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  • Anderson Hopkins

A Igreja Católica, a Bíblia e a Bula Unigenitus

Por anos a Igreja Católica tem sido acusada de proibir a leitura da Bíblia para leigos. Mas, recentemente, o alvo principal tem sido a Bula Unigenitus Dei Filius, do então papa Clemente XI, lançada contra a heresia Jansenista e que continha condenações contra proposições que giravam em torno da leitura da Bíblia para leigos. Esses protestantes argumentam que devido a [suposta] infalibilidade desta bula, estas condenações vigoram até hoje e são irrevogáveis. Aqui analisaremos se estas objeções procedem e uma breve exposição da atitude católica sobre as Bíblias em língua vernácula.



Sobre a autoridade da Bula


Antes de entrarmos na discussão sobre o seu grau de autoridade, é necessário primeiro entender o contexto histórico em que ela foi lançada e a controvérsia em torno da escritura, uma vez que a Bíblia não é o assunto principal de seu texto. A Unigenitus surgiu como uma condenação ao livro de Pasquier Quesnel, teólogo francês que replicou os erros do jansenismo, ela foi elaborada por uma congregação de bispos a mando do Papa Clemente XI, condenando 101 proposições encontradas na obra[1], dentre elas questões sobre a leitura e a censura da Bíblia.


Sua grande autoridade é evidente, ela foi reafirmada pelo papa Clemente e por papas posteriores[2]. Mas destas condenações, alguns protestantes enxergam um julgamento infalível e eterno da Igreja contra o estudo e leitura bíblica por parte dos leigos. Sendo assim, é extremamente necessário esclarecer está questão, uma vez que, se for verdadeira, representa uma grande contradição no ensino Católico.


Em primeiro lugar, é evidente que existem graus de condenação e de repreensão na bula, uma vez que seu texto não especifica quais proposições são heréticas e quais meramente “favorecem a heresia”:


Nós declaramos, condenamos e rejeitamos…as proposições antes insertas, respectivamente como falsas, fraudulentas, malsoantes, ofensivas aos ouvidos piedosos, escandalosas, perniciosas, temerárias, ofensivas para a Igreja e para a sua atuação, ultrajosas não só para a Igreja mas também para com os poderes seculares, sediciosas, ímpias, blasfemas, suspeitas de heresia e com sabor de heresia, e ainda aptas a favorecer os hereges, as heresias e também o cisma; errôneas, próximas à heresia, repetidamente condenadas e, finalmente, heréticas, renovando de modo manifesto as diversas heresias e especialmente aquelas que estão contidas nas famosas proposições de Jansênio, entendidas no sentido mesmo em que foram condenadas.

Ora, algo “suspeito de heresia” não é o mesmo que herético, como dito por Gayer:


“Apesar das sensatas sugestões de Fénelon, as 101 propostas não foram condenadas individualmente, mas as diferentes notas teológicas foram dadas no globo, todas juntas. Isto pode aparecer como uma decisão estranha: ‘O que diremos de um juiz que condenaria cem diferentes culpados a serem respectivamente queimados, esquartejados, empalados, flagelados, presos e condenados às galeras? O oficial de justiça que teria que lidar com tal sentença ficaria bem perdido’. No entanto, esta atitude deve ser entendida como um simples desejo de manter a condenação a um nível geral, como era usual para os documentos romanos.”[3]

Neste fato reside a grande questão sobre sua autoridade. Ao longo da história Igreja, papas utilizaram condenações gerais a várias proposições de seus opositores, um exemplo ainda anterior a Unigenitus vem do papa Leão X, em sua bula Exsurge Domine, que condenou parte das 95 teses de Lutero. Sobre documentos deste caráter, o teólogo Católico Francis Sullivan explica:


“Das doze definições papais listadas por Billot e Dublanchy [incluem a Unigenitus], sete envolvem condenações papais de várias proposições errôneas. Destas, Schatz retém apenas duas: a condenação de cinco propostas de Jansen por Inocêncio X em Cum Occasione; e a condenação de sete propostas Jansenistas do Sínodo de Pistoia por Pio VI em Auctorem fidei. Em ambos os documentos, as propostas Jansenistas foram explicitamente condenadas como heréticas[…]Por outro lado, os outros cinco documentos consistem em uma lista de proposições errôneas, seguida de uma censura “global”, que não especifica qual censura está ligada a qual proposição. Em alguns casos, esta censura global inclui a mais severa, “herética”, mas não diz quais merecem esta condenação. Concordo com Schatz que como esta forma de censura não condena explicitamente nenhuma proposição em particular como heréticas[…] Portanto, tais documentos devem ser vistos como exemplos do exercício ordinário, não definitivo, do magistério papal.” [4]

