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  • Anderson Hopkins

Papa Gregório Magno e os Ícones Sagrados: Uma resposta ao blog 'Flancos de Ferro'


Recentemente foi publicado um texto que analisa a posição de São Gregório Magno em relação às sagradas imagens. Após algumas reações de opositores, decidimos produzir uma parte dois respondendo um artigo publicado no blog “Flancos de Ferro”, de autoria do apologista protestante Pedro França Gaião e título “A Iconia de Gregório Magno (600 Dc) contra a iconodulia e a iconofilia”[1], onde Gaião analisa o conteúdo da segunda carta de Gregório a Sereno. Nesta resposta não abordaremos com profundidade todo o artigo de Gaião, mas apenas suas cinco conclusões e alguns breves comentários sobre outras questões abordadas no texto.


Gaião defende que Gregório é um iconista moderado e sua opinião se põe contra a quebra de imagens, mas também a iconodulia proclamada em Nicéia II, estas são suas cinco conclusões sobre a carta do papa [2]:


I) São de uso situacional;


II) Servem apenas para uso didático, nunca litúrgico, estético ou para qualquer outra finalidade;


III) Servem apenas para explicar aos analfabetos as histórias das Escrituras, mas apenas se eles quiserem que se façam ou as introduzam nas igrejas;


IV) O uso de imagens para culto ou adoração é firmemente condenado, sendo crido em consenso como gravemente errôneo, pela autoridade das Sagradas Escrituras;


V) As imagens representam meramente cenas escriturísticas, excluindo santos e anjos que não aparecem nelas.


Essas conclusões nos parecem equivocadas e com conclusões que não se depreende do conteúdo da carta em seu contexto. Como possuem sentidos semelhantes e de certa forma redundantes, analisaremos primeiro a segunda, a terceira e a quinta conclusão em conjunto:

II) Servem apenas para uso didático, nunca litúrgico, estético ou para qualquer outra finalidade


III) Servem apenas para explicar aos analfabetos as histórias das Escrituras, mas apenas se eles quiserem que se façam ou as introduzam nas igrejas;


V) As imagens representam meramente cenas escriturísticas, excluindo santos e anjos que não aparecem nelas.


Muito pode ser dito do uso didático que Gregório previu para as imagens [3], mas não encontramos nenhuma abordagem para outros usos, muito menos condenações. Gaião parece concluir do trecho “Portanto, você não deve ter quebrado o que foi colocado na igreja, não para ser adorado, mas apenas para instruir as mentes dos ignorantes” uma condenação a qualquer outra finalidade devido o uso da palavra “apenas”. Mas esta conclusão se desfaz com uma análise profunda da carta de Gregório, uma vez que a função didática enunciada por ele se desdobra em outras que são indicadas na carta, como fortalecer a conversão de pagãos e outras como causar compulsão dos fiéis para adorarem a Santíssima Trindade, abordada na parte um deste texto[4], segundo Chazelle:


"Ao declarar as imagens nas paredes da igreja comparáveis à escrita, Gregório sugeriu não apenas que eles colocassem os analfabetos em contato com algo de outra forma reservado aos alfabetizados. Como substitutos das palavras escritas, as obras de arte distanciaram seus espectadores da cultura dos ídolos pagãos e da idolatria e, ao fazê-lo, para aqueles que eram antigos pagãos, ajudaram a fortalecer sua conversão. A ênfase na capacidade do analfabeto de ler tais imagens, assistida ou não, ressaltou a capacidade das representações de divorciar-se dos telespectadores das tradições pagãs". (CHAZELLE, Celia. Pag 148).

Chazelle ainda aponta que, segundo as declarações de Gregório na sua Regra Pastoral, as imagens ganham a mesma função que as meditação nas sagradas escrituras, ainda que em nível inferior, que edificam os sacerdotes e os afastam do pecado, assim também as imagens dos santos dão exemplo de virtude e os incentivam na adoração a Deus[5]. Assim, em razão do fato que no contexto de Gregório as imagens estavam amplamente expostas na igreja, elas inevitavelmente faziam parte da adoração comum dos fiéis e devido a isso ganham também uma dimensão litúrgica, ainda que não explícita. Além disso, não há absolutamente nada na carta que indique uma condenação do uso estético, ao contrário, isto seria uma contradição flagrante do pensamento de Gregório, uma vez que ao dizer que estas imagens induzem a adoração de Deus, Gregório dá a elas uma dimensão estética, que é inerente a qualquer representação artística. É verdade, no entanto, que no pensamento de Gregório o uso meramente estético das imagens reduziria sua finalidade principal e primária, a educação e edificação dos iletrados e pagãos:


“De fato, o Magno [Gregório] demonstrou longamente que seu principal interesse era obter novas almas para apresentar ao Criador na hora do Juízo Final, relegando assim a um segundo lugar compreensível - e marginal - qualquer outra consideração estética; o pesquisador italiano inscreve este procedimento dentro de um cuidado pontifício pelo patrimônio artístico das igrejas sob a jurisdição de Roma, especialmente na Sicília.” (El ideario de lo sacro en Gregorio Magno (590-604). De los santos en la diplomacia pontificia, Unisersitat de Barcelona)

