este mesmo divino amor e pelo prévio conhecimento que o fundamenta.


Santo Agostinho dizia, a esse respeito, que Deus não nos ama porque somos amáveis, senão que o somos porque Ele nos ama, e que, igualmente, Ele não nos conhece porque somos inteligíveis, senão que o somos porque Ele nos conhece. Estabelece-se dessa forma a absoluta supremacia reinante da onipotência divina no ser face à essencial impotência e dependência da criatura de Deus; donde, afirma o Santo de Claraval, só em Deus a palavra é essencialmente criadora e operante, idêntica à sua vontade, enquanto muito dizemos nós, os homens, em contrário às nossas intenções ou possibilidades operativas, dando, pois, em vacuidade nosso débil querer.


A origem providencial da presente concepção teológica pode ser situada nos hebraísmos presentes nas Escrituras, inclusive nos manuscritos primários em Grego (por razões óbvias). Entre os hebreus, o verbo é o núcleo semântico fundamental em torno do qual se dão as nuances e particularidades da língua deles, provindo-lhe inúmeros substantivos e mantendo estes consigo uma espécie de dependência e semelhança, pela dinamicidade que a natureza verbal lhes confere. O bará (criar) se dá pelo dabah (palavra) divino, e o que é criado pela palavra de Deus, mantendo com esta estrita dependência e subordinação causais, é visto como efeito da palavra criadora.


Indo um pouco além no aspecto providencial mencionado, temos que as particularidades encontradas são usuais na linguagem humana tanto mais esta seja menos abstrata, como sucede aos hebreus, povo semita. Certamente que os gregos e os romanos se distinguiram pelo rumo lógico e preciso que tomou parte do seu idioma — o que não cria sequer remotíssima dicotomia com a universalidade dos muitos símbolos e nuances das línguas antigas. Sendo a linguagem uma realidade orgânica e vital, é natural que as palavras participem tanto dessa vitalidade que assumem como uma subsistência ou ação própria, como sucede com o nome próprio entre os antigos, os encantamentos e pragas estritamente orais, e a “palavra a correr veloz” do salmista. Uma vez que o fenômeno linguístico se manifesta concreta e dinamicamente, ele dependerá da vivacidade com que se exprime determinado povo.


No que toca aos semitas, trata-se de gente mui dada a exuberância de movimentos, ênfases e expressões fortes, sendo muitas vezes difícil traduzir a língua vernácula o que consta em Hebreu ou Aramaico, por exemplo. Tanto uma como a outra língua é fortemente marcadas pela concretude, por um caráter descritivo objetivo-subjetivo, pouco abstrato, pouco conceitual[1].


Na história do povo hebreu, esses pormenores idiomáticos são tanto mais notáveis quanto os vemos refletos na concepção religiosa que se tinha da natureza. Esta estava mui longe de ser considerada primeira e fundamentalmente uma realidade de conjunto regida por leis fixas e rigorosamente imutáveis: antes era vista como instrumento providencial de Deus, quer de punição, quer de gratificação, e sempre dócil ao Criador, diferentemente do homem. Assim, quando Nosso Senhor acalma uma rija tempestade no mar da Galileia, não se trata apenas de um milagre visto estritamente da parte de quem o faz: os ventos e o mar obedecem a Cristo, dizem as Escrituras, que os silencia mandando-os calar, qual se tivessem personalidade.


Reflete-se aí a seguinte concepção teológica: a natureza obedece a Deus com a subordinada passividade de ter alterado o seu curso espontâneo, para servir aos desígnios divinos, e ao mesmo tempo o desequilíbrio que o homem produz com o pecado, na própria ordem natural, é uma tal violência e ofensa a essa mesma ordem que tanto os anjos como os entes inanimados se voltariam, digamos assim, a aniquilar a causa da desordem, se não o impedisse Deus.


Algo semelhante se presencia quando a estrutura do estômago é violentada com alimentos nocivos; dores e vômitos são como um ato inanimado de justiça naquele organismo. Por fim, retornando aos exemplos bíblicos, quando Abel é morto por Caim, diz-se que o sangue do irmão inocente “clama desde a terra por justiça”.


