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  • Lucas Sousa

Noções básicas de Definição, Função e Autoridade da Tradição nos Pais da Igreja.

"É pois, sumamente necessário, ante as múltiplas e arrevesadas tortuosidades do erro, que a interpretação dos Profetas e dos Apóstolos se faça seguindo a pauta do sentir Católico. Na Igreja Católica deve-se ter maior cuidado para manter aquilo em que se crê em todas as partes, sempre e por todos (teneamus quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est). Isto é o verdadeiro e propriamente Católico, segundo a ideia de universalidade que se encerra na mesma etimologia da palavra."
- São Vicente de Lerins, "Commonitorium Primum", II (PL 50,640).

A famosa máxima de São Vicente de Lérins caracterizou a atitude da Igreja Antiga em matéria de Fé. Este foi ao mesmo tempo o critério e a norma. A ênfase crucial estava aqui na permanência do Ensino Cristão.

Na verdade, São Vicente estava apelando para a dupla "ecumenidade" da Fé Cristã - no Espaço e no Tempo. De fato, foi a mesma grande visão que inspirou Santo Irineu em seu próprio tempo: a Igreja Una, expandida e espalhada em todo o mundo, mas falando a uma só voz, mantendo a mesma Fé em todos os lugares, como havia sido transmitida pelos benditos Apóstolos e preservados pela Sucessão de Presbíteros. Esses dois aspectos da Fé, ou melhor, as duas dimensões, nunca poderiam ser separados um do outro. Universitas e Antiquitas, assim como consensio, pertenciam um ao outro. Nenhum dos dois era um critério adequado por si só. A "antiguidade" como tal ainda não era uma garantia suficiente da verdade, a menos que um consenso abrangente dos "antigos" pudesse ser demonstrado satisfatoriamente. E o consensio como tal não era conclusivo, a menos que pudesse ser rastreado continuamente até as origens Apostólicas. Agora, sugeriu São Vicente, a verdadeira Fé poderia ser reconhecida por um duplo recurso - à Escritura e à Tradição:

"Todo Cristão que queira desmascarar as intrigas dos hereges que brotam ao nosso redor, evitar suas armadilhas e se manter íntegro e incólume numa Fé incontaminada, deve, com a ajuda de Deus, apetrechar sua Fé de duas maneiras (duplici modo): com a autoridade da Lei Divina ante tudo, e com a Tradição da Igreja Católica (primum scilicet Divinae Legis auctoritate, turn deinde Ecclesiae Catholicae Traditio)."
- Ibid. II (PL 50,639-640).

Isso não implica, no entanto, que haviam duas fontes de Doutrina Cristã. De fato, a regra, ou cânon, das Escrituras era "perfeita" e "autossuficiente" - ad omnia satis superque sufficiat ("Para todas as coisas completas e mais do que suficientes"). Por que, então, deveria ser complementado por qualquer outra "autoridade"? Por que era imperativo invocar também a autoridade do "entendimento eclesiástico" (Ecclesiasticae Intelligentiae auctoritas)? A razão era óbvia: as Escrituras eram diferentemente interpretadas pelos indivíduos:

"Sem embargo, alguém poderia objetar: Posto que o Cânon das Escrituras é em si mais que suficientemente perfeito para tudo, que necessidade há de se acrescentar a autoridade da interpretação da Igreja? Precisamente porque a Escritura, por causa de sua mesma sublimidade, não é entendida por todos de modo idêntico e universal. De fato, as mesmas palavras são interpretadas de maneira diferente por uns e por outros. Se pode dizer que tantas são as interpretações quantos são os homens (ut pene quot sunt, homines tot illinc sententiae erui posse vide antur)."
- Ibid. (PL 50,640).

A esta variedade de opiniões "privadas" São Vicente opõe a mente "comum" da Igreja, a Mente da Igreja Universal:

"Que a tendência da interpretação dos Profetas e dos escritos Apostólicos seja dirigida de acordo com a regra do significado Eclesiástico e Católico (Ut Propheticae et Apostolicae interpretis linea secundum Ecclesiastici et Catholici sensus normam dirigatur)".
- Ibid. (PL 50,640).

A Tradição não era, de acordo com São Vicente, uma instância independente, nem era uma fonte complementar de Fé. O "Entendimento Eclesiástico" não poderia acrescentar nada às Escrituras. Mas era o único meio de determinar e revelar o verdadeiro significado das Escrituras. A Tradição era, de fato, a interpretação autêntica das Escrituras. E, nesse sentido, era coextensivo com as Escrituras. A Tradição era, na verdade, "a Escritura corretamente compreendida". E a Escritura era para São Vicente o único, primário e último cânone da Verdade Cristã.


§. A Questão Hermenêutica na Igreja Antiga


"Mas lembre-se, no entanto, que não há nenhum dos hereges que agora não pregue de acordo com as Escrituras aquelas coisas que ele blasfema. Pois é por isso que Marcelo não conhece a Palavra de Deus quando a lê. Portanto, Fotino ignora o homem Jesus Cristo quando ele fala. Daí também Sabélio, enquanto ele não entender que 'Eu e o Pai somos Um' (Jo 10,50), ele está sem Deus Pai e sem Deus Filho. Portanto, também Montano defende outro Parácleto por meio de suas companheiras. Tanto Maniqueu quanto Marcião odeiam a Lei porque ela mata a letra (2Cor 3,6), e o príncipe deste mundo é o diabo. Todos falam as Escrituras sem o sentido das Escrituras e professam fé sem Fé. Pois a Escritura não está na leitura, mas no entendimento (Scripturæ enim non in legendo sunt, sed in intelligendo); elas não estão em transgressão, mas na caridade."
- Santo Hilário de Poitiers, "Ad Constantium Aug.", Lib. II, cap. 9 (PL 10,569-570).

"Devemos permanecer naquela Igreja que foi fundada pelos Apóstolos e continua até hoje. Se alguma vez você ouvir falar de alguém que é chamado de cristão, tomando seu nome não do Senhor Jesus Cristo, mas de algum outro, por exemplo, Marcionitas, Valentinianos, Homens da montanha ou da planície (Circumcelliones), você pode ter certeza de que não tem lá a Igreja de Cristo, mas a Sinagoga do Anticristo. Pois o fato de terem surgido após a fundação da Igreja é prova de que são aqueles cuja vinda o Apóstolo predisse. E que eles não se iludam se pensam que têm autoridade das Escrituras para suas afirmações, uma vez que o próprio diabo citou as Escrituras, e a essência das Escrituras não consiste na leitura, mas no entendimento (Scripturis non in legendo consistant, sed in intelligendo). Caso contrário, se seguirmos a letra, também podemos inventar um novo dogma e afirmar que pessoas que usam sapatos e têm duas túnicas não devem ser recebidas na Igreja."
- São Jerônimo, "Dialogus contra Luciferianos", 28 (PL 23,190-191).

"Ame muito o entendimento (Intellectum); porque até as próprias Sagradas Escrituras, que recomendam a Fé antes da compreensão das grandes coisas, não poderão lhe ser de nenhuma utilidade, a menos que as entenda corretamente. Pois todos os hereges que as recebem em sua autoridade parecem estar seguindo-as, quando, pelo contrário, estão seguindo seus próprios erros; e por isso, não porque as desprezam, mas porque não as compreendem, são hereges (acper hoc non quod eas contemnant, sed quod eas non intelligant, hæretici sunt)."
- Santo Agostinho, Epístola CXX, III, 13 (PL 33,459).

A essa altura, São Vicente estava de pleno acordo com a Tradição estabelecida. O problema da correta exegese ainda era uma questão candente no século IV, na disputa da Igreja com os arianos, não menos do que no século II, na luta contra os gnósticos, sabelianos e montanistas. Todas as partes na disputa costumavam apelar para as Escrituras. Hereges, mesmo gnósticos e maniqueístas, costumavam citar textos e passagens das Escrituras e invocar a autoridade da Sagrada Escritura. Além disso, a exegese era naquela época o principal e provavelmente o único método teológico, e a autoridade da Escritura era soberana e suprema. Foi levantada a questão hermenêutica crucial: qual era o princípio da interpretação? Agora, no segundo século, o termo "Escrituras" denotava principalmente o Antigo Testamento e, por outro lado, a autoridade dessas "Escrituras" foi duramente contestada e, na verdade, repudiada pelo ensino de Marcião. A Unidade da Bíblia tinha que ser provada e vindicada. Qual era a base e a garantia da compreensão Cristã e Cristológica da "Profecia", isto é, do Antigo Testamento? Foi nesta situação histórica que a autoridade da Tradição foi invocada pela primeira vez. A Escritura pertencia à Igreja, e era somente na Igreja, dentro da Comunidade de Fé correta, que a Escritura poderia ser adequadamente compreendida e corretamente interpretada. Hereges, isto é, aqueles fora da Igreja, não tinham a chave para a mente da Escritura. Não bastava apenas ler e citar as palavras das Escrituras - o verdadeiro significado, ou intenção, das Escrituras, tomadas como um todo integrado, precisava ser obtido. Era preciso compreender, por assim dizer - antecipadamente, o verdadeiro padrão da Revelação Bíblica, o grande desígnio da Providência redentora de Deus, e isso só poderia ser feito por uma percepção da Fé. Foi pela Fé que o Testemunho de Cristo pôde ser discernido no Antigo Testamento. Foi pela Fé que a unidade do Evangelho tetramorfo pôde ser devidamente verificada. Mas essa Fé não era uma visão arbitrária e subjetiva de indivíduos - era a Fé da Igreja, enraizada na Mensagem Apostólica, ou Kerygma, e autenticada por ela. Aqueles de fora da Igreja estavam perdendo precisamente esta mensagem básica e abrangente, o próprio Coração do Evangelho.

Para eles, a Escritura era apenas uma letra morta, ou um conjunto de passagens e histórias desconexas, que eles tentavam organizar ou reorganizar em seu próprio padrão, derivado de fontes estranhas. Eles tinham outra fé. Este foi o principal argumento de Tertuliano em seu apaixonado tratado De Præscriptionibus. Ele não discutia as Escrituras com hereges - eles não tinham o direito de usar as Escrituras, pois não lhes pertenciam. As escrituras eram propriedade da Igreja. Enfaticamente Tertuliano insistiu na prioridade da Regula Fidei ("Regra de Fé"). Era a única chave para o significado da Escritura. E essa "regra" era Apostólica, estava enraizada e derivada da pregação Apostólica. Сuthbert Turner descreveu corretamente o significado e a intenção deste apelo ou referência à "Regra de Fé" na Igreja Primitiva;

"Quando os Cristãos falavam da 'Regra de Fé' como 'Apostólica', eles não queriam dizer que os Apóstolos a haviam conhecido e formulado... O que eles queriam dizer era que a profissão de Fé que todo catecúmeno recitava antes de seu Batismo incorporava de forma resumida a Fé que os Apóstolos haviam ensinado e confiado a seus discípulos para ensinar depois deles."
- C. H. Turner, "Apostolic, Sucession", em "Essays on the Early History of the Church and the Ministry", H.B.Swete (Londres, 1918), páginas 101-102.

Essa Profissão era a mesma em todos os lugares, embora o fraseado pudesse variar de um lugar para outro. Sempre esteve intimamente relacionado com a fórmula Batismal. Fora desta "Regra", as Escrituras só poderiam ser mal interpretadas. Escritura e Tradição estavam indivisivelmente entrelaçadas para Tertuliano.

"Pois somente onde o verdadeiro ensinamento e a Fé Cristã são evidentes, as verdadeiras Escrituras, as verdadeiras interpretações e todas as verdadeiras tradições Cristãs serão encontrada (Ubi enim apparuerit esse veritatem disciplinae et fidei christianae, illic erit veritas scripturarum et expositionum et omnium traditionum christianarum)".
- "Liber de Præscriptionibus.", XIX (PL 2,36).

