“Imagens Esculpidas”: A Iconoclastia Antibíblica de João Calvino
- Dave Armstrong
- 12 de mai.
- 17 min de leitura
Atualizado: 17 de mai.
- Dave Armstrong
Usarei a tradução (de domínio público) das Institutas da Religião Cristã de Henry Beveridge, produzida para a Calvin Translation Society em 1845, a partir da edição de 1559 em latim; reimpresso por William B. Eerdmans Publishing Company (Grand Rapids, Michigan), 1995, e disponível on-line no maravilhoso site da Christian Classics Ethereal Library. Minhas próprias passagens bíblicas são da RSV.

As palavras de Calvino estarão em vermelho-vinho.
Primeiro, é dito nos livros de Moisés (Deuteronômio 4:15) o seguinte: “Tende cuidado de vós mesmos; porque não vistes semelhança alguma no dia em que o Senhor vos falou em Horebe, do meio do fogo, para que não vos corrompais e façais para vós uma imagem esculpida, à semelhança de qualquer figura”, etc. Vemos quão claramente Deus se declara contra todas as figuras, para nos tornar conscientes de que todo anseio por tais formas visíveis é uma rebelião contra ele. (I, 11:2)
“Todas as figuras”? Isto não é verdade, uma vez que Deus ordenou a construção da Arca, do templo e dos altares: tendo sido todos eles usados de tal forma que Deus estaria especialmente presente em cada um delas: através do objeto físico de alguma forma.
Calvino:
Dos profetas, será suficiente mencionar Isaías, sendo o mais profícuo neste assunto (Isaías 40:18; 41:7, 29; 45:9; 46:5), para demonstrar como a majestade de Deus é contaminada por uma ficção absurda e indecorosa, quando aquele que é incorpóreo é assimilado à matéria corpórea; aquele que é invisível a uma imagem visível; aquele que é espírito a um objeto inanimado; e o que preenche todo o espaço a um pedaço de madeira insignificante, ou de pedra ou ouro. (I, 11:2)
O mesmo Deus ordenou aos judeus que construíssem uma arca de madeira e ouro, onde Ele os encontraria, e o mesmo profeta Isaías afirma:
“Ó Senhor dos Exércitos, Deus de Israel, que estás entronizado acima dos querubins”.(Is 37:16).
Isto é uma referência à Arca da Aliança, conforme elaborado em muitas outras passagens (listadas acima). Não se trata de acharmos estupidamente que Deus é um mero pedaço de madeira ou de ouro (os católicos estão completamente de acordo com Calvino ao condenar isso), mas sim de usarmos objetos de modo que eles sirvam de auxílio à devoção a Deus (uma prática eminentemente bíblica). Isto é o que Calvino e os calvinistas também não entendem com relação às estátuas usadas para auxiliar na devoção, de modo a pedirmos a intercessão dos santos e venerá-los ou honrá-los (não adorá-los!). Paulo também segue o mesmo raciocínio:
“Visto que somos descendência de Deus, não devemos pensar que a Divindade é semelhante ao ouro, ou à prata, ou à pedra, esculpida pela arte e pelo artifício do homem”. (Atos 17:29)
Calvino:
Portanto, é manifesto que quaisquer estátuas erguidas ou quadros pintados com o fim de representar Deus lhe desagradam totalmente, como uma espécie de insulto à sua majestade. (I, 11:2)
Este é um argumento infundado, uma vez que Deus se tornou homem (o que chamamos de encarnação). Nós vimos Deus em carne e osso. Jesus Cristo “é a IMAGEM [do grego eikon – ícone] do Deus invisível” (Colossenses 1:15). Se os homens viram nosso Senhor, se eles tocaram-nO e tiveram Sua aparência física gravada em suas memórias, que possível objeção pode ser feita a uma pintura ou estátua Dele? Por que essa última prática é pior que a primeira? Todos sabem que Jesus não foi feito de ouro ou madeira [ele foi feito de carne]. Ele foi um homem. Eles sabem muito bem que a imagem de uma estátua ou de uma pintura é uma representação e não é idêntica a Ele, assim como também sabem que tais obras de arte em geral representam inúmeras coisas. Calvino praticamente refuta a si mesmo nesse sentido, quando escreve:
Deus às vezes aparecia na forma de um homem, mas isso acontecia em antecipação à futura revelação em Cristo e, portanto, não dava aos judeus o menor pretexto para estabelecer um símbolo da Divindade sob a forma humana. (I, 11:3)
Este é o ponto principal! Estamos agora no período da Nova Aliança. Jesus Cristo já veio; Deus se tornou homem. O que estava previsto aconteceu. E parece claro que num mundo pós-encarnação as imagens são perfeitamente aceitáveis e corretamente compreendidas. As pessoas (com raras exceções) entendem o que elas são. São auxílios devocionais, e não ídolos.