Consignemos que a natureza para os hebreus era forçosamente solidária com a sorte do homem, em ordem a Deus, além de haver grande consciência neles do primado e reinado que, por vocação, Adão estava chamado a exercer sobre a criação visível, tendo sido o homem “coroado de glória e esplendor” e tido o encargo de tudo dominar para tudo sacrificar, em obediência, ao Criador, cumprindo assim a perfeita ordem em que o situava a condição de filho adotivo de Deus, no Éden. Desse modo, se Adão era rei, Eva, sua esposa, era rainha da criação visível, e nisso entra a ordem hipostática, à qual todas as coisas do universo estão ordenadas.


Nota-se também, claramente, nas Sagradas Escrituras, a consciência que o povo eleito detinha da triste perda da harmonia primitiva entre o homem e a natureza por vários modos, desde que a habitação num jardim paradisíaco deu lugar à de uma terra repleta de espinhos, abrolhos e amarguras. Inunda o dilúvio este mundo, as secas e a fome e as pestes castigam as nações, e toda calamidade é vista como justa punição divina pelas iniquidades cometidas, e isso ainda entre os próprios pagãos, para os quais a hostilidade da natureza se podia vencer com total fidelidade à divindade correspondente ao fenômeno calamitoso e sacrifícios e imprecações públicas.


O Apóstolo diz que “a criação geme em dores de parto até a glorificação dos filhos de Deus”, na sua epístola aos fiéis de Roma. Porquanto o homem tornou-se, com o pecado e a desobediência, indigno de que lhe obedecesse a criação, por assim dizer, tendo-se em vista, pelo menos, a posse do dom da imortalidade e que a essencial bondade da ordem criada se manteria visível exteriormente, ausente o pecado. Um rei destronado e tornado cativo; um rei infiel e apóstata; um rei que se fez escravo de Satanás — a esse rei não se submeteria mais, de todo, a criação visível. Em síntese, quanto ao segundo ponto tratado: determinados fatos, coisas e mesmo a noção de história como palavras divinas ora de punição, ora de bênção, todas providencialmente dispostas à plenitude dos tempos, na qual a própria divindade eterna irrompe neste mundo e assume-lhe a miséria, e a natureza lhe obedece, permite-se transfigurar e dar-se de si um pouco daquele por quem tem o que é. Mas essa natureza vemo-la agora com sentido por demais abstrato talvez: o Verbo assumiu a natureza humana não de uma matéria qualquer, de uma parte indeterminada do mundo, e sim de Maria — ex Maria virgine —, donde lhe ser tão apropriado o título de “jardim de Deus” ou do universo imaculado de cujo barro Deus fez Adão.


Fatos linguísticos, providenciais; conceitos ou visões teológicas de origem assinalada, tudo acaba admiravelmente concorrendo a algo tão inesperado como esta antecipada tipologia, mas é inevitável, a esta altura de nossas considerações, passar abruptamente ao início do presente capítulo já numa perspectiva mais profunda: a da Palavra encarnada.


Permitir-nos-á o leitor trazer em nosso auxílio agora algumas notáveis palavras do Catecismo da Igreja Católica (1992) e da Epístola aos Hebreus:


No artigo 65 do Catecismo, encontramos que, reproduzindo o célebre início da referida epístola, “Muitas vezes e de muitos modos falou Deus outrora aos nossos pais, pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos pelo seu Filho” (Hb 1, 1-2), do que comenta São João da Cruz, citado imediatamente ao versículo no mesmo Catecismo:


“Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra — e não tem outra —, Deus disse-nos tudo, ao mesmo tempo e de uma só vez, nesta Palavra única, e já nada mais tem para dizer. [...] Porque o que antes disse, parcialmente, pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-lhe alguma visão ou revelação não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por não colocar os olhos totalmente em Cristo e buscar fora d'Ele outra realidade ou novidade.”.

Mais adiante, nos artigos 101 e 102, fica que


“Na sua bondade condescendente, para revelar-se aos homens, Deus fala-lhes em palavras humanas: ‘As palavras de Deus, com efeito, expressas por línguas humanas, tornaram-se semelhantes à linguagem humana, tal como outrora o Verbo do eterno Pai se assemelhou aos homens assumindo a carne da debilidade humana.’. Através de todas as palavras da Sagrada Escritura, Deus não diz mais que uma só Palavra, o seu Verbo único, em quem totalmente se diz.”.