A Tradição Apostólica de Fé foi o guia indispensável na compreensão das Escrituras e a garantia final da interpretação correta. A Igreja não era uma autoridade externa, que deveria julgar as Escrituras, mas sim a guardiã e mantedora daquela verdade Divina que foi armazenada e depositada na Sagrada Escritura.


§. Santo Irineu e o "Cânon da Verdade".


Denunciando o mau uso gnóstico das Escrituras, Santo Irineu introduziu uma comparação pitoresca. Um artista habilidoso fez uma bela imagem de mosaico de um rei, composta de muitas joias preciosas. Agora, outro homem despedaça essa imagem em mosaico, rearranja as pedras em outro padrão para produzir a imagem de um cachorro ou de uma raposa. Então ele começa a afirmar que esta era a imagem original, do primeiro mestre, sob o pretexto de que as pedras (psífides [ψηφίδες]) eram autênticas. Na verdade, porém, o projeto original havia sido destruído (λύσας την ύποκείμενην του άνθρωπου Ιδέαν). Isso é precisamente o que os hereges fazem com a Escritura. Eles desrespeitam e interrompem "a ordem e a conexão" da Sagrada Escritura e "desmembram a verdade" (λύοντες τα μέλη της αληθείας).

Palavras, sentenças e parábolas —ῥήματα (rimata), λέξεις (lexeis), παραβολὰς (parabolas)— são genuínas, de fato, mas o design, a Hypóthesis (ύπόθεσις), é arbitrária e falsa.

"Esta é, portanto, a teoria deles, que nem os Profetas pregaram, nem o Senhor ensinou, nem os apóstolos transmitiram e pela qual se gloriam de ter conhecimentos melhores e mais abundantes do que os outros. Lêem coisas que não foram escritas e, como se costuma dizer, trançando cordas com areia, procuram acrescentar às suas palavras outras dignas de Fé, como as parábolas do Senhor ou os oráculos dos Profetas ou as palavras dos Apóstolos, para que as suas fantasias não se apresentem sem fundamento. Descuidam a ordem e o texto das Escrituras e enquanto lhes é possível dissolvem os membros da verdade. Transferem, transformam e fazendo de uma coisa outra seduzem a muitos com as palavras do Senhor atribuídas indevidamente a fantasias inventadas. É como se a um autêntico retrato do rei, realizado cuidadosamente em rico mosaico por hábil artista, alguém desmanchasse a figura de homem e fizesse com as pedras deslocadas e mal dispostas a figura de cão ou de raposa e depois dissesse e confirmasse que aquela era a autêntica imagem do rei feita pelo hábil artista. Mostrando aquelas mesmas pedras que, bem dispostas pelo primeiro artista, apresentavam a imagem do rei e, mal dispostas pelo segundo artista, transformavam-na em figura de cão, pelo brilho das pedras enganam os simples que não conhecem o aspecto do rei e os convencem que a ridícula imagem da raposa é o autêntico retrato do rei. Assim, costurando fábulas de velhinhas e tomando daqui e dali palavras, sentenças e parábolas (ἔπειτα ῥήματα καὶ λέξεις καὶ παραβολὰς), procuram adaptar as Palavras de Deus às suas fábulas."
- "Contra Hæreses Liber Primus.", VIII, l (PG 7,520-524).

Santo Irineu sugeriu também outra analogia. Naquela época, circulavam certos Homerocentones, compostos de versos genuínos de Homero, mas tomados ao acaso e fora de contexto, e rearranjados de maneira arbitrária. Todos os versos particulares eram verdadeiramente homéricos, mas a nova história, fabricada por meio de rearranjo, não era Homérica de forma alguma. No entanto, alguém poderia ser facilmente enganado pelo som familiar do idioma homérico.¹ Vale a pena notar que Tertuliano se refere a esses curiosos centones, feitos de versos homéricos ou virgilianos;

"Essas foram as artes engenhosas das maldades espirituais, com as quais nós também, meus irmãos, podemos esperar ter que lutar, conforme necessário para a Fé , para que os eleitos sejam manifestados (e) que os réprobos sejam descobertos. E, portanto, eles possuem influência e facilidade em pensar e fabricar erros, que não deve ser admirado como se fosse um processo difícil e inexplicável, visto que em escritos profanos também um exemplo vem à mão de uma facilidade semelhante. Você vê em nossos dias, composta de Virgílio, uma história de caráter totalmente diferente, o assunto sendo organizado de acordo com o verso e o verso de acordo com o assunto. Em suma, Hosidius Geta roubou completamente sua tragédia de Medeia de Virgílio. Um parente próximo meu, entre algumas produções de lazer de sua pena, compôs do mesmo poeta "A Mesa de Cebes". No mesmo princípio, esses poetastros são comumente chamados de Homerocentones, colecionadores de quinquilharias homéricas, que costuram em uma só peça, à moda dos retalhos, obras próprias das linhas de Homero, de muitos retalhos reunidos a partir desta passagem e daquela (em confusão diversa). Agora, inquestionavelmente, as Divinas Escrituras são mais frutíferas em recursos de todos os tipos para esse tipo de facilidade. Tampouco corro o risco de contradição ao dizer que as próprias Escrituras foram arranjadas pela vontade de Deus de maneira a fornecer materiais para hereges, visto que li que deve haver heresias (1Cor 11,19), as quais não podem existir sem as Escrituras."
- "Liber De Præscriptionibus.", Cap. XXXIX (PL 2,52-53).

Aparentemente, era um dispositivo comum na literatura polêmica da época. Agora, o ponto que Santo Irineu se esforçou para fazer é óbvio. A Escritura tinha seu próprio padrão ou projeto, sua estrutura interna e harmonia. Os hereges ignoram esse padrão, ou melhor, substituem-no pelo seu próprio. Em outras palavras, eles reorganizam a evidência bíblica em um padrão que é bastante estranho à própria Escritura. Agora, argumentou Santo Irineu, aqueles que mantiveram inflexível aquele "cânon de verdade" que receberam no Batismo, não terão dificuldade em restaurar cada expressão "no seu lugar (apropriado)" (τη ιδία τάξει ["ti idía táxei"]).

Então eles são capazes de contemplar a verdadeira imagem. O termo usado por Santo Irineu é peculiar: σωμάτιον τῆς ἀληθείας ("Somation tis Aletheias", que é traduzido na versão latina como "Corpusculum Veritatis"). Mas o seu significado é bastante claro. O Somátion (σωμάτιον ["Corpus"]) não é necessariamente um diminutivo. Simplesmente denota uma "corporação". Aqui ele denota o Corpus da verdade, o contexto correto, o desenho original, a "imagem verdadeira", a disposição original de pedras preciosas e versos. Assim, para Santo Irineu, a leitura da Escritura deve ser guiada pela "Regra" da Fé - à qual os crentes estão comprometidos (e na qual são iniciados) por sua profissão Batismal, e pela qual apenas a mensagem básica, ou "a verdade" da Escritura pode ser adequadamente avaliada e identificada. A frase favorita de Santo Irineu era "a Regra da Verdade", κανών της αληθείας ("Kanon tis Aletheías"), "Regula Veritatis". Ora, esta "Regra" nada mais era do que o testemunho e a Pregação dos Apóstolos, seu Kerygma (κήρυγμα) e sua Praedicatio (ou Praeconium), que foi "depositado" na Igreja e confiado a ela pelos Apóstolos, e depois foi fielmente mantido e transmitido, com total unanimidade em todos os lugares, pela Sucessão de Pastores credenciados:

"Eis por que se devem escutar os presbíteros que estão na igreja, que são os Sucessores dos Apóstolos, como o demonstramos, e que com a Sucessão no Episcopado receberam o carisma seguro da verdade segundo o beneplácito do Pai (Qui cum episcopatus sucessione charisma veritatis certum acceperunt)."
- "Contra Hæreses Lib. IV.", XXVI, 2 (PG 7,1053-1054).

Qualquer que seja a conotação direta e exata dessa frase fecunda,² não há dúvida de que, na mente de Santo Irineu, essa contínua preservação e transmissão da Fé depositada foi operada e guiada pela presença permanente do Espírito Santo na Igreja. E a "Tradição" era, em seu entendimento, um "Depositum Juvenescens" (uma Tradição Viva), confiada à Igreja como um novo Sopro de Vida, assim como o Sopro foi concedido ao primeiro homem.

"Apresentando todos os que introduzem doutrinas ímpias sobre Deus que nos criou e modelou, que criou este mundo, sobre o qual não existe outro Deus, e refutando, com seus próprios argumentos, os que ensinam o falso sobre a natureza de nosso Senhor e a economia que atuou em prol do homem, sua criatura, demonstramos, ao mesmo tempo, a constante identidade da pregação da Igreja, em todo o mundo, da doutrina à qual dão testemunho os Profetas, os Apóstolos e todos os Discípulos. Foi isso que mostramos, englobando o princípio, o meio e o fim, isto é, a totalidade da economia de Deus e da Sua ação infalivelmente ordenada à Salvação do homem e a estabelecer a nossa Fé. E nós guardamos fielmente, com cuidado, pela ação do Espírito de Deus, esta Fé que recebemos da Igreja, como depósito de grande valor em vaso precioso, que se renova e renova o próprio vaso que a contém.
Este Dom de Deus foi confiado à Igreja, como o sopro de vida inspirado na obra modelada, para que sejam vivificados todos os membros que o recebem (quemadmodum inspirationem plasmationi). É nela também que foi depositada a comunhão com o Cristo, isto é, o Espírito Santo, penhor de incorrupção, confirmação da nossa Fé e escada para subir a Deus. Com efeito, 'Deus estabeleceu Apóstolos, Profetas e Doutores na Igreja' (1Cor 11,28), e todas as outras obras do Espírito, das quais não participam todos os que não acorrem à Igreja, privando-se a si mesmos da vida, por causa de suas falsas doutrinas e péssima conduta. Onde está a Igreja, aí está o Espírito de Deus, e onde está o Espírito de Deus ali está a Igreja e toda a Graça. E o Espírito é Verdade. Por isso os que se afastam dele e não se alimentam para a vida aos seios da Mãe, não recebem nada da fonte puríssima que procede do corpo de Cristo, mas cavam para si buracos na terra como cisternas fendidas e bebem a água pútrida de lamaçal; fogem da Igreja por medo de serem desmascarados e rejeitam o Espírito para não serem instruídos."
- "Contra Hæreses Lib. III.", XXIV, 1 (PG 7, 966-967).

Os Bispos ou "Presbíteros" eram guardiões e ministros credenciados pela Igreja dessa verdade outrora depositada.

"São estes os Presbíteros que a Igreja sustenta, dos quais o Profeta diz: 'Constituirei teus príncipes na paz e teus Bispos na justiça'. E o Senhor dizia deles: 'Qual será o administrador fiel, bom e sábio que o Senhor estabelecerá à frente da sua família e lhes dê o alimento no tempo certo? Feliz daquele servo que o Senhor, na sua vinda, encontrar portando-se assim' (Is 60,17; Mt 24,45-46). Paulo ensina onde se podem encontrar esses servos: 'Deus constituiu na Igreja em primeiro lugar os Apóstolos, no segundo os Profetas, no terceiro os Doutores' (1Cor 12,28). Onde foram postos os carismas do Senhor (posita sunt), ali se deve aprender a verdade, junto dos que na Igreja possuem a Sucessão dos Apóstolos (apud quos est ea quae est ab apostolis ecclesiae successio), a integridade inatacável da conduta e a pureza incorruptível da palavra. Estes conservam em nós a Fé num único Deus que criou todas as coisas; fazem crescer em nós o amor ao Filho de Deus que dispôs para nós tão grandes economias; e, com toda segurança, expõem as Escrituras sem blasfemar a Deus, sem desonrar os Patriarcas e sem desprezar os Profetas."
- "Contra Hæreses Lib. IV.", XXVI, 5 (PG 7,1055-1056).