A opinião de Sullivan parece ser compartilhada por outros teólogos, a saber: Adolphe Tanquerey, Brian W. Harrison, Richard Gaillardetz, Cardeal Dulles e Lawrence Jerome King e mais notavelmente em São John Henry Newman[5]. No entanto, há uma outra posição quanto a estes documentos defendida por teólogos como Scheeben, Billot, Journet, Franzelin e Jhon Joy e mais notavelmente em Santo Afonso de Ligório[6], eles defendem que embora censuras como as que aparecem na Unigenitus possam não envolver um julgamento definitivo sobre a falsidade da doutrina, há um julgamento infalível e definitivo pelo menos quanto à sua qualidade censurável, ou seja, uma proposição condenada como “ofensiva para ouvidos piedosos” são condenadas infalivelmente, não necessariamente como falsas, mas precisamente como ofensiva para ouvidos piedosos. Falando sobre as censuras eclesiásticas, Scheeben nos diz:


“[…]A condenação de muitas proposições globalmente nos obriga a assumir que cada proposição merece pelo menos uma das censuras mencionadas e que cada censura se aplica a pelo menos uma proposição[…] A verdade formal da censura como tal é, além disso, em certas circunstâncias, não relacionada essencialmente com a irrevogabilidade da censura. De fato, quando a censura se aplica apenas à expressão ambígua e duvidosa de uma proposição, ou se aplica a uma proposição que em si mesma não contém nenhuma verdade religiosa, mas meramente põe em perigo uma doutrina católica através de circunstâncias externas, então a intenção do juiz vai para a proposição apenas como ela se apresenta no momento determinado, e seu julgamento pode, neste sentido, ser totalmente verdadeiro, mesmo que a proposição em outro momento sob outras circunstâncias não merecesse mais a censura e esta última, consequentemente, perderia seu objeto.”[7]

Scheeben, assim como Santo Afonso de Ligório, baseia-se na declaração do Concílio regional de Embrun, que foi aprovado pelo papa Bento XIII, onde declara-se que a bula representa um julgamentodogmático, definitivo e irrevogável da Igreja Universal”[8] para defender sua infalibilidade.



Santo Afonso nos oferece um excelente esclarecimento quanto a isso, respondendo à objeção das condenações “in globo”, onde diz:


“Mas se responde que, embora a definição seja in globo, sem aplicar a nota distinta merecida pelas proposições individualmente, a bula deixou ao estudo dos doutos a investigação de quais proposições deviam de fide considerar-se opostas à doutrina da Igreja. O que se deduz das palavras da mesma bula, onde se diz que muitas proposições de Quesnel foram muitas vezes condenadas e que renovavam várias heresias e, em especial, as condenadas em Jansenius[…] Ora, como é que, em se tratando de proposições heréticas e que renovam heresias já condenadas, pode dizer-se matéria de disciplina e não dogmática? […] Mas como é que pode ser regra de fé uma bula que não nos faz saber distintamente qual proposição é contrária à fé? […] Para responder diretamente à objeção, porém, responde-se que tal bula, embora não seja regra de fé para assegurar-nos sobre se esta ou aquela são heréticas, é, pelo menos, regra de fé para os doutos, que, entendendo haver entre as proposições algumas que são heréticas, podem muito bem, como notamos acima [referindo-se ao estudo empregado no por bispos franceses aos opositores das decisões de Embrun], investigar e distinguir quais delas se opõem verdadeiramente a dogmas de Fé. Pelo menos, como diz Tournely na página citada e seguintes, para que a bula Unigenitus possa ser dita regra de Fé basta que ela nos faça saber não haver nenhuma das 101 proposições de Quesnel condenadas que não mereça alguma das notas descritas na bula.”[9]

A Enciclopédia Católica parece concordar com Santo Afonso no que tange ao papel dos teólogos de discernir o grau de condenação:


“No caso de Wyclif, Hus, Lutero, Baio, Molinos, Quesnel, etc., toda uma série de propostas foi anexada a uma série inteira de censuras em geral (in globo). Este modo de censura geral não é ineficaz. A cada uma das proposições assim condenadas aplica-se uma, ou várias, ou todas as censuras empregadas — a tarefa de adequar cada censura a cada proposição sendo deixada para os teólogos. Novamente, algumas proposições são censuradas de acordo com seu óbvio teor e sem referência a seu contexto ou autor (prout iacent); enquanto outras, por exemplo, as de Baio, Jansen, etc. são estigmatizadas no sentido pretendido por seu autor (in sensu ab auctore intento).”[10]

Ainda que existam debates sobre a opinião de Santo Afonso [11], é válido notar quais foram as proposições vistas como heréticas por ele: Santo As proposições 2, 9 e 10, relacionadas a doutrina da graça; As proposições que coadunam com o sistema de Baio, resumidas na proposição 44 sobre o amor de Deus; E o sistema resumido na proposição 90, sobre o poder temporal e espiritual da Igreja. Não há menções às proposições sobre as sagradas escrituras. De fato, Santo Afonso abordou as questões que geraram mais controvérsia nas reações positivas e contrárias a bula Unigenitus na época de seu lançamento, onde os principais debates giraram em torno da teologia da graça e do poder temporal da Igreja [12].


Ainda que as posições tenham divergências quanto à infalibilidade, as duas concordam que a bula contém elementos de caráter mutável e não necessariamente irrevogável[13]. Isto é suficiente para nossa análise, portanto não entraremos no mérito sobre qual é a mais correta, deixamos este discernimento para o leitor[14]. Partiremos agora para a análise das proposições em discussão, veremos até onde elas abordam questões doutrinárias e morais.


Sobre as proposições


É crucial que se tenha em mente que a Quesnel repetiu certas doutrinas do Jansenismo, que foram condenadas “in sensu ab auctore intento” (no sentido pretendido pelo seu autor). Isto é importante porque uma proposição isolada pode ser ambígua, mas quando posta no contexto da opinião de quem a proclama, torna-se herética. O jansenismo colocava em xeque a estrutura hierárquica da Igreja bem como seu poder exclusivo de interpretar definitivamente uma passagem da Escritura, além disso, embora pareçam louváveis, as proposições que disputamos aparecem em um contexto da teologia da graça jansenista.


Daí se entende a razão para aparecerem entre as proposições condenadas na Unigenitus, elas não são necessariamente falsas ou ímpias, mas devido o contexto notadamente problemático, podem ganhar um caráter “capcioso, maldoso, ofensivo aos ouvidos piedosos, escandaloso, pernicioso”. Está razão torna-se ainda mais evidente na condenação a tradução do Novo Testamento feita por Quesnel, que “é em muitos aspectos semelhante à versão francesa anteriormente condenada de Mons”[15]. Analisaremos estas proposições em conjunto, devido a semelhança de suas declarações:


79. É útil e necessário em todo tempo, em todo lugar e a toda espécie de pessoa, estudar e conhecer o espírito, a piedade e os mistérios da Sagrada Escritura.


80. A leitura da Sagrada Escritura é para todos.


81. A santa obscuridade da palavra de Deus não é para os leigos um motivo para dispensar-se de sua leitura.


82. O dia do Senhor deve ser santificado pelos cristãos com leituras piedosas, sobretudo das Sagradas Escrituras. É condenável querer tirar o cristão desta leitura.


84. Afastar das mãos dos cristãos o Novo Testamento, ou então conservá-lo fechado, privando-os do modo de compreendê-lo, é fechar para eles a boca de Cristo.