Aqui contemplamos o imenso alcance do prólogo do Evangelho de São João, onde este apóstolo se refere a Cristo como o Verbo, o Logos, a Palavra eterna de Deus.


Pois bem: na plenitude dos tempos, a Palavra se faz carne ex Maria virgine e todas as Escrituras falam, de algum modo, desta palavra eterna, ainda que também humanamente, com símbolos, fatos. É como se ela se inscrevesse e escrevesse corporalmente, na realidade, num livro tirado de Maria, a qual lhe fosse dando as letras com sua atividade maternal — o que lembra as tábuas da Lei e o coração de carne de que falam os Profetas. (Desumo ser justíssimo que os protestantes, tão amantes da Bíblia, passem a venerar a Bíblia vivente que é Maria.)


O que outrora figurava Jesus Cristo, nosso amado Redentor, com palavras e fatos, na plenitude dos tempos, é unificado, atualizado e cumprido na Palavra encarnada de Deus. A Encarnação promove uma onda cósmica de significação que penetra todas as coisas e nelas revela seu real sentido existencial, porquanto toda a Criação se ordena ao Verbo feito carne.


Observe-se como tudo se lhe prostra: os homens, escravos ou autoridades; a natureza, as doenças, o Sol e a Lua; os anjos e demônios. Todas as realidades criadas mencionadas no relato da criação, em Gênesis 1, têm contato com Nosso Senhor, que contempla as estrelas quando de suas longas orações nos montes, à noite, e em Belém lhes estava oculto à vista, subordinandose-lhe porém uma; que observa a Lua em época de Páscoa, sobretudo quando de sua Paixão; que percorre Jerusalém montado em um jumentinho; que expulsa os demônios e é consolado pelos anjos; que percorre terra e mar; que fala dos lírios do campo, dos pássaros do céu e que multiplica pão e peixe. É fatal: ainda que germinalmente, tudo vai-se transfigurando em contato com Cristo; assumindo o Criador carne corruptível, diviniza-a.


Dentre outras coisas, se Cristo é o novo Adão é porque Ele o significa e ultrapassa perfeitissimamente, e se sua presença, se sua Encarnação transfiguram o mundo e expressamlhe a finalidade e o sentido em ordem a Deus; se, não obstante, há profecias a cumprir-se, uma unidade histórica a tornar-se clara — então, é preciso admitir que tanto mais alguém esteja unido à missão de Cristo, mais é transfigurado, mais se lhe assemelha, mais há de atualizar um querer divino elevado e especial em torno do mistério da Redenção. Ora, ninguém assume nesta obra um papel tão decisivo e fundamental quanto a Virgem Maria. A sua transfiguração, a sua santidade, a sua excelência não advêm apenas do momento em que o Verbo se lhe encarna no seio: a existência dela, indissoluvelmente unida à vocação de ser mãe de Deus, é que lhes dá ímpeto inelutável.


Nessa vocação, incluem-se também todos os títulos que justamente lhe são atribuídos, e devemos notar as principais realidades veterotestamentárias que são tipo ou figura de Maria para entendermos a grandeza da culminância da Palavra divina a habitar-lhe o ventre e irradiar-lhe no ser inteiro uma significação, uma luz, um poder sobrenatural inaudito.


Por Cristo ser o novo Adão e cumprir superiormente aquilo em que este fracassou — uma vez que a ordem hipostática, isto é, da Encarnação, é essencialmente unitiva e fundamento de toda mediação ou ação mediadora entre Deus e o homem, e essa ordem será infalível e divinamente impecável na Redenção —, deve haver uma nova Eva, também superior à antiga, que desfaça o nó primitivo que foi causa da desdita do gênero humano. Essa nova Eva, com efeito, na plenitude dos tempos é quem acolhe o Verbo por dupla conceição — primeiro em seu interior, sobrenaturalmente, misticamente, e depois em seu ventre, sendo-lhe princípio imediato da humanidade assumida e gerando-o verdadeiramente —, e essa perfeita união com Ele, essa relação maternal fá-la partícipe da ordem hipostática, do mistério da Encarnação, como nenhum outro ser humano ao longo de toda a história.