§. Regula Fidei.


A Tradição era na Igreja Primitiva, antes de tudo, um princípio e método hermenêutico. As Escrituras só poderiam ser correta e plenamente avaliadas e compreendidas à luz e no contexto da Tradição Apostólica viva, que era um fator integral da existência Cristã. Certamente, não porque a Tradição pudesse acrescentar algo ao que foi manifestado na Escritura, mas porque ela forneceu aquele contexto vivo, a perspectiva abrangente, na qual somente a verdadeira "intenção" e o "desígnio" total do As Sagradas Escrituras, da própria Revelação Divina, podiam ser detectadas e compreendidas.

A verdade era, de acordo com Santo Irineu, um "sistema bem fundamentado", um Veritate Corpus,³ uma "melodia harmoniosa". Mas era precisamente esta "harmonia" que só podia ser apreendida pela intuição da Fé. Com efeito, a Tradição não era apenas uma transmissão de doutrinas herdadas, de "forma judaica", mas sim a vida contínua na verdade. Não era um núcleo fixo ou complexo de proposições obrigatórias, mas uma visão do significado e do impacto dos eventos reveladores, da revelação do "Deus que age". E isso foi determinante no campo da exegese bíblica. George Prestige disse bem:

"A voz da Bíblia só poderia ser ouvida claramente se seu texto fosse interpretado ampla e racionalmente, de acordo com o Credo Apostólico e a evidência da prática histórica da cristandade. Foram os hereges que confiaram em textos isolados, e os Católicos que prestaram mais atenção aos princípios bíblicos."
- G.L. Prestige, "Fathers and Heretics", Londres, 1940, página 43

Resumindo sua análise cuidadosa do uso da Tradição na Igreja Primitiva, a Dra. Ellen Flesseman-van-Leer escreveu:

"Escritura sem interpretação não é Escritura de forma alguma; no momento em que é usada e se torna viva, é sempre Escritura interpretada. Agora, a Escritura deve ser interpretada 'de acordo com seu próprio significado básico', que é divulgado na Regula Fidei. Assim, esta Regula torna-se, por assim dizer, a instância controladora da exegese. 'A verdadeira interpretação das Escrituras é a pregação da Igreja, é a Tradição."
- Flesseman-van-Leer, "Tradition and Scripture in the Early Church" (Assen, 1945), páginas 92-96.

§. Santo Atanásio e o Escopo da Fé.


A situação não mudou no século IV. A disputa com os arianos centrou-se novamente no campo exegético, pelo menos em sua fase inicial. Os arianos e seus apoiadores produziram uma coleção impressionante de textos Bíblicos em defesa de sua posição doutrinária. Eles queriam restringir a discussão teológica apenas ao terreno Bíblico.

Suas reivindicações tinham que ser atendidas precisamente com base nisso, em primeiro lugar. E o método exegético deles, a maneira como eles lidavam com o texto, era muito parecido com o dos dissidentes anteriores. Eles estavam operando com textos-prova selecionados, sem muita preocupação com o contexto total da Revelação.

Era imperativo para os Ortodoxos apelar para a mente da Igreja, para aquela "Fé" que uma vez foi entregue e então mantida fielmente. Essa era a principal preocupação e o método usual de Santo Atanásio. Os arianos citaram várias passagens da Escritura para substanciar sua afirmação de que o Salvador era uma criatura. Em resposta, Santo Atanásio invocou a "Regra da Fé". Este era o seu argumento habitual.

Santo Atanásio sustentou que a interpretação "correta" de determinados textos só era possível na perspectiva total da Fé.

"O que eles agora alegam dos Evangelhos, eles explicam em um sentido doentio, como podemos ver facilmente se nos valermos do Escopo da Fé, de acordo com nós, Cristãos (τον σκοπὸν τῆς καθ' ημάς τους Χριστιανούς πίστεως [ton Skopón tís kath' imás tous Christianoús Písteos]), e usando este como Regra, aplicamo-nos, como diz o Apóstolo, à leitura da Escritura inspirada (ωσπερ κανόνι χρησάμενοι [osper kanóni chrisámenoi])."
- "Oratio III contra Arianos.", 28 (PG 26,384-385).

Por outro lado, atenção especial deve ser dada também ao contexto imediato e ao cenário de cada frase e expressão em particular, e a intenção exata do escritor deve ser cuidadosamente identificada. Escrevendo ao Bispo Serapião, sobre o Espírito Santo, Santo Atanásio afirma novamente que os arianos ignoraram ou perderam "o Escopo da Divina Escritura".

"Mas como eles defendem a passagem em Provérbios, 'O Senhor me criou (ἔκτισέ [éktisé]), como Primícia de suas obras' (Pr 8,22), acrescentando, 'Veja, 'Ele criou (ἔκτισε [ektise])', Ele é uma criatura!': devemos mostrar a partir desta passagem também o quanto eles erram, não tendo o Escopo da Divina Escritura (μὴ είδόντες τον σκοπόν της Θείας Γραφῆς ["mí eídóntes ton skopón tis Theías Grafís"]). Se é Filho, não se chame criatura; se uma criatura, que Ele não seja chamado Filho. Pois no que precede mostramos quão grande é a diferença entre uma criatura e um filho. E visto que a iniciação Batismal não se realiza validamente no Criador e na criatura, mas no Pai e no Filho, o Senhor não deve ser chamado de criatura, mas de Filho. 'Mas', diz o ariano, 'não está escrito?' Sim, está escrito. E é necessário que seja dito. Mas o que está bem escrito é mal compreendido pelos hereges. Se eles tivessem entendido e apreendido os termos em que o Cristianismo é expresso, eles não teriam chamado o Senhor da Glória de criatura, nem tropeçariam no que está bem escrito. Eles, portanto, 'não querem saber nem compreender'. Portanto, como está escrito: 'andam nas trevas.' (Sl 81,5). Mas, quanto a nós, devemos falar, para que também neste assunto eles possam ser mostrados como tolos, para que não deixemos de responder à sua impiedade e que talvez até se arrependam."
- "Epistola II ad Serapionem", 7 (PG 26,620).

O σκοπός (Skopos) foi, na linguagem de Santo Atanásio, um equivalente próximo do que Santo Irineu costumava denotar como Hypothesis (υποθεσις) - a "ideia" subjacente, o verdadeiro design, o significado pretendido. Skopos aqui é, conforme explica o Lexicon Athannasianum, "aquilo que se pretende ensinando, escrevendo e crendo". Por outro lado, a palavra Skopos era um termo habitual na linguagem exegética de certas escolas filosóficas, especialmente no neoplatonismo.

A exegese desempenhou um grande papel no esforço filosófico da época, e a questão do princípio hermenêutico teve que ser levantada. Jâmblico foi, por exemplo, bastante formal neste ponto. Era preciso descobrir o "ponto principal", ou o tema básico, de todo o tratado sob exame, e mantê-lo em mente o tempo todo. Santo Atanásio poderia muito bem estar familiarizado com o uso técnico do termo. Era enganoso, afirmou ele, citar textos e passagens isoladas, desconsiderando a intenção total da Sagrada Escritura. É obviamente impreciso interpretar o termo Skopos no idioma de Santo Atanásio como "a tendência geral" das Escrituras. O "âmbito" da Fé, ou da Escritura, é precisamente o seu núcleo credal, que se condensa na "Regra da Fé", tal como foi mantida na Igreja e "transmitida de pais a pais", enquanto os arianos não tinham "Padres" para suas opiniões. Como o Cardeal Newman observou, Santo Atanásio considerava a "Regra de Fé" como um "princípio de interpretação" último, opondo o "Sentido Eclesiástico" (εκκλησιαστικήν διάνοιαν ["Éklesiastikín Diánoian"]) às "opiniões privadas" dos hereges;

"O reconhecimento desta regra é a base do método de Santo Atanásio de argumentar contra o arianismo. Vid. art. 'Juízo Privado'. Não é seu objetivo ordinariamente provar a doutrina pela Escritura, nem ele apela para o julgamento particular do cristão individual a fim de determinar o que a Escritura significa; mas ele assume que existe uma Tradição, substantiva, independente e autoritária, de modo a fornecer para nós o verdadeiro sentido da Escritura em questões Doutrinárias, uma Tradição transmitida de geração em geração pela prática da catequese e pelas outras ministrações de Santa Igreja. Ele não se importa em afirmar que nenhum outro significado de certas passagens da Escritura além desse sentido Católico Tradicional é possível ou plausível, seja verdadeiro ou não, mas simplesmente que qualquer sentido inconsistente com o Católico é falso, falso porque o sentido tradicional é apostólico. e decisivo. O que ele aprendeu na escola e na igreja, a voz do Povo Cristão, a analogia da Fé, a φρόνημα (Frónima - Mente) Eclesiástica, os escritos dos Santos; estes são suficientes para ele. Ele não é de forma alguma um indagador, nem um mero disputante: ele recebe e transmite. Tal é sua posição, embora as expressões e frases que a indicam sejam tão delicadas e indiretas, e espalhadas por suas páginas, que é difícil coletá-las e analisar o que elas implicam. Talvez a prova mais óbvia de que o que afirmei é substancialmente verdadeiro é que, em qualquer outra suposição, ele parece argumentar ilogicamente. Assim, ele diz: 'Os arianos, olhando para o que há de humano no Salvador, julgaram-no uma criatura… Mas que aprendam, ainda que tardiamente, que o Verbo se fez Carne'; e então ele continua mostrando que não confia simplesmente na força inerente e inequívoca das palavras de São João, por mais satisfatórias que sejam, pois ele acrescenta: 'Vamos, como possuidores do τὸν σκόπον τῆς πίστεως (tón Skópon tís Písteos - o Escopo da Fé), reconhecer que este é o entendimento correto (ὀρθὴν - Orthin, Ortodoxo) do que eles entenderam erroneamente.' - Orat. III. 35 (PG 26,400).
Novamente: 'O que eles agora alegam dos Evangelhos, eles explicam em um sentido doentio, como podemos ver facilmente se nos valermos do τὸν σκόπον τῆς καθ᾽ ἡμᾶς … πίστεως (tón skópon tís kath᾽ imás … písteos - O Escopo da nossa Fé), e usando este ὥσπερ κανόνι (como regra ["ósper kanóni"]), aplicamo-nos, como diz o Apóstolo, à leitura da Escritura inspirada'. - Orat, III. 28 (PG 26,385).
E novamente: 'Uma vez que eles pervertem a Escritura Divina de acordo com sua opinião particular (ἴδιον ["ídion"]), devemos até agora (τοσοῦτον ["tosóuton"]) respondê-los como (ὅσον ["óson"]) para justificar sua palavra e mostrar que seu sentido é Ortodoxo (ὀρθὴν ["orthín"]).' - Orat, I. 37 (PG 26, 88).
Para outras instâncias, vid. art. ὀρθός (Orthós); e vid. supr. vol. I. pp. 36,237 nota.392, fin.409; e também Serap IV.15, Gent. 6,7, e 33.
Na Orat. II. 5, depois de mostrar que 'feito' é usado nas Escrituras para 'Gerado' em outras instâncias além de nosso Senhor, ele diz: 'A natureza e a verdade atraem o significado para si' do texto sagrado, isto é, enquanto o estilo das Escrituras nos justifica ao interpretar assim a palavra 'feito', a verdade Doutrinária nos obriga a fazê-lo. Ele considera a Regula Fidei o princípio da interpretação e, portanto, passa imediatamente a aplicá-lo.
É sua maneira de começar com alguma exposição geral da Doutrina Católica à qual o sentido ariano do texto em disputa se opõe e, assim, criar um praejudicium ou prova contra o último; vide Orat. I.10, 38, 40 init. 53, II.12 init, 32, 34, 35, 44 init, que se refere a toda a discussão, (18-43,) 73, 77, III.18 init. 36 inicial. 42, 51 inicial, etc. Por outro lado, ele faz do Sentido Eclesiástico a regra de interpretação, τούτῳ (τῷ σκοπῷ a deriva geral da Doutrina das Escrituras) ὥσπερ κανόνι χρησάμένοι, conforme citado logo acima. Isso ilustra o que ele quer dizer quando diz que certos textos têm um sentido 'Bom', 'Piedoso', 'Ortodoxo', isto é, podem ser interpretados (apesar, se assim for, das aparências) em harmonia com a Regula Fidei.
Se é com referência a este grande princípio que ele começa e termina sua série de passagens da Escritura, que o defende da má interpretação dos arianos. Quando ele começa, ele se refere à necessidade de interpretá-los de acordo com aquele sentido que não é resultado de julgamento privado, mas é Ortodoxo. 'Isto', diz ele, 'eu concebo ser o significado desta passagem, e esse é um significado especialmente eclesiástico'. - Orat. I. 44. E conclui com: 'Se eles tivessem se debruçado sobre esses pensamentos e reconhecido o escopo eclesiástico como uma âncora para a Fé, eles não teriam naufragado na Fé'. - Orat. III. 58.
Dificilmente é um paradoxo dizer que nas obras patrísticas de controvérsia a conclusão em certo sentido prova as premissas. Como então ele fala aqui do escopo eclesiástico 'como uma Âncora para a Fé'; então, quando a discussão dos textos começou - Orat. I.37 - ele o apresenta como já citado, dizendo: 'Uma vez que eles alegam os oráculos Divinos e os forçam a uma interpretação errônea de acordo com seu sentido particular, torna-se necessário conhecê-los para fazer justiça a essas passagens e mostram que eles carregam um sentido Ortodoxo, e que nossos oponentes estão errados.' Mais uma vez, em Orat. III.7, ele diz, 'Qual é a dificuldade, que alguém precisa ter tal visão de tais passagens?' Ele fala do σκόπον como um κανὼν (kanón) ou regra de interpretação, supr. III.28. vide também 29 inicial. 35 Serap. II.7. Por isso também ele fala do 'Sentido Eclesiástico', por exemplo; em Orat. I.44, Serap. IV.15, e do φρόνημα, Orat. II.31 inicial. Decr. 17 fin. Em II.32,3, ele faz com que a visão geral ou da Igreja sobre as Escrituras substitua a investigação sobre a força de ilustrações particulares."
- "Select Treatises of St. Athanasius in Controversy with the Aryans, freely translated by John Henry Cardinal Newman, Volume II", 1895, Sixth Edition, Longman, Green and Co., páginas 250-253.