Calvino:
Além disso, todos os homens de bom senso reconhecem que os Querubins em questão pertenciam à antiga tutela da lei. É um absurdo, portanto, apresentá-los como um exemplo para a nossa época. Pois aquele período de puerilidade, se assim posso expressar, ao qual tais rudimentos foram adaptados, já passou. (I, 11:3)
Calvino refere-se especificamente aos querubins na arca da aliança. Mas esse não foi o único lugar onde apareceram querubins esculpidos, com a expressa aprovação de Deus.

Benjamin West (1738–1820)
Domínio Público
Na primeira estrutura magnífica construída por Salomão, dois querubins gigantes (dez côvados, ou cerca de quinze pés de altura) de madeira, cobertos de ouro, ficavam no santuário interno (1Rs 6:23-28; 8:6-7; 2 Crônicas 3:10-13; 5:7-8). Cada uma de suas asas tinha de 7 a 8 pés de comprimento. Imagens de querubins também foram esculpidas nas tábuas de cedro das paredes internas do templo e nas portas feitas de madeira de oliveira (1Rs 6:29, 35; 2Cr 3:7), bem como nas pias portáteis, junto com leões e bois (1Rs 7:29-36), e tecidos no véu do Santo dos Santos (2Cr 3:14), seguindo o padrão dos querubins na cortina interna do tabernáculo e no véu ( Êx 26:1, 31; 36:8, 35). No segundo templo, segundo Ezequiel, as paredes internas eram esculpidas com palmeiras e querubins, com rostos de leão e de homem (Ez 41:18-25). Da mesma forma, as paredes do (terceiro) templo de Herodes foram pintadas com figuras de querubins, de acordo com o Talmud (Yoma’ 54a).
É uma quantidade enorme de imagens, no mesmo lugar onde Deus estava especialmente presente, e adorado com mais fervor, ordenadas pelo mesmo Deus, que supostamente não queria nenhuma imagem de qualquer tipo ligada à adoração (se não durante toda a antiga aliança, pelo menos durante a nova). Tal é o manifesto absurdo da iconoclastia antibíblica de Calvino.
Com alguma sutileza, porém, Calvino (aparentemente com relutância presunçosa) aceita a antiga adoração recheada de imagens como legítima sob “a velha tutela da lei”: um “período de puerilidade” que “passou”, embora sustentando que tal adoração seria “absurda” em “nossa época”. Este é um argumento tendencioso – bastante típico do calvinismo e de muitas vertentes do protestantismo –, que pressupõe uma ruptura demasiado grande entre a antiga e a nova aliança. Na verdade, a adoração no templo era bastante consistente com a nova aliança. Jesus e os discípulos certamente participaram dela.
Se Calvino deseja argumentar que este foi um período de transição, então com certeza na época de São Pedro e São Paulo, depois do Pentecostes, já é a nova aliança, ou a era da Igreja. Atos 3:1 nos diz que Pedro e João adoravam no templo, durante a hora nona, que era às 15 horas: o horário em que o Sacrifício era oferecido (Êx 29.39; Lv 6.20; cf. Josefo, Antiguidades Judaicas, XIV.4.3). Atos 2:46 descreveu os primeiros cristãos como “dia após dia, frequentando juntos o Templo”. São Paulo faz referência à sua própria presença e adoração no templo (Atos 24:12), e é descrito como alguém que continuamente participava de seus rituais (Atos 21:26: “Então Paulo tomou os homens, e no dia seguinte purificou-se com eles e entrou no templo, para avisar quando os dias de purificação seriam cumpridos e a oferta apresentada para cada um deles” – cf. 25:8: “Nem contra a lei dos judeus, nem contra o templo, nem contra César ofendi de forma alguma”). Em Atos 22:7 ele se refere à sua prática de “orar no templo”, e em Atos 24:18 como tendo sido “purificado no templo” (veja também 24:17: “Vim trazer as esmolas para minha nação e ofertas”).