Todas elas giram em torno do poder da Igreja de reter ou censurar a Escritura Sagrada, principalmente as proposições 79, 80 e 82. O grande problema da primeira gira em torno da palavra “necessário” e “estudar”: Devido sua natureza ambígua, ela poderia ser facilmente entendida em um sentido absoluto. De fato, parece ter sido esse o entendimento de alguns teólogos da época, como a comissão de teólogos organizada pelo rei Luís XIV no auge da controvérsia, essa comissão argumentou que a leitura não é absolutamente necessária, citando agostinho [16]:



A comissão dos bispos ainda argumenta em torno da utilidade da leitura da escritura, onde as proposições como a 80 e a 81 contradizem o santo cuidado da Igreja em salvaguardar a escritura de interpretações perniciosas e heréticas. Eles citam as restrições mais antigas feitas pela Igreja como o Concílio de Toulouse, que entendiam como temporárias e feitas para frear o avanço da heresia, e concluem apontando que este era o “espírito da constituição”[17]:




De fato, em determinadas circunstâncias, a leitura da Bíblia por pessoas mal instruídas podem acarretar em grandes erros, assim foi argumentado por Nicolas Piede, amigo de Quesnel e defensor de sua obra, em seu “Examen Pacifique De L’acceptation Et Du Fond De La Bulle unigenitus”, onde argumenta que a leitura da Bíblia deve ser feita com docilidade e com correto discernimento para escapar de interpretações errôneas[18]. Até mesmo a reforma luterana parece ter chegado a esta conclusão quando, em um momento de seu levante, restringiu o estudo das escrituras aos mais doutos, como aponta Alister Mcgrath:


“Por exemplo, os regulamentos da escola do ducado de Württemberg estabeleceram que apenas os alunos mais capazes poderiam estudar o Novo Testamento em seus anos finais — e mesmo assim, apenas se o estudassem em grego ou latim. Em vez disso, o restante, presumivelmente a grande maioria, devia ler o Catecismo menor de Lutero. A interpretação direta da Escritura era, desse modo, reservada efetivamente a um grupo pequeno e privilegiado de pessoas. Falando de maneira simplificada, tudo se tornou uma questão de quem considerar como intérprete da Escritura: o papa, Lutero ou Calvino. O princípio da “clareza da Escritura” parece ter sido marginalizado silenciosamente, por causa do uso da Bíblia pelos elementos mais radicais da Reforma. Do mesmo modo, a ideia de que todos tem o direito e a habilidade de interpretar as Escritura se tornou um conceito apenas dos radicais.”[19]

Nota-se que as proposições sobre a Bíblia não foram vistas pelos teólogos como irreformáveis (já que não são necessariamente heréticas), isto pode ser verificado pela opinião de bispos franceses convocados por Luis XIV citados acima, mas também nas condenações individuais que o Papa Pio VI fez ao Sínodo de Pistoia, onde não se atrela as proposições de Quesnel sobre as escrituras como heresia:


A doutrina que diz que somente uma verdadeira incapacidade pode dispensar da leitura das sagradas Escrituras; e que acrescenta que além disso vai se alastrando a escuridão que, do esquecimento deste preceito, caiu sobre as verdades básicas da religião: falsa, temerária, perturbando a tranquilidade das almas e condenada em outra ocasião, em Quesnel[*2479–2485].”[20]

O sínodo de Pistoia faz uma declaração muito parecida com a proposição 85 de Quesnel: Proibir aos cristãos a leitura da Sagrada Escritura, especialmente dos Evangelhos, é proibir o uso da luz aos filhos da luz e fazer com que sofram uma espécie de excomunhão”,Isto sugere uma obrigação moral para todos lerem as escrituras.


Este contexto de negação da autoridade papal, negação do valor da Tradição e dos Concílios parecem ser as principais razões para a condenação da proposição 84, onde é dito que privar o Novo Testamento é “fechar para eles a boca de Cristo”. Ora, Cristo não fala apenas pelas Escrituras dentro da Eclesiologia Católica ou mesmo a Bíblia era o único meio de se ler/ouvir os ensinamentos de Cristo, é evidente a razão para a condenação desta proposição, ela não é totalmente incorreta, mas dado o contexto em que foi dita, representa uma limitação da verdade católica quanto às fontes da Revelação.


Isto evoca também a proposição 79, que de fato proclama uma verdade: é útil e “necessário conhecer o espírito, a piedade e os mistérios da Sagrada Escritura. Porém a Escritura não é o único meio para tal, aprendemos e conhecemos estas questões através da Tradição, da Missa etc. Estas condenações não representam uma desvalorização da Escritura pela Igreja da época, mas seu meio para salvaguardar as verdades católicas em sua plenitude do caráter ambíguo e pernicioso das proposições de Quesnel.