Vez após vez, em seu escrutínio dos argumentos arianos, Santo Atanásio resumia os princípios básicos da Fé Cristã, antes de entrar no reexame real dos alegados textos-prova, a fim de restaurar os textos em sua perspectiva adequada. Hugh Turner descreveu esta maneira exegética de Santo Atanásio:

"Contra a técnica ariana favorita de pressionar o significado gramatical de um texto sem levar em consideração o contexto imediato ou o quadro de referência mais amplo no ensino da Bíblia como um todo, ele insiste na necessidade de levar em consideração a orientação geral da Fé da Igreja. como um cânon de interpretação. Os arianos são cegos para a ampla abrangência da teologia bíblica e, portanto, falham em levar em consideração o contexto em que seus textos-prova são colocados. O próprio sentido da Escritura deve ser tomado como Escritura. Isso foi considerado um abandono virtulento do apelo à Escritura e sua substituição por um argumento da Tradição. Certamente, em mãos menos cuidadosas, poderia levar à imposição de uma camisa de força sobre a Bíblia, como o dogmatismo dos arianos e gnósticos tentou fazer. Mas certamente não era essa a intenção do próprio Santo Atanásio. Para ele, representa um apelo da exegese bêbada à exegese sóbria, da insistência míope na letra gramatical ao significado da intenção (σκοπός [Skopos], χαρακτήρ [Charaktir]) da Bíblia."
- H. E. W. Turner, "The Pattern of Christian Truth", London, 1954, páginas 193-194

Parece, no entanto, que o professor Turner exagerou o perigo. O argumento ainda era estritamente bíblico e, em princípio, Santo Atanásio admitiu a suficiência da Escritura, Sagrada e Inspirada, para a defesa da verdade.¹⁰ Somente as Escrituras deveriam ser interpretadas no contexto da Tradição Viva do Credo, sob a orientação ou controle da "Regra de Fé". Essa "Regra", no entanto, não era de forma alguma uma autoridade "estranha" que pudesse ser "imposta" nas Escrituras Sagradas. Foi a mesma "pregação apostólica", que foi escrita nos livros do Novo Testamento, mas foi, por assim dizer, esta pregação em epítome. Santo Atanásio escreve ao Bispo Serapião:

"Olhemos para aquela mesma Tradição, ensinamento e Fé da Igreja Católica desde o início, que o Senhor deu (ἔδωκεν [edoken]), os Apóstolos pregaram (ἐχήρυξαν [ekiryxan]) e os Padres preservaram (ἐφύλαξαν [efylaxan]). Sobre isso a Igreja é fundada"
- "Epistola I Ad Serapionem", 28 (PG 26,593-596).

A passagem é característica de Santo Atanásio. Os três termos na frase realmente coincidem: παραδοσις (Paradosis [Tradição])—do próprio Cristo, a διδασκαλία (Didaskalía [Ensino]) —pelos Apóstolos, e a πίστις (Pístis [Fé]) —da Igreja Católica.

E este é o fundamento (θεμέλιον [Themélion]) da Igreja - "um único e singular fundamento." A própria Escritura parece ser subsumida e incluída nesta "Tradição", vindo, como é, do Senhor.

No capítulo final de sua primeira epístola a Serapião, Santo Atanásio retorna mais uma vez ao mesmo ponto;

"De acordo com a Fé Apostólica transmitida a nós por tradição dos Padres, eu entreguei a Tradição, sem inventar nada estranho a ela. O que aprendi, que eu escrevi (ἐνεχάραξα [énecháraxa]), em conformidade com as Sagradas Escrituras"
- Ibid. 33 (PG 26,605).

Em uma ocasião, Santo Atanásio denotou a própria Escritura como uma Paradosis Apostólica.¹¹ É característico que em toda a discussão com os arianos nenhuma única referência tenha sido feita a quaisquer "tradições" - no plural. O único termo de referência sempre foi a "Tradição" - de fato, a Tradição, a Tradição Apostólica, abrangendo o conteúdo total e integral da "pregação" apostólica e resumida na "Regra de Fé". A unidade e solidariedade desta Tradição foi o ponto principal e crucial em todo o argumento.


§. O Propósito da Exegese e a Lex Orandi.


O apelo à Tradição era, na verdade, um apelo à Mente da Igreja. Supunha-se que a Igreja tinha o conhecimento e a compreensão da verdade, da verdade e do "significado" da Revelação. Assim, a Igreja tinha a competência e a autoridade para proclamar o Evangelho e interpretá-lo. Isso não significava que a Igreja estava "acima" da Escritura. Ela defendeu a Escritura, mas, por outro lado, não estava vinculada à sua "letra". O propósito final da exegese e interpretação era extrair o significado e a intenção da Sagrada Escritura, ou melhor, o significado da Revelação, do Heilsgeschichte. A Igreja tinha que pregar a Cristo, e não apenas "a Escritura". O uso da Tradição na Igreja Antiga pode ser adequadamente compreendido apenas no contexto do uso real da Escritura. A Palavra foi mantida viva na Igreja.

Isso se refletiu em sua vida e estrutura. Fé e Vida estavam organicamente entrelaçadas. Convém recordar aqui a célebre passagem do Indiculus de Gratia Dei, erroneamente atribuída ao Papa Celestino e de fato composta por São Próspero da Aquitânia:

"Estes são os decretos invioláveis da Santa e Apostólica Sé, pelos quais nossos santos Padres mataram a inovação funesta... Consideremos as orações sagradas que, de acordo com a Tradição Apostólica, nossos Padres oferecem uniformemente em todas as Igrejas Católicas em todo o mundo. Deixe a lei da Oração estabelecer a lei da Fé."

É verdade, claro, que esta frase no seu contexto imediato não era a formulação de um princípio geral, e a sua intenção direta estava limitada a um ponto particular: o Batismo Infantil como um exemplo que aponta para a realidade de um pecado herdado ou original. Na verdade, não foi uma proclamação oficial de um Papa, mas uma opinião privada de um teólogo individual, expressa no contexto de uma controvérsia acalorada." No entanto, não foi apenas um acidente, e não um mal-entendido, que a frase tenha sido retirado do seu contexto imediato e ligeiramente modificado para expressar o princípio: ut legem credendi statuât lex orandi (Para que a lei da Oração estabeleça a lei da Fé).

O princípio é considerado muito importante na Teologia. O Catecismo no parágrafo 1124 constata que "A Fé da Igreja é anterior à fé do fiel, que é chamado a aderir a ela. Quando a Igreja celebra os sacramentos, confessa a fé recebida dos Apóstolos. Daí o adágio antigo: «Lex Orandi, Lex Credendi – A Lei da Oração é a Lei da Fé» (Ou: «Legem credendi lex statuat supplicandi – A lei da Fé é determinada pela lei da Oração», como diz Próspero de Aquitânia [século V]). A Lei da Oração é a Lei da Fé, a Igreja crê conforme reza. A liturgia é um elemento constitutivo da Tradição santa e viva."

No entanto, na encíclica Mediador Dei, o Papa Pio XII elucida, mas limita fortemente este princípio e aborda os erros que podem surgir de um mal-entendido sobre ele. Ele afirma:

46. ​​Sobre este assunto, julgamos ser Nosso dever retificar uma atitude com a qual vocês estão, sem dúvida, familiarizados, Veneráveis ​​Irmãos. Referimo-nos ao erro e ao raciocínio falacioso daqueles que alegaram que a Sagrada Liturgia é uma espécie de campo de provas para as verdades a serem mantidas pela fé, querendo dizer com isso que a Igreja é obrigada a declarar tal doutrina sólida quando se descobre que produziu frutos de Piedade e Santidade através dos Ritos Sagrados da Liturgia, e rejeitá-la de outra forma. Daí o epigrama, 'Lex Orandi, lex Credendi' - a lei para a Oração é a lei para a Fé.
47. Mas não é isso que a Igreja ensina e ordena. A Adoração que ela oferece a Deus, toda boa e grande, é uma profissão contínua de Fé Católica e um exercício contínuo de Esperança e Caridade, como Agostinho coloca sucintamente. "Deus deve ser adorado", ele diz, "pela Fé, Esperança e Caridade". Na Sagrada Liturgia, professamos a Fé Católica explicitamente e abertamente, não apenas pela Celebração dos Mistérios, e pela oferta do Santo Sacrifício e administração dos Sacramentos, mas também dizendo ou cantando o Credo ou Símbolo da Fé - é de fato o sinal e o distintivo, por assim dizer, do Cristão - junto com outros textos, e da mesma forma pela leitura da Sagrada Escritura, escrita sob a Inspiração do Espírito Santo. Toda a Liturgia, portanto, tem a Fé Católica como seu conteúdo, na medida em que dá testemunho público da Fé da Igreja.
48. Por esta razão, sempre que havia uma questão de definir uma verdade revelada por Deus, o Soberano Pontífice e os Concílios em seu recurso às "fontes teológicas", como são chamadas, não raramente extraíram muitos argumentos desta ciência sagrada da liturgia. Para um exemplo em questão, Nosso predecessor de memória imortal, Pio IX, assim argumentou quando proclamou a Imaculada Conceição da Virgem Maria. Da mesma forma, durante a discussão de uma verdade duvidosa ou controversa, a Igreja e os Santos Padres não deixaram de olhar para os ritos sagrados seculares e honrados pela idade para iluminação. Daí a máxima bem conhecida e venerável, 'Legem credendi lex statuat supplicandi' - deixe a regra para a oração determinar a regra da crença. A Sagrada liturgia, consequentemente, não decide ou determina independentemente e por si mesma o que é da Fé Católica. Mais propriamente, uma vez que a Liturgia é também uma profissão de Verdades Eternas, e sujeita, como tal, à suprema autoridade de ensino da Igreja, ela pode fornecer provas e testemunhos, muito claramente, de valor não pequeno, para a determinação de um ponto particular da Doutrina Cristã. Mas se alguém deseja diferenciar e descrever a relação entre fé e a sagrada liturgia em termos absolutos e gerais, é perfeitamente correto dizer, 'Lex credendi legem statuat supplicandi' - deixe a lei da crença determinar a lei da Oração. O mesmo vale para as outras virtudes teologais também, 'In ... fide, spe, caritate continuato desiderio semper oramus' - oramos sempre, com constante anseio em Fé, Esperança e Caridade."