E como a ordem hipostática é superior à ordem sobrenatural da graça e o Pai cumprirá a obra iniciada, e sempre alcança os seus fins, o que está no âmbito da ordem hipostática não pode fracassar nem se frustrar pura e simplesmente; o pecado não a pode atingir, nem o demônio, usurpar a Cristo o que é dEle, os seus eleitos. Assim, é certíssimo que Maria, participando da mencionada ordem, ocupa um lugar fundamental e único na ação mediadora e salvífica, ainda que subordinadamente a Cristo e dependente dEle. Essa mediação busca salvar o homem, uni-lo novamente a Deus, e, portanto, detém índole contrária à antimediação satânica do Éden — do que, pelo paralelismo que há entre a Queda e a Redenção, pode inferir-se uma perfeição maior nesta última, razão por que Maria deve ser muito superior à Eva tanto mais quanto é unida a Deus por participar tão proximamente da Encarnação e ter sua existência subordinada à maternidade divina. Portanto, estando a ordem hipostática “subordinada” à salvação do gênero humano, aqueles que dela participam têm uma missão redentora única, mesmo que, repita-se, a de Maria se subordine à de Cristo, tal como Adão, cabeça da humanidade, tinha Eva subordinada a si.


Ademais, a obra da Redenção é ainda maior que a da Criação, e dando nova vida ao homem e libertando-o das trevas do pecado (do nada, do vazio), é justamente chamada nova criação, fazendo paralelo aos novos céus e nova terra, a Jerusalém celeste, o homem novo. Essa nova criação, efetivamente, inicia-se na Encarnação, motivada pelo amoroso anseio redentor do Criador, e por isso é no seio mesmo da ordem hipostática que transluz em gérmen o novo cosmo. Fazendo jus ao paralelismo tipológico bíblico, a nova criação deve ter um novo fiat criador; a Palavra divina, alfa e ômega — e quando Cristo assim se proclama dá a entender belissimamente que é o Verbo —, deve ressoar e iluminar o mundo. Já não se diz “faça-se a luz”, mas “encarne-se a Luz”, por parte do Pai, porque tudo foi criado nEla e por Ela. Não é uma criação ex nihilo absolutamente como a primeira; é uma renovação que vem daquele que faz novas todas as coisas porque é a própria Luz e Palavra do Pai, que junto a este tudo criou.


Mas há uma particularidade na renovação da criação, e é que ela se dá, como vimos na introdução desta obra, no ventre de uma mulher, o qual já simboliza a terra virginal e pura da qual foi Adão formado, tendo-se-lhe soprado nas narinas o sopro da vida (nefash), como o Espírito Santo fecunda o ventre de Maria. Não termina aqui, porém, o caráter superior da nova criação. Também há um fiat, como aquele que no Gênesis precede a criação da luz: é o fiat que precede a encarnação da Luz. Não é um fiat criador por virtude própria — o Verbo é incriado —, mas suas consequências relativas à nova criação o tornam como que criador, uma participação na criação nova que advém estritamente da suprema humildade e submissão e obediência de Maria à vontade do Pai eterno. Pode-se dizer que, como Ele quis compartilhar apenas com Maria o privilégio de chamar Filho ao Verbo, quis também que a geração temporal do Verbo em Maria se assemelhasse à criação temporal da luz no Gênesis, e por isso quem diz o fiat não é o Pai diretamente, e sim Maria. Recordará o leitor aqui do Veni Spiritus Creator: “Vinde, ó Espírito Criador, renovai as almas dos vossos; enchei de graças celestiais os corações que criastes.”; o Espírito o faz mesmo[2], mas já antes da Encarnação: o anjo Gabriel saúda Maria como cheia de graça, ou seja, aquela que a tem em plenitude, e diz Cristo de si na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim; ungiu-me para proclamar a boa-nova aos pobres”.