“Na opinião de Gregório, o analfabeto de Marselha era capaz não apenas de admirar a beleza das imagens nas paredes da igreja, mas de lê-las e, consequentemente, de captar pelo menos algo do que elas representavam.” (CHAZELLE, pag 147)

Nesta linha, não há nada que condicione o uso delas ao desejo dos iletrados, isto parece ser concluído por Gaião a partir desta declaração: ‘Se vocês desejam ter imagens na igreja a fim de obter delas a instrução, razão pela qual elas foram feitas anteriormente, eu permito que elas sejam feitas e colocadas lá'. Neste trecho, Gregório estava nitidamente sendo retórico e não enunciando uma condição para o uso das imagens:


“E você também deve dizer a eles: 'Se vocês desejam ter imagens na igreja a fim de obter delas a instrução, razão pela qual elas foram feitas anteriormente, eu permito que elas sejam feitas e colocadas lá'. E explique que não era a visão da história relatada em texto pintado que lhe enfureceu, mas o culto que foi prestado de forma ilícita.”

Aqui o papa oferece instruções a Sereno (bispo que quebrou as imagens), para reunir os fiéis que prestavam o culto ilícito às imagens e explicar a eles que elas podem ser usadas desde que não seja para adoração. Isto de nenhuma forma representa um mandato pontifício que condicione o uso delas ao desejo dos iletrados, de fato, a declaração de Gregório de que elas também servem aos pagãos e o uso de imagens aprovadas por Gregório em outros contextos derrubam esta ideia[6].


Outra conclusão que não se sustenta é a ideia de que Gregório limita as representações nas imagens a cenas das escrituras e aos santos que aparecem nelas. Ele não entra em detalhes sobre isso, fala de “pessoas santas” e “obras dos santos” e muito menos oferece alguma instrução sobre o que elas devem ou não devem representar. A análise histórica apenas pode especular sobre isso:


“Mas quem as imagens em questão evocam? Que tipo de imagens estão envolvidas? que tipo de imagens são elas? A resposta à primeira pergunta é muito ampla. O termo sancti inclui os "santos" propriamente ditos e os grandes nomes da história cristã, assim como os eclesiásticos - e até mesmo alguns leigos - que se destacam por sua virtude e fé: tanto o próprio Cristo como o mártir local mais desconhecido são susceptíveis de aparecer nas paredes de uma igreja cristã. Quanto à segunda questão, encontramos dois tipos de representação pictórica: por um lado, as imagens ou retratos individuais e, por outro, as chamadas histórias, ou seja, cenas - que podem ser únicas ou fazer parte de um ciclo - que foram o meio mais eficaz de instrução religiosa para um determinado setor da comunidade.


Nota de Rodapé deste mesmo trabalho: Em outro sentido, PIETRI, L., "Serenus de Marseille", p. 332, levanta a hipótese sobre a identidade dos personagens e aponta a muito provável presença do santo local Victor entre os representados, assim como outras importantes figuras testamentárias.” (El ideario de lo sacro en Gregorio Magno (590-604). De los santos en la diplomacia pontificia, Unisersitat de Barcelona)


Partiremos agora para a análise da quarta conclusão de Gaião:


IV) O uso de imagens para culto ou adoração é firmemente condenado, sendo crido em consenso como gravemente errôneo, pela autoridade das Sagradas Escrituras;


Como abordamos na parte 1 deste texto, é verdade que Gregório não concebia uma iconodúlia, mas também não é possível a partir de suas cartas dizer que ele condenou este culto. A análise crítica mais honesta e correta é entender que Gregório simplesmente não abordou este assunto e, a partir de suas outras obras e as bases lançadas por ele, analisar uma possível opinião gregoriana em torno do assunto.


A análise que Gaião faz no texto sobre o termo “adoratio” usado por Gregório é redundante e confusa, não só pela análise pouco sistemática, mas também pela desformatação do texto. Qualquer católico bem letrado no assunto e no desenvolvimento da teologia entende que o termo “adoração” era também usado para se referir ao culto prestado às imagens, aos santos, às relíquias etc, mas aqui entramos na distinção daquela adoração absoluta que é prestada somente a Deus. Resta saber o sentido em que Gregório usou o termo e isto se torna evidente no trecho em que Gregório atrela a sua condenação a adoração de imagens a condenação Bíblica, que certamente estava se referindo a aquele culto absoluta devido somente a Deus:


“Pois esses filhos dispersos da igreja devem ser chamados de volta, e aquelas passagens da Sagrada Escritura que proíbem a adoração do trabalho manual do homem devem ser mostradas a eles, pois está escrito: 'Adorarás o Senhor teu Deus, e somente a Ele servirás.”