A "Fé" encontrou a sua primeira expressão precisamente na Liturgia, - Sacramental, Ritos e Fórmulas - e os "Credos" surgiram pela primeira vez como parte integrante do Rito de iniciação.

"Resumos de Credos da Fé, interrogatórios ou declaratórios, eram um subproduto da liturgia e refletiam sua fixidez ou plasticidade. Em particular, todas as indicações apontam para o Ocidente como o berço das cerimônias de 'distribuição' (Traditio) e 'devolução' (Redditio) do Credo. Estas foram, como observamos antes, a pré-condição lógica da canonização dos credos declaratórios oficiais em cada localidade."
- J. N. D. Kelly, "Early Christian Creeds", Third Edition, 1972, New York, David MacKay Company Inc., páginas 166-167.

A “Liturgia”, no sentido amplo e abrangente da palavra, foi a primeira e inicial camada na Tradição da Igreja, e o argumento da Lex Orandi (Regra de Culto) foi persistentemente usado em discussão já no final do Segundo século. O Culto da Igreja foi uma proclamação solene de sua Fé. A Invocação Batismal do Nome foi provavelmente a primeira fórmula Trinitária, pois a Eucaristia foi a primeira testemunha do mistério da Redenção, em toda a sua plenitude. O próprio Novo Testamento passou a existir, como uma “Escritura”, na Igreja adoradora. E as Escrituras foram lidas primeiro no contexto de Adoração e Meditação.


§. São Basílio Magno e a "Tradição não Escrita"


Santo Irineu costumava se referir à “” como havia sido recebida no Batismo. Argumentos litúrgicos foram usados por Tertuliano e São Cipriano.¹² Santo Atanásio e os Capadócios usaram o mesmo argumento. O pleno desenvolvimento deste argumento da tradição litúrgica encontramos em São Basílio. Em sua disputa com os arianos posteriores, a respeito do Espírito Santo, São Basílio construiu seu principal argumento na análise das doxologias, como eram usadas nas Igrejas. O tratado de São Basílio, "De Spiritu Sancto", foi escrito no fogo e no calor de uma luta desesperada, e dirigido a uma situação histórica particular. Mas São Basílio estava preocupado aqui com os princípios e métodos de investigação teológica. Em seu tratado, São Basílio estava discutindo um ponto particular - de fato, o ponto crucial na Sã Doutrina Trinitária - a Omotimia (ομοτιμια) do Espírito Santo. A sua principal referência era um testemunho litúrgico: a doxologia de tipo definido («com o Espírito»), que, como pôde demonstrar, tem sido amplamente utilizada nas Igrejas. A frase, é claro, não estava nas Escrituras. Só foi atestado pela Tradição. Mas seus oponentes não admitiriam nenhuma autoridade senão a das Escrituras. É nesta situação que São Basílio se esforçou para provar a legitimidade de um apelo à Tradição.

Ele queria mostrar que a Omotimia do Espírito, isto é, sua Divindade, sempre foi crida na Igreja e fazia parte da profissão de Fé Batismal. De fato, como o Pe. Benoit Pruche observou, o Omótimos (ομότιμος) era para São Basílio um equivalente do Omousios (ομοούσιος).¹³ Havia pouca novidade nesse conceito de Tradição, exceto consistência e precisão. Seu fraseado, no entanto, era bastante peculiar.

"Entre as verdades conservadas e anunciadas (δογμάτων και κηρυγμάτων ["Dogmaton kai Kerygmaton"]) na Igreja, umas nós as recebemos por escrito (έκ της εγγράφου διδασκαλίας) e outras nos foram transmitidas nos Mistérios (έν μυστηρίω), pela Tradição Apostólica. Ambas as formas são igualmente válidas (την αυτήν Ισχύν) relativamente à piedade."
- São Basílio Magno, "Liber de Spiritu Sancto", Cap. XXVII, 66 (PG 32,188).

À primeira vista, pode-se ter a impressão de que São Basílio introduz aqui uma dupla autoridade e duplo padrão - Escritura e Tradição. Na verdade, ele estava muito longe de fazê-lo. Seu uso de termos é peculiar. Os Kerygmaton eram para ele o que no idioma posterior era geralmente denotado como "Dogmas" ou "Doutrinas" - um ensino formal e autoritário e uma regra em questões de Fé - o ensino aberto ou público. Por outro lado, os Dogmas eram para ele o complexo total de "hábitos não escritos" (τα άγραφα των εθνών), ou, de fato, toda a estrutura da vida Litúrgica e Sacramental. Deve-se ter em mente que o conceito e o próprio termo "Dogma" ainda não estavam fixados naquela época - ainda não era um termo com uma conotação estrita e exata.¹⁴ Em qualquer caso, não se deve ficar constrangido com a afirmação de São Basílio de que os Dogmas foram entregues ou transmitidos pelos Apóstolos, én Mystirío (έν μυστηρίω).

Seria uma tradução flagrantemente errada se a traduzíssemos como "em segredo". A única tradução precisa é: "pelo caminho dos Mistérios", isto é, sob a forma de ritos e usos (litúrgicos), ou "hábitos". Na verdade, é precisamente o que São Basílio diz a si mesmo: "A maioria dos mistérios são comunicados a nós por uma forma não escrita" (τα πλείστα των μυστικών άγράφως ήμιν έμπολιτεύεται).

O termo "ta Mystiká" (τα μυστικά) refere-se aqui, obviamente, aos ritos do Batismo e da Eucaristia, que são, para São Basílio, de origem "Apostólica". Ele cita neste ponto a própria referência de São Paulo às "tradições" que os fiéis receberam - εἴτε διὰ λόγου, εἴτε δι’ ἐπιστολῆς ("eite dia logou, eite de epistoles" ["seja por palavras, seja por carta nossa."]) - em 2Ts 2,15. A doxologia em questão é uma dessas "tradições".

"Entre as verdades conservadas e anunciadas na Igreja, umas nós as recebemos por escrito e outras nos foram transmitidas nos mistérios, pela Tradição Apostólica. Ambas as formas são igualmente válidas relativamente à piedade. Ninguém que tiver, por pouco que seja, experiência das Instituições Eclesiásticas, há de contradizer. De fato, se tentássemos rejeitar os costumes não escritos, como desprovidos de maior valor, prejudicaríamos imperceptivelmente o Evangelho, em questões essenciais. Antes, transformaríamos o anúncio em palavras ocas. Por exemplo (para relembrar o que vem primeiro e é o mais comum), quem ensinou por escrito a assinalar com o Sinal-da-Cruz aqueles que esperam em nosso Senhor Jesus Cristo? Que passagem da Escritura nos instruiu a nos voltarmos para o Oriente durante a oração? Qual dos santos nos deixou por escrito as palavras da 'Epiclese' no momento da consagração do pão na Eucaristia e do cálice da bênção? Não nos bastam as palavras referidas pelo Apóstolo e pelo Evangelho; antes e depois proferimos outras, recebidas do Magistério Oral, por terem grande importância para o Mistério. Benzemos também a água Batismal e o óleo do crisma e além disso o próprio batizado. Conformamo-nos a que escrito? Não é por causa da tradição secreta e Mística? E então? Qual a palavra escrita que prescreveu a própria unção com o crisma? Donde se origina a tríplice imersão? De que trecho da Escritura provêm as cerimônias complementares do batismo, como a renúncia a Satanás e a seus anjos? Não se originam desta instrução particular e secreta, que nossos Pais guardaram num silêncio tranquilo e isento de inutilidades, cônscios de que assim salvaguardavam o caráter sagrado dos mistérios? Com efeito, como seria razoável divulgar por escrito aquilo que de forma alguma é permitido aos não-iniciados contemplar? Qual o fim que tinha em mira o grande Moisés quando determinou que nem todas as partes do templo seriam acessíveis a todos? Estabeleceu que ficassem fora do recinto sagrado os profanos, permitindo apenas aos mais puros o acesso aos primeiros átrios, enquanto só os levitas foram considerados dignos do serviço Divino. Para os sacrifícios, porém, os holocaustos, e o restante desempenho do Culto foram designados os Sacerdotes. Não admitiu no Santuário senão um só, escolhido dentre eles; além disso, não em qualquer tempo, mas apenas num só dia do ano, em hora determinada por ele, a fim de contemplar o Santo dos Santos com assombro, por ser evento estranho e insólito. Em sua sabedoria, Moisés estava bem ciente de que facilmente se menospreza o que é habitual e de pronto acesso, enquanto uma raridade, conservada à parte, desperta como que naturalmente uma ardorosa procura. Foi igualmente desta forma que os Apóstolos e os Padres, que desde os primórdios dispuseram tudo o que se refere às Igrejas, sob silêncio e segredo conservaram também o caráter sagrado dos mistérios (οι τα περί τας Εκκλησίας εξαρχής δια-θεσμοθετήσαντες απόστολοι και πατέρες, έν τω κεκρυμμένω και άφθέγκτω τό σεμνον τοις μυστη-ρίοις έφύλασσον). Pois já não é mistério absolutamente o que chega aos ouvidos do vulgo. É o seguinte o motivo da tradição não escrita: impedir que, por descuido, o conhecimento da Doutrina seja menosprezado por muitos, devido à rotina. De fato, uma coisa é a doutrina, e outra o anúncio. Cala-se a primeira, enquanto o anúncio é proclamado. Constitui igualmente uma forma de silêncio a obscuridade empregada nas Escrituras, que torna mais difícil à mente apreender a Doutrina, para proveito dos leitores."
- Ibid. 66 (PG 32,189B-C).

De fato, todos os exemplos citados por São Basílio a esse respeito são de natureza ritual ou litúrgica: o uso do sinal da cruz no rito de admissão dos catecúmenos; voltar-se para o Oriente na Oração; o hábito de permanecer em pé no Culto aos domingos; a Epiclese no rito eucarístico; a bênção da água e do óleo, a renúncia a Satanás e sua pompa, a tripla imersão, no Rito do Batismo. Existem muitos outros "mistérios não escritos da Igreja", diz São Basílio (τα άγραφα της εκκλησίας μυστήρια [с. 66 e 67]). Eles não são mencionados nas Escrituras, mas são de grande autoridade e significado. Eles são indispensáveis para a preservação da Fé correta. Eles são meios eficazes de testemunho e comunicação. De acordo com São Basílio, elas vêm de uma Tradição "Particular" e "Secreta":

"Não se originam desta instrução particular e secreta (από της σιωπωμένης και μυστικής παραδόσεως' ["apó tis siopoménis kai mystikís paradóseos"]), que nossos Pais guardaram num silêncio tranquilo e isento de inutilidades, cônscios de que assim salvaguardavam o caráter sagrado dos mistérios?"
- Ibid. 66 (PG 32,188-189).