A Santíssima Trindade é que cria o universo, e na qualidade de filha diletíssima do Pai, mãe do Verbo e esposa do Espírito Santo, a Maria cabe exclusivamente o título de onipotência suplicante. De forma mais imediata, atribuímos à onipotência divina a criação de todas as coisas; porém, na Anunciação a Virgem nada suplica para si nem para ninguém: apenas se abandona à vontade de Deus e diz “Faça-se em mim segundo a tua palavra [a do anjo]”. Admirável mistério, como se vê.


Há que meditar mais na palavra do anjo: esta apenas anuncia a Encarnação, e não a produz; todo o poder incomensurável de um espírito celestial da altura de São Gabriel Arcanjo detém-se em anunciar uma missão a uma humilde e jovem virgem galileia vocacionada a conceber o Verbo subsistente do Pai. Essa virgem concebe a última palavra profética relativa à Encarnação; os Profetas anunciavam, publicamente, a salvação de Israel e vinda do Messias, e agora a última palavra deste anúncio redentor é dirigido em soledade a Maria e precede efetivamente, na plenitude dos tempos, o próprio Verbo divino, no qual o Pai diz tudo e além de quem nada mais há que dizer.


É neste ponto que se concatenam todos os parágrafos precedentes em direção à conclusão que daqui se segue.


De fato, como visto antes, a conceição materna é o instante em que uma nova alma é criada e a luz do ser incide-lhe. O ser é luz, e o nada, trevas — eis dois elementos essenciais do simbolismo natural. Na Encarnação, a humanidade assumida pela pessoa do Filho supõe que Ele criou uma alma para si, evidentemente, mas este que então é temporalmente gerado é o mesmo que eternamente é gerado pelo Pai; em consequência do que não se trata de uma nova pessoa, como sucede universalmente, mas da natureza humana assumida por uma pessoa divinamente subsistente, a do Verbo.


Assim, o que se passa no ventre de Maria é uma profusa irrupção da luz e da verdade, porque, falando com rigor, ela tem em si a própria Luz e Verdade subsistentes. Se a criação da luz é fundamental no início do antigo cosmo, quando em Belém nasce Jesus é correto dizer que Maria deu à luz a Luz. Ela deu a este mundo sombrio de luzes débeis e de trevas amargas a Luz eterna do Pai.


Estão justificados, pois, os títulos marianos de porta do céu, espelho que reflete o Verbo no mundo. O ventre puríssimo da Virgem Santíssima é já um céu para o Filho de Deus; quando ela lhe dá à luz, então é que, por assim dizer, Ele finalmente entra em contato com a miséria humana e “desce lá do alto”. Sai do novo Éden sem dEle ser expulso e ali permanece sobrenaturalmente, e os anjos protegem a virgindade intacta, inabalável e plena da Rainha dos céus como protegiam a entrada do paraíso terreno.


Deus sabe ser magnânimo e glorificar e proteger os seus humildes. Não deixaria de glorificar superabundantemente aquela que criou para ser sua mãe. Note-se bem isto: aquela (criatura) que Deus (onipotente) criou para (finalidade) ser sua mãe (relação). Se almejássemos criar para nós algo perfeitíssimo, a fim de cumprir sem nódoa a missão que lhe temos designada por nossa inteligência e vontade, não sempre nos veríamos em posse dos meios necessários a efetivar tal obra. Isso não sucede com Deus: criando Maria precisamente para ser-lhe mãe, pôde fazê-la como quis; portanto, da forma a mais adequada ao cumprimento da finalidade da existência dela.


Repita-se: Deus não nos ama porque somos amáveis, senão que somos amáveis porque Deus nos ama. É necessário insistir bastante nessa verdade em se tratando da santidade de Maria Santíssima, porquanto supõe afirmar, em boa Teologia, que, quanto mais Deus ama uma criatura, mais esta é amável e mais se estabelece entre ambos uma união próxima. A possibilidade de a criatura unir-se mais perfeitamente ao Criador depende da comunicação amorosa que tem com Ele, do quanto Ele se lhe comunica e se lhe dá, da participação em suas perfeições divinas, da sua maior ou menor semelhança com Ele. Portanto, as criaturas mais perfeitas têm maior capacidade de união com Deus, em razão de suas faculdades superiores: é evidentemente maior a união que há entre Deus e um arcanjo que a existente entre o mesmo Deus e uma pedra ou um animal. Esta não tem potência obediencial para conhecer nem para amar, mas para ser mais perfeitamente, na medida em que é dócil à ação providencial.