Recordamos a análise de Chazelle sobre o assunto:


“Em segundo lugar, quando Gregório escreveu que as imagens não deveriam ser adoradas - uma palavra que para ele se referia especialmente à honra devida somente a Deus - ele quis dizer simplesmente que elas não deveriam receber a honra devida ao divino (embora presumivelmente outros tipos menores de culto eram aceitos), ou que qualquer culto dado a elas era necessariamente o equivalente à reverência devidamente concedida a Deus e, consequentemente, inaceitável? A única pequena pista que ele sustentava a primeira opinião é fornecida na carta de 600. A afirmação de que a representação de um evento sagrado deve fazer com que seu espectador sinta compunção e prostre-se em adoração à Trindade parece deixar aberta a possibilidade de que tal adoração possa ocorrer diante da obra de arte. Não há nada na afirmação de Gregório que negue isso diretamente, e de fato Gregório pode ter pensado que em igrejas com paredes cobertas de representações artísticas era difícil para os fiéis se prostrarem em adoração à Santíssima Trindade longe de uma imagem.” [7]

Gaião nos acusa de realizar “malabarismo retórico” ao realizar esta distinção de culto, nos resta saber como Gregório poderia venerar santos e relíquias sem que conhecesse uma outra forma de culto válido e que não representasse uma idolatria. Por fim, na conclusão de seu texto, após citar João Calvino, Gaião declara:


“Desta forma, legar às imagens o papel da instrução ou da geração de piedade não é nada mais que terceirizar para os elementos materiais a Palavra do próprio Deus. Sendo assim, o uso didático de imagens é no mínimo um cristianismo preguiçoso, feito por estultícios e maus ministros do Evangelho.”

Essa opinião na verdade demonstra ainda mais a fragilidade da análise de Gaião da carta gregoriana. Como analisa Kessler, Chazelle e outros [8], para Gregório o uso da imagem é uma etapa posterior à pregação do Evangelho e não substitui seu papel essencial na vida do Cristão. Por fim, entendemos que a análise realizada por nosso opositor é frágil e enviesada, sua tentativa de impugnar o papel das artes na edificação cristã demonstra também seu pouco entendimento delas, mas também sua vontade quase patológica de demonizar qualquer aspecto do Catolicismo. Não é surpresa que alguém, que já insinuou a existência de beleza em prostíbulos na tentativa de contrapor Dostoiévski, enxergue a visão de Gregório desta maneira. Assim, fechamos este texto com o então Cardeal Ratzinger abordando a ideia do filósofo russo:


“Aquele que é a própria Beleza deixou-se esbofetear, cuspir, coroar de espinhos; o Sudário de Turim pode nos ajudar a imaginar isso de forma realista. No entanto, em seu rosto tão desfigurado, aparece a beleza genuína e extrema: a beleza do amor que vai “ até o fim “.”; por isso se revela maior que a falsidade e a violência. Quem percebeu essa beleza sabe que a verdade, e não a falsidade, é a real aspiração do mundo. Não é o falso que é “verdadeiro”, mas sim, É, por assim dizer, um novo truque do falso apresentar-se como “verdade” e nos dizer: acima de mim não há basicamente nada, pare de buscar ou mesmo amar a verdade; ao fazê-lo você está no caminho errado. O ícone de Cristo crucificado nos liberta desse engano tão difundido hoje, mas impõe uma condição: que nos deixemos ferir por ele, e que acreditemos no Amor que pode arriscar deixando de lado sua beleza externa para proclamar, assim, a verdade do belo”[9]

NOTAS E REFERÊNCIAS



[2] A carta em inglês e junto ao texto original em latim pode ser encontrada na análise de Chazelle. Também pode ser encontrada parcialmente traduzida aqui: https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&id=Q-JlTUmbMgAC&dq=gregory+I+bishop+iconoclasm&q=Gregory+iconoclasm#v=snippet&q=Gregory%20iconoclasm&f=false


[3] Conferir “El ideario de lo sacro en Gregorio Magno (590-604). De los santos en la diplomacia pontificia, Unisersitat de Barcelona.”



[5] “And if anyone should desire to make images by no means forbid it, yet avoid completely adoring images. But let your fraternity carefully warn [them], so that from the sight of a past deed [depicted in a picture] they feel the burning of compunction and prostrate themselves humbly in adoration solely of the omnipotent, holy Trinity.” (Segunda carta de Gregório a Serenus, traduzido por Celia Chazelle).


[6] Veja “O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média”, SCHMITT, Jean-Claude e as missões gregorianas citadas na parte um.


[7] CHAZELLE, Celia. Pictures, books, and the illiterate: Pope Gregory letters to Serenus of Marseilles. Pág 143-144.


[8] Veja KESSLER, “Pictorial narrative and church mission in sixth-century gaul” e “Gregory the Great and Image Theory in Northern Europe during the Twelfth and Thirteenth Centuries”


[9] J. RATZINGER, Benedict XVI. “The Feeling of Things, the Contemplation of Beauty”. §19. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20020824_ratzinger-cl-rimini_en.html

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