A posição católica sobre a leitura da Bíblia e suas traduções


Acreditamos que é válido e muito útil analisar qual foi a atitude católica perante a disseminação da Escritura antes e depois da bula Unigenitus. Para isso, é preciso ter em mente as decisões do Concílio de Trento sobre o assunto, estas decisões do Concílio de Trento provocaram reações diferentes nos reinos católicos[21], o que fez os Papas da época esclarecem suas definições através de decretos, entre eles:


  • De acordo com o Index de Paulo IV (1559), a leitura da Bíblia dependia da permissão da Inquisição Romana; mas pouco depois, de acordo com a Regula Quarta de Trento, no Index de Pio IV (1564), qualquer pessoa poderia receber permissão de seu Bispo ou o inquisidor, por recomendação de seu pastor ou confessor.

  • De acordo com o Index de Sixtus V, a Sé Apostólica deu permissão; mais uma vez, de acordo com o Index de Clemente VIII (1596), a aprovação da Inquisição Romana foi necessária.

  • Gradualmente, entretanto, foi dada permissão para cada tradução aprovada, e Bento XIV (1757) permitiu as versões aprovadas contendo notas dos Santos Padres.

  • Gradualmente, entretanto, foi dada permissão para cada tradução aprovada, e Bento XIV (1757) permitiu as versões aprovadas contendo notas dos Santos Padres.


A ação de Bento XIV fornece um outro ponto essencial ao assunto que disputamos, referindo-se a bula Unigenitus, o papa declarou: “A autoridade da constituição apostólica que começa com a palavra Unigenitus é certamente tão grande e reclama em toda parte a tão sincera veneração e obediência que ninguém pode retirar a submissão devida ou se opor a ela sem arriscar a perda da salvação eterna.”[22]. Ora, se a bula representou uma proibição universal e completa do estudo da Escritura, como explicar a posição de Bento XIV? Encontramos aqui uma outra forma de demonstrar a interpretação errônea de nossos opositores, nas palavras da historiadora Els Agten:


“[…]É importante notar que em 13 de junho de 1757, durante o papado de Benedito xiv (1740–1758), foi emitido um decreto que “permitia que as traduções da Bíblia fossem impressas e possuídas se fossem aprovadas por Roma ou fornecidas com notas católicas”. Em outras palavras, qualquer pessoa poderia comprar ou usar uma Bíblia na língua vernácula, desde que a versão tivesse sido aprovada pela autoridade.”[23]

Ainda sobre a Unigenitus, o livro The Cambridge History of the Bible aponta que as proposições sobre a Bíblia receberam uma atenção marginal dos teólogos, de fato, a principal controvérsia girou em torno da Teologia da Graça encontrada em Santo Agostinho que Quesnel alegava replicar em sua obra:


“[...] Elas [as proposições sobre as Escrituras] estão muito provavelmente entre os erros menos importantes da lista, sendo talvez mais devido ao desejo Jansenista de uma aproximação com os protestantes do que à sua coerência lógica com o sistema Jansenista. [...] A Igreja naquele período, embora ansiosa pela disseminação da educação, estava ciente de que a educação estava longe de ser universal e, tendo em vista a obscuridade das Escrituras “que os iletrados torcem para sua própria destruição”, ela sustentava que era mais seguro ter menos leitura das Escrituras do que mais heresia. Não havia desejo de impedir a disseminação da educação. Pode-se citar como prova do contrário a fundação de escolas pelos jesuítas ingleses em Bury St Edmunds, Lincoln, Londres (uma no Savoy e outra na Fenchurch Street), Newcastle, Welshpool e Edimburgo durante o breve reinado de James II. Durante esse mesmo reinado, parece que cópias da Bíblia de Rhemes-Douay, com os brasões reais na encadernação, foram colocadas nas capelas que os católicos ingleses se aventuraram a abrir, em lugares como Preston ou Holywell. Somente o texto simples era considerado prejudicial; versões que continham anotações ou extratos de interpretação patrística eram sempre permitidas. Na obra missionária era geralmente desejado familiarizar os recém convertidos com alguns dos livros mais simples da Bíblia e mantê-los afastados do Apocalipse e livros semelhantes até a sua maturidade. A prática judaica, que reservava o Cântico para os maiores de trinta anos, não estava muito longe disso, mesmo sem as razões teológicas do catolicismo. [...] Ao condenar o sínodo [de Pistoia], Pio VI anexou uma cláusula de qualificação a cada proposta condenada, e esta foi rotulada como falsa, imprudente e provocadora, mas não herética. Foi claramente visto como sendo muito mais uma questão de opinião do que de doutrina, e em assuntos de opinião como este a Igreja era habitualmente conservadora.”[24]