Esta Tradição "Silenciosa" e "Mística", "que não se tornou pública", não é uma doutrina esotérica, reservada a uma elite particular. A "elite" era a Igreja. De fato, a "Tradição" à qual São Basílio apela, é a prática litúrgica da Igreja. São Basílio está se referindo aqui ao que agora é denotado como Disciplina Arcani (a Disciplina do Mistério). No quarto século esta "disciplina" era amplamente utilizada, era formalmente imposta e defendida na Igreja. Relacionava-se com a instituição do Catecumenato e tinha principalmente uma finalidade educativa e didática. Por outro lado, como diz o próprio São Basílio, certas "tradições" deveriam ser mantidas "não escritas" para evitar a profanação nas mãos do infiel. Esta observação obviamente se refere a ritos e usos. Deve ser lembrado neste ponto que, na prática do século IV, o Credo (e também a Oração Dominical) fazia parte desta "disciplina de sigilo" e não podia ser divulgado aos não iniciados. O Credo era reservado aos candidatos ao Baptismo, na última fase da sua instrução, depois de terem sido solenemente inscritos e aprovados. O Credo foi comunicado, ou "tradicionado", a eles pelo bispo oralmente e eles tiveram que recitá-lo de memória diante dele: a cerimônia de Traditio e Redditio Symboli (Transmissão e Repetição pelos iniciados do Credo). Os catecúmenos foram fortemente instados a não divulgar o Credo a pessoas de fora e a não compensá-lo por escrito. Tinha que ser gravado em seus corações. Basta citar aí a Procatequese de São Cirilo de Jerusalém.¹⁵

No Ocidente, Rufino e Santo Agostinho achavam impróprio colocar o Credo no papel. Por isso Sozomeno em sua História não cita o texto do Credo Niceno, "que só os iniciados e os mistagogos têm o direito de recitar e ouvir".¹⁶ É neste contexto histórico que o argumento de São Basílio deve ser avaliado e interpretado. São Basílio enfatiza fortemente a importância da Profissão de Fé batismal, que incluía um compromisso formal com a crença na Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo.

"Como somos Cristãos? Pela Fé, será a resposta. De que maneira seremos salvos? Pela Regeneração, pela Graça do Batismo. Como poderia ser de outra forma? Cientes da Salvação operada pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo, abandonaríamos o modelo de Salvação que recebemos? Sem dúvida, seria motivo de profundos gemidos encontrarmo-nos agora mais longe da salvação do que quando acreditamos (Rm 13,11), se agora rejeitarmos o que então aceitamos. Igual prejuízo seria partir sem Batismo, ou receber um batismo falho em algo de tradicional. Relativamente à Profissão de Fé, entregue na primeira fase da entrada, quando, renunciando aos ídolos, aderimos ao Deus vivo, se alguém não a guarda sempre, e não a segura durante toda a vida, qual sólida salvaguarda faz-se estranho às promessas de Deus, opondo-se ao documento escrito de próprio punho, entregue por ocasião da Profissão de Fé. Efetivamente, se o Batismo é para mim o início da vida e o primeiro dos dias é o da Regeneração, consequentemente a palavra mais preciosa é a que foi proferida quando me foi conferida a graça da filiação adotiva. Poderia trair, seduzido por suas pretendidas razões, esta transmissão (παράδοσιν [Paradosis]) que me introduziu na Luz, concedeu-me a Graça do Conhecimento de Deus, pelo qual, de pecador inimigo fui transformado em filho de Deus? Bem ao contrário, suplico para mim o dom de partir com esta Profissão para junto do Senhor, e a eles, entretanto, exorto-os a conservar uma Fé íntegra até o dia de Cristo, a crer que o Espírito é inseparável do Pai e do Filho e a seguir exatamente o ensinamento do Batismo, na Confissão da Fé e na recitação das doxologias."
- Ibid. Cap. X, 26 (PG 32,113).

"Um dia inteiro não nos bastaria se quiséssemos expor os Mistérios da Igreja que não constam das Escrituras. Deixando de lado tudo mais, pergunto de quais passagens retiramos a Profissão de Fé no Pai e no Filho e no Espírito Santo. Se a extraímos da Tradição Batismal, de acordo com a piedade (pois devemos crer segundo a maneira como fomos batizados), para entregarmos uma profissão Batismal, essencial ao Batismo, consequentemente nos seja permitido também glorificar conforme nossa Fé. Mas, se esta forma de dar Glória nos é recusada, por não constar das Escrituras, sejam-nos mostradas provas escritas da Profissão de Fé e de todo o restante, que enumeramos. Desde que há tantas coisas que não foram escritas, e coisas tão importantes para o mistério da piedade, ser-nos-á recusada uma só palavra, proveniente dos Pais, que nós vemos persistir por um uso espontâneo nas Igrejas isentas de desvios, uma palavra muito razoável, e que muito contribui para a força do Mistério?"
- Ibid. Cap. XXVII, 67 (PG 32,192-193).

Era uma "Tradição" transmitida aos neófitos "em mistério" e que devia ser mantida "em silêncio". Alguém estaria em grande perigo de abalar "o Fundamento da Fé em Cristo" (τό στερέωμα της εις Χριστόν πίστεως [Cl 2,5]) se esta "Tradição não escrita" fosse posta de lado, ignorada ou negligenciada.

"Mas, estão prontos os preparativos da guerra contra nós. Os espíritos estão aguçados contra nós, e as línguas caluniadoras lançam suas flechas com maior intensidade do que a empregada ao apedrejar Estêvão aqueles que odiavam os Cristãos. Mas, não se escondam! Efetivamente, pretexto para a guerra somos nós, mas na verdade o alvo em mira está mais alto. Contra nós, de fato, se preparam os mecanismos de guerra e as ciladas, e estimulam-se mutuamente ao esforço de dar cada qual o que possui em experiência e coragem. Mas, é a Fé que é combatida. Meta comum de todos os adversários, inimigos da Sã Doutrina, é abalar o fundamento da Fé em Cristo, arrasando, fazendo desaparecer a Tradição Apostólica. Por isso, eles, aparentando ser detentores de bons sentimentos, recorrem a provas extraídas das Escrituras, e lançam para bem longe, como se fossem objetos vis, os testemunhos orais dos Padres. Mas não atenuaremos a verdade, nem por temor trairemos nossa Aliança. Ora, se o Senhor nos transmitiu como Doutrina Obrigatória e Salvífica que o Espírito Santo está na mesma ordem que o Pai, e eles opinam que assim não é e que importa separá-los, romper esta coordenação, e trasladar o Espírito ao nível de uma natureza servil, não é verdade que eles dão maior importância a sua blasfêmia do que às normas de seu Senhor? Em consequência, rejeitemos qualquer gosto de polêmica, e examinemos juntos o que temos em mãos."
- Ibid. Cap. X, 25 (PG 32,112-1113).

A única diferença entre δόγμα (Dogma) e κήρυγμα (Kerygma - pregação) estava na maneira de sua transmissão: o Dogma é mantido "em silêncio" e a kerygmata é "proclamada" (τό μεν γαρ σιωτκχται, τα δε κηρύγματα δημοσιεύονται). Mas sua intenção é idêntica: eles transmitem a mesma Fé, embora de maneiras diferentes. Além disso, esse hábito particular não era apenas uma tradição dos Padres - tal tradição não teria bastado: ouk exarkei (ούκ έξαρκεΐ). De fato, "os Padres" derivaram seus "princípios" da "intenção da Escritura"; "Seguindo a intenção da Escritura, derivando seus princípios das testemunhas das Escrituras".¹⁷ Assim, a "tradição não escrita", em ritos e símbolos, na verdade não acrescenta nada ao conteúdo da Fé: apenas coloca ela em foco.

O apelo de São Basílio à "Tradição não escrita" era na verdade um apelo à Fé da Igreja, ao seu Sensus Catholicus, o "Frónima Ékklesiastikón" (φρόνημα έκκλησιαστικόν [Mente Eclesiástica]). Ele teve que romper o impasse criado pelo pseudo-biblicismo obstinado e tacanho de seus oponentes arianos. E ele argumentou que, além dessa Regra de Fé "não escrita", era impossível compreender a verdadeira intenção e ensino da própria Escritura. São Basílio era estritamente bíblico em sua Teologia: a Escritura era para ele o critério supremo de Doutrina.

"Eles estão me acusando de inovação, e baseiam sua acusação em minha confissão de três hipóstases, e me culpam por afirmar uma Bondade, um Poder, uma Divindade. Nisso eles não estão longe da verdade, pois eu afirmo isso. A reclamação deles é que seu costume não aceita isso e que a Escritura não concorda. Qual é a minha resposta? Não considero justo que o costume que prevalece entre eles seja considerado uma lei e regra da Ortodoxia. Se o costume deve ser tomado como prova do que é certo, então certamente é competente para mim apresentar do meu lado o costume que prevalece aqui. Se eles rejeitarem isso, claramente não somos obrigados a segui-los. Portanto, que a Escritura inspirada por Deus decida entre nós; e de qualquer lado que se encontrem doutrinas em harmonia com a palavra de Deus, a favor desse lado será lançado o voto da verdade. Qual é então a cobrança? Dois pontos são apresentados ao mesmo tempo nas acusações levantadas contra mim. Sou acusado, por um lado, de separar as hipóstases; por outro, de nunca usar no plural nenhum dos substantivos relativos à Divindade, mas de falar sempre no singular de uma Bondade, como já disse; de um Poder; uma Divindade; e assim por diante. Quanto à separação das hipóstases, não deve haver objeção nem oposição por parte daqueles que afirmam no caso da natureza divina uma distinção de essências. Pois não é razoável manter três essências e se opor a três hipóstases. Nada, então, resta a não ser o encargo de usar palavras da natureza Divina no singular”.
- Epistola CLXXXIX, 3 (PG 32,685-688).

Sua exegese era sóbria e reservada. No entanto, a própria Escritura era um mistério, um mistério da "Economia" Divina e da Salvação Humana. Havia uma profundidade inescrutável na Escritura, pois era um livro "Inspirado", um livro do Espírito. Por isso a verdadeira exegese deve ser também espiritual e profética. Um dom de discernimento espiritual era necessário para o entendimento correto da Santa Palavra.

"E eu vejo que nos pronunciamentos do Espírito Santo é também impossível para qualquer um ter o escrutínio de Suas palavras, mas só para aqueles a quem o Espírito concede o discernimento, como nos ensinou o Apóstolo, no diferenças de dons; - 'A um é dada pelo Espírito uma palavra de Sabedoria; a outro, uma palavra de Ciência, por esse mesmo Espírito; a outro, a Fé, pelo mesmo Espírito; a outro, a Graça de curar as doenças, no mesmo Espírito; a outro, o dom de Milagres; a outro, a Profecia; a outro, o discernimento dos espíritos' (1Cor 12,8-10)."
- Epistola CCIV, 5 (PG 32,752).

O Espírito é concedido nos sacramentos da Igreja. A Escritura deve ser lida à luz da Fé e também na comunidade dos fiéis. Por esta razão, a Tradição da Fé transmitida através das gerações, foi para São Basílio um guia e companheiro indispensável no estudo e interpretação da Sagrada Escritura. Nesse ponto, ele estava seguindo os passos de Santo Irineu e Santo Atanásio. Da mesma forma, a Tradição, e especialmente o testemunho litúrgico da Igreja, foi usada no Ocidente por Santo Agostinho.¹⁸


§. A Igreja como Intérprete da Escritura.