Logo, admita-se também que as criaturas mais elevadas são mais amadas por Deus que as inferiores, e por isso mesmo são mais elevadas. O Criador quis que fossem o que são e eficazmente as sustenta como tais na existência; o eterno Amor infundiu-lhes a bondade que têm.


No plano do devir, do aperfeiçoamento temporal dos seres in statu viae, Deus ama a criatura ao comunicar-se-lhe; portanto, há uma potência receptiva de bondade permanente em todo ser. Nisso entra a graça santificante, que torna efetivamente o homem justo, fazendo-o participar da natureza divina, como dirá o Apóstolo São Pedro, e ser verdadeiro filho adotivo de Deus. Ora, o pai ama, por natureza, o filho mais que os servos, propriedades, animais, quantias monetárias, etc.. Se a graça estabelece uma segunda natureza superior à humana, digo, uma participação na vida do próprio Deus — donde dirá Cristo “entra na alegria do teu senhor”, o que significa na vida do teu senhor —; se ela inscreve efetivamente no sujeito que a recebe uma qualidade habitual e sobrenatural, então se trata de uma comunicação superior de Deus a essa criatura precedida e causada por seu amor, porque a justificação vem, sim, da graça divina que o Espírito Santo, Amor subsistente do Pai e do Filho, infunde na alma humana. Donde ser o justo mais amado por Deus que aquele que está em pecado mortal, visto a graça santificante que o reveste fazer-lho atualmente filho e habitação.


Com os Santos Doutores, diremos, então, que o bem de um só na graça supera o de todo o universo natural junto, assim como um só homem vale mais que todos os pardais, as vegetações e as estrelas juntas, por ser-lhes ontologicamente superior.


Fiquemos com isto, pois: 1) se o que faz um ser amável é a sua bondade, quanto mais amável é tanto maior é essa mesma bondade; 2) se o amor de Deus é que torna o ser amável, é o amor de Deus que lhe infunde a bondade; 3) se Deus ama uma criatura comunicando-se a ela e unindo-a mais a si, a um maior grau de comunicação corresponderá um maior grau de amor; 4) ser filho adotivo de Deus estabelece uma comunicação da vida divina da Trindade à alma, e por isso o justo é mais amado por Deus, estando na ordem sobrenatural; 5) para além da ordem sobrenatural está a hipostática, onde Deus mais perfeita e plenamente se comunica à criatura, agora a nível não de essência (sustentando-a no ser) ou de natureza (fazendo-a participar de sua vida divina por adoção), mas de pessoa, porque o Verbo assume uma natureza humana e se lhe une hipostaticamente, perfeitissimamente, estabelecendo também uma relação verdadeira, a nível de pessoa, com Maria, por ser-lhe mãe; logo, ela é a criatura mais amada e mais amável, concomitantemente. Não há comunicação maior do que esta: Deus fez-se filho de uma mulher, e o Espírito Santo a tomou por esposa de um modo bastante distinto de como ocorre na alma dos demais justos.


É pela magnitude incomensurável e pelo caráter eminentemente espiritual da união existente, na maternidade divina de Maria, da mãe com o filho que vemos essa comunicação divina “subordinada”, primeiramente, a prévia e perfeita união da vontade de Maria com a de Deus, no seu fiat; ela primeiro concebe o Verbo espiritualmente para só então concebê-lo virginalmente em seu ventre. Em ambos os casos, essa inaudita união é patente, para acrescentar o que, diria o teólogo Suarez, entre todos os modos de excelência, o mais perfeito é aquele pelo qual a criatura se une mais perfeitamente a Deus. Não há maior união neste mundo, afora a intratrinitária e a hipostática primária (natureza humana e natureza divina e uma só pessoa), que a da Virgem Santíssima com Deus.