Isto só mudou quando houve a destruição do templo de Herodes pelos romanos em 70 d.C. Caso contrário, em princípio, os cristãos (particularmente os cristãos etnicamente judeus) poderiam ter continuado a participar do culto do templo: dele por completo, isto é, com todas as imagens envolvidas. Nada nestas práticas era intrinsecamente hostil ao ensino cristão. Portanto, a afirmação de Calvino é demolida. Este era o templo de Herodes, que tinha querubins pintados nas paredes. Jesus, Pedro e Paulo adoravam ali. Havia querubins nas suas paredes, o que significa que o “período” de “tais rudimentos” não tinha “passado”, como Calvino queria que acreditássemos.
Se as imagens num templo eram boas o suficiente para Jesus e Paulo, então certamente elas são permitidas para nós.
No entanto, Calvino e os calvinistas historicamente se opuseram não apenas a imagens nas paredes (isto é, vitrais), mas até mesmo a órgãos, estátuas de Cristo, crucifixos; até mesmo cruzes nuas: todas tratadas por eles como supostos “ídolos”, em sua extrema iconoclastia que não pode ser sancionada pelas Escrituras nem por um segundo, como demonstramos.
Mesmo no fim dos tempos, a Arca da Aliança e o Templo continuam a aparecer no céu:
Apocalipse 11: 19 – Abriu-se o Templo de Deus no céu e apareceu, no seu templo, a Arca do seu testamento. Houve relâmpagos, vozes, trovões, terremotos e forte saraiva.
Outras referências a um “templo” no céu ocorrem em Apocalipse 3:12; 7:15; 11:1-2; 14:15, 17; 15:5-6, 8; 16:1, 17.
Calvino:
Além disso, deve-se observar que, pelo modo de expressão empregado, toda forma de superstição é denunciada. Sendo obras de homens, não têm autoridade de Deus (Is 2:8; 31:7; Os 14:3; Mq 5:13); e, portanto, deve ser considerado como um princípio fixo que todos os modos de adoração inventados pelo homem são detestáveis. (I, 11:4)
Aqui Calvino refuta habilmente a sua própria tradição de iconoclastia criada pelo homem (uma heresia do século VIII – há muito condenada pela Igreja histórica – que ele regurgitou). Agora que vimos que imagens de vários tipos foram associadas à adoração (inclusive na nova aliança, pelos exemplos dos próprios Jesus e Paulo), sabemos que a iconoclastia, ou a antipatia por todas as imagens na adoração e na piedade, é apenas um modo de adoração “inventada pelo homem” (uma vez que vai contra a revelação bíblica). Portanto, deve ser rejeitada, e todo o argumento de Calvino a respeito das “imagens esculpidas” é auto-refutável. Tudo o que há de verdadeiro nela (o fato de que Deus não é um ídolo de madeira feito pelo homem) nunca foi contestado pela Igreja Católica em nenhum momento.