A Igreja tinha autoridade para interpretar as Escrituras, pois era a única depositária autêntica do Kerygma Apostólico. Este Kerygma foi infalivelmente mantido vivo na Igreja, dotada do Espírito. A Igreja ainda ensinava oralmente, elogiando e promovendo a Palavra de Deus. E Viva Vox Evangelii (a voz viva do Evangelho) não era de fato apenas uma recitação das palavras da Escritura. Foi uma proclamação da Palavra de Deus, tal como foi ouvida e preservada na Igreja, pelo poder sempre permanente do Espírito vivificador. Fora da Igreja e do seu Ministério regular, "em Sucessão" aos Apóstolos, não houve verdadeira proclamação do Evangelho, nem Pregação Sã, nem compreensão real da Palavra de Deus. E, portanto, seria em vão procurar a verdade noutro lugar, fora da Igreja, Católica e Apostólica. Esta era a suposição comum da Igreja Antiga, desde Santo Irineu até Calcedônia e além.

Santo Irineu foi bastante formal neste momento. Na Igreja a plenitude da verdade foi recolhida pelos Apóstolos:

"Sendo as nossas provas tão fortes, não é necessário procurar noutras pessoas aquela verdade que facilmente podemos encontrar na Igreja, porque os Apóstolos trouxeram, como num rico celeiro, tudo o que pertence à verdade (plenissime in eam contulerint omnia quæ sint veritatis), a fim de que cada um que o deseje, encontre aí a bebida da vida. É ela definitivamente o caminho de acesso à vida e todos os outros são assaltantes e ladrões que é mister evitar. Por outro lado, deve-se amar com zelo extremo o que vem da Igreja e guardar a Tradição da verdade. Ora, se surgisse alguma controvérsia sobre questões de mínima importância, não se deveria recorrer a Igrejas mais antigas, onde viveram os Apóstolos, para saber delas, sobre a questão em causa, o que é líquido e certo? E se os Apóstolos não nos tivessem deixado as Escrituras, não se deveria seguir a ordem da Tradição que transmitiram àqueles aos quais confiavam as Igrejas?"
- "Contra Hæreses Lib. III.", IV, 1 (PG 7,855).

Na verdade, a própria Escritura foi a maior parte deste “depósito” Apostólico. O mesmo aconteceu com a Igreja. A Escritura e a Igreja não podiam ser separadas ou opostas uma à outra. As Escrituras, isto é, seu verdadeiro entendimento, estavam apenas na Igreja, quando ela era guiada pelo Espírito. Orígenes estava enfatizando persistentemente esta unidade entre as Escrituras e a Igreja. A tarefa do intérprete era revelar a palavra do Espírito:

"Por meio dessas coisas, então, ele diz: 'Pois já demonstramos que judeus e gregos estão todos sob o domínio do pecado' (Rm 3,9). Mas depois destas coisas, como é seu costume, ele quer afirmar o que havia dito nas Sagradas Escrituras. Simultaneamente, ele dá um exemplo para os professores da Igreja, para que eles também exponham as coisas que são faladas ao povo, não como assuntos adotados como opiniões privadas, mas como assuntos fortalecidos pelos testemunhos Divinos. Pois se um tipo tão grande de Apóstolo não acredita que a autoridade de suas próprias palavras é suficiente, a menos que ele mostre que o que ele está dizendo está escrito na Lei e nos Profetas, quanto mais deveríamos nós, que somos muito insignificantes por comparação, ter cuidado quando ensinamos para apresentar não a nossa própria interpretação, mas a do Espírito Santo (hoc observare debemus ut non nostras, cum docemus, sed Sancti Spiritus sententias proferamus)?"
- Orígenes, "Comment. in Epist. ad. Rom. Lib. III.", 2 (PG 14,929).

E isto é simplesmente impossível fora da Tradição Apostólica, mantida na Igreja. Orígenes insistiu na interpretação Católica das Escrituras, tal como é oferecida na Igreja:

"Se o Legislador quisesse que fosse compreendido apenas o que é pensado de acordo com a letra, ele poderia ter dito: 'se ele encontrou algo que estava perdido ou o que alguém destruiu'. Mas ele queria que entendêssemos algo mais quando disse: 'um objeto perdido que encontrou' (Lv 5,22). Aqueles que pecam além da medida são chamados de 'perdição' (perditio) nas Escrituras. Assim como lemos o ditado do profeta Ezequiel: 'és objeto de perdição, aniquilada para sempre!'. Portanto, é ele quem ao procurar muito 'encontra a ruína', como, por exemplo, podemos dizer os hereges, ao construir e defender a sua doutrina, procuram e discutem muito nas Escrituras Divinas, para que 'encontrem a ruína'. Pois, visto que buscaram muitos testemunhos aos quais acrescentassem o que pensavam erroneamente, deve-se dizer que encontraram a ruína. Mas se, por acaso, um deles, ouvindo na Igreja a Palavra de Deus apresentada à maneira Católica (audiens in Ecclesia Verbum Dei Catholice tractari), cair em si e compreender que o que encontrou é 'ruína', ele diz, ele devolverá o que encontrou."
- "In Leviticum Homilia IV.", 5 (PG 12,438).

Os hereges, em sua exegese, ignoram precisamente a verdadeira “intenção” ou a voluntas da Escritura:

"Pois é dito aos pecadores: 'Semearam trigo, e só colheram espinhos' (Jr 12,13). Pois mesmo que conheçam as palavras de Deus, aqueles que apresentam as palavras de Deus, não em conjunto com a intenção das Escrituras, nem em conjunto com a verdade da Fé, semearam trigo e colheram espinhos (χἂν γὰρ ἐν τοῖς ἁγίοις τοῦ θεοῦ ὁμιλῶτιν, οἱ μὴ καλῶς αὐτοῖς ὁμιλοῦντες, μηδὲ ὃν δεῖ τρόπον βιοῦντες, μηδὲ πιστεύοντες, σπείρουσι πυροὺς, καὶ θερίζουσιν ἀχάνθας [chán gár en toís agíois toú theoú omilótin, oi mí kalós aftoís omiloúntes, midé ón deí trópon vioúntes, midé pistévontes, speírousi pyroús, kaí therízousin achánthas]). Mas essas coisas são especialmente compreendidas pelos hereges que leem as Escrituras e colhem espinhos não das Escrituras, mas de suas próprias invenções."
- "In Jeremiam Homilia XI.",3 (PG 13,370).

A “intenção” da Sagrada Escritura e a “Regra de Fé” estão intimamente correlacionadas e correspondem entre si. Esta foi a posição dos Padres no século IV e mais tarde, em plena concordância com o ensinamento dos Antigos.

"Marcião e Basilides e outros hereges não possuem o Evangelho de Deus, pois não têm o Espírito Santo, sem o qual o Evangelho assim pregado se torna humano.
Não pensamos que o Evangelho consista nas palavras da Escritura, mas no seu significado; não na superfície, mas na medula, não nas folhas dos sermões, mas na raiz do significado. Neste caso, a Escritura é realmente útil para os ouvintes quando não é falada sem Cristo, nem é apresentada sem os Padres, e aqueles quem está pregando não o apresente sem o Espírito. O diabo também fala das Escrituras, e todas as heresias, segundo Ezequiel, confecciona material delas e costuram véus para as cabeças de todos os tamanhos (Ez 13,18). Quanto a mim, quando tenho Cristo em mim enquanto falo, não tenho o evangelho do homem. Mas se eu sou um pecador, ouço: 'Ao pecador, porém, Deus diz: “Por que recitas os Meus Mandamentos, e tens na boca as Palavras da Minha Aliança? Tu que aborreces Meus Ensinamentos e rejeitas Minhas Palavras?"’ (Sl 49,16-17), e assim por diante. É um grande perigo falar na Igreja, para que por uma interpretação perversa do Evangelho de Cristo não se faça um evangelho do homem - ou, o que é pior, o evangelho do diabo."
- São Jerônimo, "Commentariorum in Epistolam ad Galatas Lib I.", Cap. I (PL 26,322).

A Veritas Fidei (a Verdade da Fé) é, neste contexto, a Confissão de Fé Trinitária. É a mesma abordagem de São Basílio. Novamente, São Jerônimo fala aqui principalmente da proclamação da Palavra na Igreja: andientibus utilis est (aos que ouvem a Palavra). Há a mesma preocupação com a verdadeira compreensão da Palavra de Deus como nos dias de Santo Irineu, Tertuliano e Orígenes. São Jerônimo provavelmente estava simplesmente parafraseando Orígenes.

Fora da Igreja não existe “Evangelho Divino”, mas apenas substitutos humanos. O verdadeiro significado das Escrituras, o Sensus Scripturae, isto é - a Mensagem Divina, só pode ser detectado Juxta Fidei Veritatem (em conjunto com a Verdade da Fé), sob a orientação da Regra da Fé.


§. Conclusão: o significado do apelo aos Padres


Tem sido corretamente observado que o apelo a "antigüidade" foi mudando sua função e característica com o passar do tempo. O passado Apostólico estava ainda à mão, e dentro do alcance da memória humana, nos tempos de São Irineu e Tertuliano. Na verdade, São Irineu tinha ouvido em sua juventude as instruções orais de São Policarpo, o discípulo imediato de São João o Divino. Era só a terceira geração depois de Cristo; a memória da era Apostólica estava ainda fresca. O escopo da história Cristã era breve e limitado. A maior preocupação desse primeiro período era com as bases "Apostólicas," com a entrega inicial do Kerygma. Coerentemente, Tradição significava naquele tempo, primariamente, a "entrega" ou "deposição" original. A questão de transmissão acurada, por um pouco mais que um século, era comparativamente simples, especialmente nas Igrejas fundadas pelos próprios Apóstolos. Toda a atenção era dada, seguramente, para as listas de sucessão episcopal (Cf. Santo Irineu de Hegesippus), mas não era difícil compilar essas listas. A questão da "sucessão," no entanto, pareceu ficar muito mais complicada para as gerações subseqüentes, mais afastadas dos tempos Apostólicos. Era mais do que natural, sob essas novas circunstâncias, que a ênfase fosse deslocada da questão da "Apostolicidade" inicial para o problema da preservação do "depósito." Tradição veio a significar "transmissão," ao invés de "entrega." A questão das ligações intermediárias, de "sucessão" — no amplo e compreensivo sentido da palavra — tornou-se extremamente urgente. Era o problema do testemunho fiel. Foi nessa situação que a autoridade dos Padres foi formalmente invocada: eles eram testemunhas da permanência ou identidade do Kerygma, como transmitido de geração em geração.¹⁹ Apóstolos e Padres — esses dois termos eram geral e comumente usados juntos nas discussões de Tradição, no correr dos séculos terceiro e quarto. Era essa dupla referência, à origem e à preservação sem falhas e contínua, que garantia a autenticidade da crença. De outro lado, as Escrituras eram formalmente aceitas e reconhecidas como a base da fé, como a Palavra de Deus e os Escritos do Espírito. Entretanto, existia ainda o problema da interpretação correta e adequada. Escrituras e Padres eram usualmente citados juntos, isto é, kerygma e exegese, i grafi ke i pateres (η γραφη και οι πατερες).