Do mistério da Encarnação


Certa vez, disse um autor que nesta vida só há duas coisas realmente importantes: o amor e a morte. Podemos fazer um paralelo entre as duas realidades, no âmbito natural, e a Revelação em sua essência (a Santíssima Trindade e a Encarnação do Verbo). Resumidamente, o primeiro mistério revela o infinito amplexo de amor que é a vida íntima de Deus, bondade imortal, eterna, como tanto convém ao Deus vivo das Escrituras. Por sua vez, o segundo revela-nos que o Amor — não almejamos ser precisos, hic et nunc, com relação às apropriações trinitárias — se faz carne, “assume a condição de um escravo”, dirá o Apóstolo, vive e dá a vida pela salvação da humanidade decaída, com morte horrenda, morte de cruz. Por amor, a Vida (Jo 15) se faz morte para que nosso coração seja vitalmente imortal.


Neste vale de lágrimas, nosso anelo de amor eterno, de subsistir e de que o outro (o amado) também permaneça, irreversivelmente, na existência, esse anelo encontra obstáculos aparentemente intransponíveis na vacuidade das forças humanas, na insuficiência corpórea, finitude e miséria do homem. Se somos essencialmente imortais quanto à alma, não sabemos, porém, se esta imortalidade se revestirá de vida plena e feliz ou de morte, como diria São Paulo, pois a subsistência amável requer-se paz;[3] e além disso, também o corpo anseia por estar unido à alma. Não fomos criados para estarmos eternamente separados de nossos corpos; a natureza humana exige esta completude, razão por que há de acrescentar-se que também o corpo deve ser revestido de imortalidade para plena felicidade nossa, no sentido de estarmos completos e fazer-se adequadamente a justiça.


Impiedosamente a morte impõe termo ao repouso temporal do amor naquele que ama em caráter de sua posse ou certeza de sua presença; sepulto, o amado, com seu corpo, escapa-se-nos e não lhe sabemos o fim para além do sombrio túmulo em que jaz. Não temos o repouso amoroso de tê-lo conosco e nós e, querendo-o infindo, buscamo-lo na oculta eternidade com nosso pobre amor, que se lhe dirige impávido, mas sem efeito, como quem se lança no escuro, pois sequer a memória do amado no-lo faz concretamente tangível.


Aqui, a incerteza, a insegurança metafísica mais atroz violenta o coração. Por isso que a morte assume uma oposição tão dramática ao amor humano nesta vida, naquilo que ele tem de mais elevado e puro, em razão da indissolubilidade amor-vida-eternidade. O corpo é “sede” da vida, digamo-lo assim, e o que à terra se torna mero cadáver é para nós ainda o amado que nos abandona e que, inconformados, também abandonamos, e no qual projetamos, se nos resta uma fagulha de esperança, revestimento de imortalidade, de vida infinda.


A Encarnação demarca o instante em que a morte, enquanto inimiga do homem, encontra oposição à sua altura: o Deus da vida assume a natureza humana, a carne débil e miserável que nos constitui e reveste de mortalidade, e a imortaliza, bem como dá ao amor do homem o poder de atualizar todas as suas potências anelativas e impetuosas, em concedendo-lhe entrada na inacessibilidade divina, na luz eterna, divinizando-o, sobrenaturalizando-o pela caridade, pela graça santificante. A glória vital de Deus fecunda esta vida quando o Filho de Deus a assume, vence a morte e liberta o amor, dá fundamento sólido à esperança, ilumina as almas, fortalece os tíbios e desolados.