Mas a iconoclastia de Calvino e calvinista é principalmente uma aplicação errônea falaciosa, hiperlegalista e muito ampla da proibição de imagens esculpidas nos Dez Mandamentos, levando a acusações ridículas, e quase onipresentes, de “idolatria” contra os católicos e os ortodoxos há quase 500 anos, e acarretando em outros erros, como a antipatia pela eficácia dos sacramentos como meios de transmissão da graça, pelos sacramentais e pela veneração dos santos. A visão extremista de Calvino é particularmente vista na seguinte passagem:
E deve-se observar que a coisa proibida é a semelhança, seja ela esculpida ou não. Isto elimina a precaução frívola que foi tomada pela Igreja Grega. Eles acham que sua prática é admirável, só porque eles não têm nenhuma forma esculpida de Deidade, enquanto ninguém vai tão longe no uso licencioso de imagens. O Senhor, no entanto, não apenas proíbe que qualquer imagem de si mesmo seja erguida por meio de uma estátua, mas também proíbe que seja formada por qualquer artista que seja, porque cada uma dessas imagens é pecaminosa e um insulto à sua majestade. (I, 11:4)
Eu perguntaria, então: por que Deus se tornou homem, se qualquer sentido de imagem em relação a Deus é tão totalmente proibido? Se a ideia é promover um Deus completamente espiritual, invisível e não visual para os olhos (como de fato é o Pai), por que aparecer em carne humana? Assim, este tipo de iconoclastia absurda é, em última análise, uma atitude de oposição à própria encarnação. Muitas vezes leva, nas mentes daqueles que a defendem, a uma antipatia pela própria matéria, que é reflexo ou reminiscência do antigo docetismo e até mesmo do gnosticismo em alguns aspectos. Nesta visão, podemos imaginar Deus como um homem (poderíamos até tê-lo conhecido pessoalmente, se tivéssemos vivido durante os tempos em que Deus, o Filho, Jesus, andou pela terra), mas todas as imagens Dele são proibidas. Nenhuma proibição desse tipo ocorre nas Escrituras. Nem todas as imagens são imagens esculpidas (ou seja, ídolos). É a equação tola dos dois (como se fossem sempre idênticos) que constitui o erro fundamental de Calvino a este respeito. Ele parece não conseguir conceber nenhuma imagem que não seja um ídolo. Mas este é claramente um ponto de vista ridículo e insustentável se levarmos em consideração as Sagradas Escrituras.
Portanto, seja Deus ou uma criatura representada, no momento em que você se prostra diante dela em veneração, você fica fascinado pela superstição. (I, 11:9)
Pois por que os homens se prostram diante das imagens? (I, 11:10)
É curioso, então, que uma figura tão importante como Josué não tenha entendido isso. Ele se prostrou diante da Arca da Aliança, que tinha no topo os dois querubins (imagens de criaturas):

James Tissot (1836–1902)
Domínio Público
Josué 7:6-7 Então Josué rasgou as suas vestes, e prostrou-se com o rosto em terra diante da arca do Senhor até à tarde, ele e os anciãos de Israel; e puseram pó sobre as suas cabeças. E Josué disse: “Ah, ó Senhor Deus, por que fizeste este povo atravessar o Jordão, para nos entregar nas mãos dos amorreus, para nos destruir? Quem dera tivéssemos nos contentado em morar além do Jordão!”
Na passagem maior, não ocorre nenhum indício de que Josué tenha feito qualquer coisa errada, muito menos caído na “superstição”. A Bíblia também descreve os adoradores curvando-se diante do templo (ao que chamamos prostração), engajando-se assim em superstições em massa, isso de acordo com Calvino (embora a Bíblia nunca condene a prática). Isto inclui imagens também, já que o templo estava coberto de imagens de querubins, conforme observado anteriormente:
2 Crônicas 7:3 – Quando todos os filhos de Israel viram descer o fogo e a glória do Senhor sobre o templo, prostraram-se com o rosto em terra sobre o pavimento, adoraram e deram graças ao Senhor, dizendo: “Porque ele é bom, porque o seu amor constante dura para sempre.”
Salmos 138:2 – Eu me curvo diante do teu santo templo e dou graças ao teu nome pelo teu amor inabalável e pela tua fidelidade.
Judite 4:11 – E todos os homens e mulheres de Israel, e seus filhos, que viviam em Jerusalém, prostraram-se diante do templo, e puseram cinza sobre as suas cabeças, e estenderam os seus sacos diante do Senhor.