A referência, ou mesmo um apelo direto "aos Padres" era uma nota destacada e saliente da pesquisa e discussão teológica no período dos grandes Concílios Gerais ou Ecumênicos, começando com o de Nicéia. O termo nunca foi formalmente definido. Ele era usado, ocasional e esporadicamente, já pelos primeiros escritores eclesiásticos. Com freqüência ele denotava professores e líderes Cristãos de gerações anteriores. Ele foi gradualmente se tornando um título para os bispos assim que eles fossem apontados professores e testemunhas da Fé. Mais tarde ele foi aplicado especificamente para bispos em Concílios. O elemento comum em todos esses casos era o cargo ou tarefa de ensinamento. "Padres" eram aqueles que transmitiam e propagavam a Doutrina Correta, o ensinamento dos Apóstolos, e que eram guias e mestres em Instrução e Catequese Cristã. Nesse sentido ele era enfaticamente aplicado para grandes Escritores Cristãos. Deve-se manter em mente que o principal, se não também o único, manual de Fé e Doutrina era, na Igreja Antiga, precisamente os Santos Escritos. E por essa razão os renomados intérpretes das Escrituras eram vistos como "Padres" num sentido eminente.²⁰ "Padres" eram professores, antes de tudo — doctores, didaskali (διδασκαλοι). E eles eram professores contanto que fossem testemunhas, testes. Essas duas funções devem ser distintas, e ainda assim elas são intimamente interligadas. "Ensinar" era uma tarefa Apostólica ; "ensinando a todas as nações." E era nesse comissionamento que a "autoridade" deles estava enraizada: era, de fato, a autoridade para dar testemunho. Dois pontos principais devem ser mencionados em relação a esse respeito. Primeiro, a frase "os Padres da Igreja" era certamente um óbvio acento restritivo: eles estavam agindo não simplesmente como indivíduos, mas sim como Viri Ecclesiastici (a expressão favorita de Orígenes), por conta e em nome da Igreja. Eles eram porta-vozes da Igreja, expositores da Fé dela, mantenedores da Tradição, testemunhas da Verdade e da Fé — Magistri Probabiles, na linguagem de São Vicente. E nisso estava fundamentada a "autoridade" deles.²¹ O que nos conduz de volta ao conceito de "representação." Prestige observou muito bem:

"Os credos da Igreja cresceram do ensinamento da Igreja: o efeito geral das heresias foi mais forçar os antigos credos a serem apertados do que fazer com que credos novos fossem construídos. Assim o mais famoso e mais crucial de todos os credos, o de Nicéia, era somente uma nova edição de uma existente confissão Palestina. E um fato muito mais importante deve ser sempre lembrado. O real trabalho intelectual, o vital pensamento interpretativo, não foi contribuído pelos Concílios que promulgaram os credos, mas sim pelos professores teólogos que supriram e explicaram a fórmula que os Concílios adotaram. O ensinamento de Nicéia, que finalmente o recomendou, representou as visões de gigantes trabalhando por cem anos antes e cinqüenta anos depois da verdadeira reunião do Concílio"
- "Fathers and Heretics" (London, 1940), pg.8,

Os Padres eram verdadeiros inspiradores dos Concílios, estando presentes ou ausentes, e até mesmo depois de terem ido para o Descanso Eterno. Por essa razão, e nesse sentido, os Concílios costumavam enfatizar que eles estavam "seguindo os Santos Padres" (επομενοι τοις αγιος πατρασιν), como Calcedônia disse. Segundo, foi precisamente o Consensus Patrum que foi autoritativo e obrigatório, e não suas opiniões ou visões particulares, apesar de nem mesmo elas poderem ser apressadamente dispensadas. De novo, esse Consensus era muito mais do que simplesmente um acordo empírico de indivíduos. O verdadeiro e autêntico consensus era aquele que refletia a mente da Igreja Católica e Universal — to ekklesiastikon fronima (το εκκλησιοστικον φρονημα).²² Era esse tipo de Consensus ao qual se referia São Irineu quando ele argumentava que nem uma "habilidade" especial, nem uma "deficiência em falar de líderes individuais nas Igrejas poderia afetar a identidade de seus testemunhos, já que o "poder da Tradição" — Virtus Traditionis — era sempre e em todo lugar o mesmo.²³ A pregação da Igreja era sempre idêntica: constans et aequaliter perseverans.²⁴ O verdadeiro consenso é aquele que manifesta e descobre essa perene identidade da Fé da Igreja —aequaliter perseverans.

A "autoridade" de ensinar dos Concílios Ecumênicos está baseada na infalibilidade da Igreja. A "autoridade" definitiva está investida na Igreja que é para sempre o Pilar e a Base da Fé. Não é primariamente uma autoridade canônica, no sentido formal e específico do termo, apesar de restrições e sanções canônicas poderem ser apensas a decisões conciliares em Matéria de Fé. É uma autoridade "Carismática," baseada na assistência do Espírito: "pois pareceu bom ao Espírito Santo, e a nós".




NOTAS


[1]. Irineu;

"Depois de reunir frases e nomes espalhados aqui e acolá eles os transformam, como dissemos, de um sentido natural a um que não é o seu, fazendo como os que se propõem um argumento e depois procuram encontrá-lo nos versos de Homero, levando os inexpertos a acreditar que Homero compôs os versos precisamente sobre aquela teoria que eles inventaram e, por causa da seqüência bem ordenada dos versos, muitos se perguntam se Homero não seria efetivamente o autor daqueles versos.
É como se alguém descrevesse com versos homéricos a missão de Hércules enviado por Euristeu para amarrar o cão infernal. Nada nos impede de usar exemplo como este, porque nos dois casos a argumentação é a mesma:
'Tendo assim ele falado, foi afastado de casa, chorando Hércules, nobre, habituado a façanhas para sempre famosas, Por este Euristeu, nascido de Estênelo, raça Perseida Para tirar do Érebo o cão cruel do Hades. Ele vai como leão montanhês, confiando nas grandes suas forças Celeremente, através da cidade, acompanhado por todos os amigos. As moças solteiras, os jovens e os velhos desafortunados. Sem parar, com choro convulso, como os que vão para a morte. E Hermes ia com eles e a de olhos cerúleos Atena: Seu coração lhe dizia a pena que o irmão padecia.'
Qual a pessoa simples que não se impressionaria com estes versos e duvidaria que Homero os tenha composto assim como são para falar daquele mito? Mas quem conhece os textos de Homero reconheceria os seus versos, mas não o assunto tratado, porque sabe que alguns deles falam de Ulisses, outros de Hércules, outros de Príamo e outros de Menelau e Agamenon. Se os inserisse cada um no exato lugar da obra de que foram tirados, faria desaparecer o argumento em questão. Assim, quem possui a indefectível Regra da verdade aprendida no batismo reconhecerá os nomes, as expressões, as parábolas que são das Escrituras, mas não a teoria blasfema deles. Reconhecerá as pedras do mosaico, mas na figura da raposa não verá a imagem do rei. Recolocando cada uma das palavras no seu lugar (τη ιδία τάξει), ajustadas ao corpo da verdade, desvendará e mostrará a inconsistência das suas fantasias."
- "Contra Hæreses Liber Primus.", IX, 4 (PG 7,548).

[2]. Tem sido comentado que Charisma Veritatis seria, na verdade, simplesmente a Doutrina e Verdade Apostólica (da Revelação Divina), tanto que Santo Irineu não menciona qualquer talento ministerial especial dos Bispos. Ver Karl Muller, "Kleine Beträge zur alten Kirchengeschichte, 3. Das Charisma veritatis und der Episcopatbei Irenaeus, no "Zeitschrift f. Neut. Wissenschaft", Bd. XXIII (1924), ss.216-222; cf. Van den Eynde, pgs.183-187; Congar, "La Tradition et les traditions, Êtude Historique" (Paris, 1960), pgs.97-98; Hans Freiherr von Campemhausen, "Kirchliches Amt und geistliche Vollmacht in der ersten drei Jahrunderten" (Tübingen, 1953) ss.185 ff.; e também com especial ênfase no caráter de "Sucessão" — Einar Molland, "Irenaeus von Lugdunum and the Apostolic Sucession" no "Journal of Ecclesiastical History", 1.1,1950, pgs. 12-28, e "Le développement de l’idée de Sucession Apostolique", "Revue d’Histoire et de Philosophie Réligieuses", XXXIV.i,1954, pgs1-29. Ver de outro lado as observações críticas de Arnold Ehrhardt, "The Apostolic Succession in the first two centuries of the Church." (Londres, 1953), páginas 207-231.


[3]. "Contra Hæreses Lib. II.", Cap. XXVII, 1 (PG 7,802).


[4]. Cf. Dom Odo Casel O.S.B., Benedict Von Nursia als Pneumatiker, no "Heilige Überlieferung"(Münster, 1938), páginas 100-101. "Die heilige Überlieferung ist daher in der Kirche Von Anfang na nicht bloss ein Weitergeben Von Doktrinen nach spätjudischen (nachchristlicher) Art gewesn, sondern ein lebendiges Weiterblühen des göttlichen Lebens". Numa nota de rodapé Dom Casel manda o leitor de volta para Johann Adam Möhler.


[5]. Atanásio (C. Arian 1,54)


[6]. - "Id, quod quis docendo, scribendo, credendo intendit" - Guido Muller S.J., "Lexicon Athannasianum", 1952, Walter DeGruyter & Co., página 1339.


[7]. Ver Karl Prächter, "Richtung und Schulen im Neuplatonismus", em "Genethalikon"(Carl Roberts zum 8. März 1910), (Berlin, 1910). Prächter traduziu Skopos como Zielpunkt ou Grundthema (s.128 f.). Ele caracterizava o método de Jamblico como uma exegese universalistische. Proclo, em seu comentário sobre Timeu, contradiz Porfírio e Jamblico: Porfírio interpreta textos merikoteron, enquanto Jamblico interpreta epoptikoteron, que é de uma maneira compreensiva ou sintética: em Tim. I, pg. 204 ff., citado por Prächter, s.136.


[8]. "De Decretis" 27


[9]. "Τοιαύτην μὲν οὖν ἡγοῦμαι τὴν διάνοιαν τοῦ ῥητοῦ καὶ μάλα ἐκκλησιαστικὴν οὖσαν" - "Oratio I Contra Arianos.", 44 (PG 26,101).


[10]. Contra Gentes, I.


[11]. ad Adelph., 6.


[12]. Ver Frans De Pauw, "La justification des traditions non écrites chèz Tertullien", em "Ephemerides Theologicae Lovanienses" T. XIX,1/2, 1942 páginas 5-46.


[13]. Ver sua introdução ao "De Spiritu Sancto" em "Sources Chrètiennes" 17, Paris, 1945.


[14]. Ver o estudo de August Deneffe, "Dogma.Wort und Begriff", em "Scholastic", Jg.VI (1931), ss.381-400 e 505-538.


[15]. 12 e 17


[16]. "οἷα δὲ μύσταις καὶ μυσταγωγοῖς μόνοις δέον τάδε λέγειν καὶ ἀκούειν ὑφηγουμένων" - "Historia Ecclesiastica. - Lib. I.", Cap. XX (PG 67,920).


[17]. "τω βουλή μάτι της Γραφής ήκολούθησαν, έκ των μαρτυριών. . . τας αρχάς λαοόντες"


[18]. Ver artigo de German Mártil, O.D., "La Tradición en San Agustín através de la Controvérsia pelagiana", Madrid, 1942, originalmente na "Revista española de Teologia", Vol. II., 1942.


[19]. Cf. P.Smulders, "Le mot et le concept de Tradition chez les Pères," "Recherches de Science Religieuse", 40 (1952), 41-62, e Yves Congar, "La Tradition et les traditions, Etude historique" (Paris 1960) p.57 sq.


[20]. Ver J.Fessler, "Institutiones Patrologia"e, denuo recensuit, auxit, edit B. Jungmann,I (Innsbruck, 1890), pgs. 15-57; E.Amann, "Pères de l’Église," "Dictionnaire de Theologie Catholique", XII, cc.1192-1215; Basilius Steidle, O.S.B., "Heilige Vaterschaft," "Benedictinische Monatsschrift", XIV (1932), 215-216; "Unsere Kirchenväter," ibidem, 387-398 e 454-466.


[21]. Cf. Basilius Steidle, "Patrologia" (Friburgi Brisg., 1937), p.9 :"qui saltem aliquo tempore per vinculum Fidei et Caritatis Ecclesiae adhaeserunt testesque sunt Veritatis Catholicae".


[22]. Ver Eusebio, Hist. Eccl.,V. 28.6.


[23]. Adv. Haeres. I.10.2.


[24]. ibid., III.24.1.

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