Este mistério supremo anda inseparável com o da Santíssima Trindade, porquanto a Encarnação não se limita ao Verbo: junto a Si, Ele manifesta aos homens o Pai e derrama-lhes o Espírito Santo; o Pai é quem envia o Filho, e o Filho e o Pai enviam o Espírito Santo, e assim se dá a redenção do homem. Se levarmos em consideração a união perfeitíssima que há entre as três pessoas divinas — pela qual o Pai está todo no Filho, o Filho no Pai e no Espírito Santo, etc. — e a importância da revelação trinitária nas Sagradas Escrituras, temos a concentração desse mistério no instante em que o Verbo é concebido no ventre de Maria por virtude do Espírito Santo. Com efeito, segundo atesta o próprio Jesus Cristo, o Pai o enviou, e com isso, nas Escrituras, vemos a imagem inacessível do Pai no humilde e singelo recinto onde estava a Virgem Santíssima, para dar-se a geração temporal do Verbo. Está toda a Santíssima Trindade, portanto, em ação ad extra explícita[4], confluindo inefavelmente no seio de Maria. Essas coisas ocorrem em presença de um anjo, Gabriel; o consentimento perfeito da Virgem dá-lhe à maternidade o sinal mais inequívoco de sua santidade e união com Deus; não foi algo absolutamente passivo. Em poucos instantes, faz-se um silêncio divino e o Verbo habita o ventre de Maria, cumulando-a de luz e produzindo uma transformação ainda mais radical na pessoa de sua mãe, pela proximidade única então estabelecida entre a criatura e o próprio Amor; porquanto, claro está, tanto mais uma alma se aproxime da fonte do amor com boas disposições, mais participará do seu calor imarcescível. Se já era cheia de graça antes da conceição do Verbo, atinge então um grau incomensurável de santidade e participação na vida de Deus, pois o próprio Deus vive nela: estando aí o Verbo, estão também com Ele o Pai e o Espírito Santo, em sua vida íntima.


Assim, conforme falávamos do esvair-se vital e do amor, se por um homem veio a morte, também por um só vêm a salvação e a vida, dirá o Apóstolo São Paulo, fazendo paralelo ao que acrescentamos: se por uma mulher entrou o pecado no mundo, por uma entrou a salvação. Por Maria, como por um espelho límpido, tanto a luz do Verbo como o calor do Espírito Santo se difundem no mundo — felix caelesti porta —, como frutos temporais da vida trinitária comunicada à humanidade pecadora e merecida pelo Cristo de Deus na Cruz. Essa vida divina, esse redentor e esse amor estão no ventre de Maria como em nenhuma outra criatura, e ela lhes está unida em laços inquebráveis de fidelidade. Ela é o mais perfeito santuário totalmente criado da divindade; ela participou como ninguém na obra da Redenção, na missão divina de dar morte à morte e vida à vida, imortalizando o amor e sobrenaturalizando a vida.


Daqui podemos passar, sem titubear, a breve análise de tipos bíblicos de Nossa Senhora...


NOTAS


[1] “O que nós consideramos como personificação literária corresponde, entre os semitas, a uma percepção animada do mundo exterior, pois o espírito semita via o universo em seu movimento, era mais sensível ao dinamismo da vida do que à contemplação das ideias e das formas.” E. Beaucamp, Poésie et la nature dans la Bible.


[2]  Dentre as várias hipóteses existentes sobre qual seja o significado mais exato do nome Maria, estão alguns relacionados ao mar: “gota no oceano”, “estrela do mar”, “amargo mar”, etc.. Não obstante a variedade de significados, cada um deles traz em si algo convenientemente atinente à Virgem Santíssima (“mar amargo”, que parece o mais destoante da excelsa doçura e incomparável suavidade da Mãe de Deus, indica tanto a sua plenitude de graça como as suas sete dores). No início do Gênesis temos que “o Espírito de Deus pairava sobre as águas”. Ora, a água é símbolo universal de pureza e receptividade, passividade e certo mistério; o seu azul, em contraste ao do firmamento, exprime serenidade e castidade e virgindade, algo suave e acomodativo, qualidades mui próprias de Nossa Senhora, sobre a qual pairou o Espírito Santo e na qual culmina a presença de Deus na ordem das criaturas, antecedida profusamente na nuvem que acompanhava o povo hebreu no deserto, na que enchia o Templo de Salomão no dia de sua dedicação, etc. etc..


[3] Dizer que o homem quer viver, e viver para sempre, não equivale de todo a permanecer; a subsistência, a permanência está inclusa no verbo “viver”, mas este aqui supõe algo mais, e é fruir e repousar no amor, no amado, na plenitude. A simples permanência, tão semelhante ao vazio, torna-se fastidiosa e amarga quando se dá em ausência do amado; acaba tornando-se uma solidão absoluta e rigorosa, sufocante e desesperadora.


[4] Em considerando o conjunto das Escritura, diga-se.











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