Tendo se envolvido repetidas vezes em pensamentos extremistas e ilógicos com relação às imagens, Calvino finalmente acha adequado moderar de forma inconsistente o seu legalismo expresso:
Não sou, contudo, tão supersticioso a ponto de pensar que todas as representações visíveis de qualquer tipo sejam ilegais. Mas como a escultura e a pintura são dons de Deus, o que insisto é que ambos sejam usados de forma pura e lícita – que os dons que o Senhor nos concedeu, para sua glória e nosso bem, não sejam abusados de forma absurda, ou melhor, não sejam pervertidos para nossa destruição… As únicas coisas, portanto, que devem ser pintadas ou esculpidas são as que podem ser apresentadas aos olhos; a majestade de Deus, que está muito além do alcance de qualquer olho, não deve ser desonrada por representações inapropriadas. As representações visíveis são de duas classes – históricas, que dão uma representação de acontecimentos, e pictóricas, que apenas exibem formas e figuras corporais. As primeiras são de alguma utilidade para instrução ou advertência. Estas últimas, até onde posso ver, servem apenas para diversão. E, no entanto, é certo que as últimas sejam quase o único tipo que até então foi exibido nas igrejas. Digo apenas que, embora fossem impecáveis em outros aspectos, não poderiam ter nenhuma utilidade no ensino. (I, 11:12)
É bastante curioso que Calvino pareça não ter consciência de que mais uma vez ele derrotou os seus próprios argumentos anteriores. Se as imagens de Deus são tão horríveis e inadmissíveis, ainda assim as pinturas que “dão uma representação dos acontecimentos. . . são de alguma utilidade para a instrução”, então com que base ele pode proibir uma pintura da crucificação? Ele teria de sustentar que Jesus (a “imagem do Deus invisível”) não pode jamais ser retratado em pintura ou escultura, uma vez que isto (assim pensa ele erroneamente) é intrinsecamente idólatra. Mas isto vai contra a concessão que ele faz, de que os eventos podem ser retratados quando tal ação é realizada de forma adequada. Por que então o acontecimento mais importante da história não pode ser retratado, para nossa edificação? Isso não faz sentido. Mais uma vez, no fundo, ou como uma redução lógica, este tipo de pensamento é hostil à própria noção de um Deus que se torna homem (e portanto, se faz visível e histórico). É opor-se à encarnação [antiencarnação, por assim dizer]. Os homens têm permissão para olhar Jesus na cruz na vida real e adorá-Lo, mas não têm permissão (segundo Calvino nos fez acreditar) para olhar para um crucifixo ou para uma pintura da crucificação e adorá-Lo através do auxílio visual ali fornecido.
Calvino:
Vamos considerar aqui se é conveniente que as igrejas possuam representações de qualquer tipo, seja de eventos ou de formas humanas. Em primeiro lugar, então, se atribuirmos algum peso à autoridade da Igreja antiga, lembremo-nos de que durante quinhentos anos, durante os quais a religião esteve numa condição mais próspera e uma doutrina mais pura floresceu, as igrejas cristãs estiveram completamente livres de representações visíveis… Consequentemente, a primeira admissão delas como ornamento nas igrejas ocorreu após a pureza do ministério ter se degenerado um pouco… desde a paixão terrível sob a qual labutou o mundo até os dias de hoje, até a extinção quase completa da piedade, sabemos muito bem por experiência própria que no momento em que as imagens surgem nas igrejas, a idolatria levantou sua bandeira; porque a loucura dos homens não pode moderar-se, mas logo caem na adoração supersticiosa. Mesmo que o perigo fosse menos iminente, ainda assim, quando considero a finalidade adequada para a qual as igrejas são erigidas, parece-me mais impróprio a sua sacralidade do que poderia dizer, a admissão de quaisquer outras imagens além daqueles símbolos vivos que o Senhor consagrou por meio de sua própria palavra: quero dizer com isso, o Batismo e a Ceia do Senhor, juntamente com as outras cerimônias. Por estes símbolos nossos olhos deveriam estar mais firmemente fixados e mais vividamente impressionados, do que pela exigência de uma ajuda vinda de quaisquer imagens que a inteligência do homem possa inventar. (I, 11:13; grifo acrescentado)
Divagar de forma demasiada profunda em questões históricas não é apropriado num livro sobre teologia bíblica, mas o que dificilmente pode ser ignorado é que sua informação é extremamente falsa como uma questão de registo histórico; e ela é exatamente o oposto da verdade. A teologia das imagens teve seu desenvolvimento na Igreja, tal como todas as outras doutrinas. Mas não demorou nem “quinhentos anos” para isso. Tampouco as imagens em si demoraram a serem vistas nos círculos cristãos.
A Enciclopédia Católica (Nova York: Robert Appleton Company, 1910), observou em seu artigo “Veneração de Imagens” (escrito por Adrian Fortescue) o seguinte:
Que os cristãos desde o início adornaram as suas catacumbas com pinturas de Cristo, dos santos, de cenas da Bíblia e de grupos alegóricos é demasiado óbvio e demasiado conhecido para que seja necessário insistir nesse fato. As catacumbas são o berço de toda a arte cristã. Desde a sua descoberta no século XVI — em 31 de Maio de 1578, um acidente revelou parte da catacumba da Via Salaria — e pela investigação do seu conteúdo que tem prosseguido de forma constante desde então, somos capazes de reconstruir uma ideia exata das pinturas que as adornavam. Que os primeiros cristãos tivessem qualquer tipo de preconceito contra imagens, quadros ou estátuas é um mito (defendido entre outros por Erasmo) que foi abundantemente dissipado por todos os estudantes de arqueologia cristã. A ideia de que eles deviam ter temido o perigo da idolatria entre os seus novos convertidos é refutada da maneira mais simples pelas imagens, até mesmo pelas estátuas, que permanecem desde os primeiros séculos... Eles aceitaram a arte do seu tempo e usaram-na, tão bem como uma comunidade pobre e perseguida poderia, para expressar as suas ideias religiosas. Cemitérios pagãos romanos e catacumbas judaicas já mostravam o caminho; Os cristãos seguiram estes exemplos com modificações naturais. Desde a segunda metade do século I até à época de Constantino enterravam os seus mortos e celebravam os seus ritos nestas câmaras subterrâneas... Os sarcófagos cristãos eram ornamentados com desenhos indiferentes ou simbólicos — palmeiras, pavões, vinhas, com o monograma chi-rho (muito antes de Constantino), com baixos-relevos de Cristo como o Bom Pastor, ou sentados entre figuras de santos, e às vezes, como no famoso de Julius Bassus com cenas elaboradas do Novo Testamento. E as catacumbas estavam cobertas de pinturas.
[…] Certas cenas do Antigo Testamento que têm uma aplicação evidente à Sua vida e à Igreja repetem-se constantemente: Daniel na cova dos leões, Noé e a sua arca, Sansão transportando as Portas de Gaza, imagens de Jonas, de Moisés golpeando a rocha. Cenas do Novo Testamento também são muito comuns, a Natividade e a chegada dos Reis Magos, o batismo de Nosso Senhor, o milagre dos pães e dos peixes, a festa de casamento em Caná, Lázaro e Cristo ensinando os Apóstolos. Há também figuras puramente típicas, a mulher rezando com as mãos erguidas representando a Igreja, os cervos bebendo de uma fonte que brota de um monograma chi-Rho e as ovelhas. E há especialmente imagens de Cristo como o Bom Pastor, como legislador, como uma criança nos braços de Sua mãe, imagens de Sua cabeça sozinha num círculo, de Nossa Senhora sozinha, de São Pedro e São Paulo – imagens que não são cenas de acontecimentos históricos, mas, tal como as estátuas nas nossas igrejas modernas, apenas memoriais de Cristo e dos Seus santos. Nas catacumbas há pouco que possa ser descrito como escultura; existem poucas estátuas por uma razão muito simples. As estátuas são muito mais difíceis de fazer e custam muito mais do que pinturas murais. Mas não havia nenhum princípio contra elas. Eusébio descreve estátuas muito antigas em Cesareia de Filipe representando Cristo e a mulher que Ele curou ali (História da Igreja VII.18; Mateus 9:20-2). Os primeiros sarcófagos tinham baixos-relevos. Assim que a Igreja saiu das catacumbas, enriqueceu, não tinha mais medo de perseguições, as mesmas pessoas que pintaram as suas cavernas começaram a fazer estátuas dos mesmos temas. A famosa estátua do Bom Pastor no Museu de Latrão foi feita já no início do século III, as estátuas de Hipólito e de São Pedro datam do final do mesmo século. O princípio era bastante simples. Os primeiros cristãos estavam acostumados a ver estátuas de imperadores, de deuses e heróis pagãos, bem como pinturas murais pagãs. Portanto, eles fizeram pinturas de sua religião e, assim que puderam, estátuas de seu Senhor e de seus heróis, sem o mais remoto medo ou suspeita de idolatria.
[…]
A ideia de que a Igreja dos primeiros séculos tinha algum preconceito contra imagens e estátuas é a ficção mais impossível. Depois de Constantino (306-37), houve, é claro, um enorme desenvolvimento de todo tipo. Em vez de escavar catacumbas, os cristãos começaram a construir basílicas esplêndidas. Eles as adornavam com mosaicos, esculturas e estátuas caros. Mas não havia nenhum novo princípio. Os mosaicos representavam de forma mais artística e rica os motivos pintados nas paredes das antigas grutas, as estátuas maiores dão continuidade à tradição iniciada pelos sarcófagos esculpidos e pelos pequenos ornamentos de chumbo e vidro. Desde aquela época até a perseguição iconoclasta, imagens sagradas estão em posse de todo o mundo cristão. Santo Ambrósio (falecido em 397) descreve em uma carta como São Paulo lhe apareceu uma noite, e ele o reconheceu pela semelhança com suas imagens (Ep. ii, em PL, XVII, 821). Santo Agostinho (falecido em 430) refere-se várias vezes a imagens de nosso Senhor e dos santos nas igrejas (por exemplo, “De cons. Evang.”, x in PL, XXXIV, 1049; Resposta a Faustus XXII.73); . . . São Jerônimo (falecido em 420) também escreve sobre imagens dos Apóstolos como ornamentos bem conhecidos de igrejas (In Ionam, iv). São Paulino de Nola (falecido em 431) pagou por mosaicos representando cenas bíblicas e santos nas igrejas de sua cidade e depois escreveu um poema descrevendo-os (PL, LXI, 884). . . . No Oriente, São Basílio (falecido em 379), pregando sobre São Barlaão, exorta os pintores a homenagearem mais o santo fazendo imagens dele do que ele próprio pode fazer com palavras (“Ou. em S. Barlaam”, em P.G., XXXI). São Nilo, no século V, culpa um amigo por desejar decorar uma igreja com ornamentos profanos e exorta-o a substituí-los por cenas das Escrituras (Epist. IV, 56). São Cirilo de Alexandria (falecido em 444) foi um defensor tão grande dos ícones que seus oponentes o acusaram de idolatria. . . São Gregório Magno (falecido em 604) sempre foi um grande defensor das imagens sagradas. […]
Embora as representações da crucificação só ocorram mais tarde, a cruz, como símbolo do cristianismo, data desde o início. Justino Mártir (falecido em 165) a descreve de uma forma que já implica seu uso como símbolo (Diálogo com Trifão 91). Ele diz que a cruz está providencialmente representada em todo tipo de objeto natural: as velas de um navio, um arado, ferramentas, até mesmo o corpo humano (Apol. I, 55). De acordo com Tertuliano (falecido por volta de 240), os cristãos eram conhecidos como “adoradores da cruz” (Apol. xv). Tanto as cruzes simples quanto o monograma chi-Rho são ornamentos comuns nas catacumbas; combinados com ramos de palmeira, cordeiros e outros símbolos, formam uma simbologia manifesta de Cristo. Depois de Constantino, a cruz, esplêndida com ouro e pedras preciosas, foi erguida triunfantemente como o estandarte da Fé conquistadora. Uma pintura tardia da catacumba representa uma cruz ricamente adornada com joias e flores.
[…]
A conclusão então é que o princípio de adornar capelas e igrejas com imagens data dos primeiros tempos cristãos…
Se Calvino quiser ousar fazer um apelo à história da Igreja antiga, a fim de reforçar o seu argumento já radicalmente antibíblico contra as imagens no Cristianismo, ele está claramente em um terreno muito instável. Se quiser argumentar que tudo isso é, por natureza, idolatria, então seu surgimento se deu de forma imediata na história cristã, e nunca houve qualquer época “pura” (na sua opinião). Os cristãos eram quase universalmente idólatras (assim como Calvino via os católicos do seu tempo, que seguiam tais práticas na Igreja primitiva). Como tantas vezes, ele deve defender as suas novas doutrinas em oposição direta à Igreja primitiva e à Bíblia.
Tradução de Kertelen Ribeiro
Texto Original: “Graven Images”: Unbiblical Iconoclasm (Vs. John Calvin)
Todos os direitos reservados a DAVE ARMSTRONG
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