Mais recentemente, o Catecismo maior de São Pio X responde questões muito parecidas com as proposições dos quesnelianos:


  • É necessária a todos os cristãos a leitura da Bíblia? A leitura da Bíblia não é necessária a todos os cristãos, sendo, como são, instruídos pela Igreja; mas é contudo útil e recomendada a todos.

  • Pode-se ler qualquer tradução em língua vulgar da Bíblia? Podem ler-se as traduções em língua vulgar da Bíblia desde que sejam reconhecidas como fiéis pela Igreja Católica, e venham acompanhadas de explicações ou notas aprovadas pela mesma Igreja.[25]


Uma vez que não é nossa intenção realizar uma extensa exposição sobre a disseminação da Bíblia ao longo da história da Igreja Católica, acreditamos que esta exposição é suficiente para dar cabo da objeção protestante. Vimos mais uma vez que as antigas acusações protestantes não se sustentam após um escrutínio histórico e teológico, esperamos que ela seja suficiente para, no mínimo, frear esta oposição e lançar luz à nuvem de desinformação espalhada por esses polemistas.


REFERÊNCIAS


Clemente XI, Unigenitus Dei Filius. 1713. Disponível em: https://www.papalencyclicals.net/clem11/c11unige.htm.


Gres-Gayer, J. M. (1988). The Unigenitus of Clement XI: A Fresh Look at the Issues. Theological Studies, 49(2), 259–282. https://doi.org/10.1177/004056398804900202


SULLIVAN, Francis A. Creative fidelity: Weighing and interpreting documents of the Magisterium. Wipf and Stock Publishers, 2003. Disponível em: https://archive.org/details/creativefidelity0000sull


KING, Lawrence Jerome. The Authoritative Weight of Non-Definitive Magisterial Teaching. 2016. Tese de Doutorado. Catholic University of America. Disponível em: https://cuislandora.wrlc.org/islandora/object/cuislandora%3A40891/datastream/PDF/view


SCHEEBEN, Matthias Joseph. Handbook of Catholic Dogmatics 1.1. Emmaus Academic, 2019.


DE LIGÓRIO, Afonso. História das heresias e suas refutações. Ecclesiae, 2020.


New Advent. Theologica Censures. Disponível em: https://www.newadvent.org/cathen/03532a.htm. Acesso em: 18/03/2023


Instruction pastorale de nos seigneurs les cardinaux, archevêques et evêque De l’Assemblée de 1714. pour l’acceptation de la constitution unigenitus

Examen pacifique de l’acceptation et du fond de la Bulle Unigenitus. Ouvrage posthume. De M. Petitpied, docteur de la maison et societe de Sorbonne. Tome premier troisieme.


MCGRATH, Alister. O pensamento da reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014.


DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. Edicoes Loyola, 2007.


AGTEN, Els. The Catholic Church and the Dutch Bible: From the Council of Trent to the Jansenist Controversy (1564–1733). Brill, 2020.


Greenslade, S. (Ed.). (1963). The Cambridge History of the Bible (The Cambridge History of the Bible. Cambridge: Cambridge University Press. doi:10.1017/CHOL9780521042543


SALAVERRI, Joachim. NICOLAU, Michaele. On the Church of Christ, on Holy Scripture. Keep the Faith, 2015.


NOTAS


[1] Nota indisponível devido atualização sendo contemplada nas informações subsequentes do texto.


[2] A saber: Clemente XI na Bula “Pastoralis Officii” (28 de agosto de 1718) contra os Apelantes, na qual ele declara que certos católicos “que não aceitaram a Bula Unigenitus estavam claramente fora do seio da Igreja Romana”; por Inocêncio XIII em um decreto publicado em 8 janeiro de 1722; por Bento XIII e o Sínodo Romano em 1725; por Bento XIV na encíclica “Ex omnibus Christiani orbis regionibus” em 16 de outubro de 1756; foi aceita pelo clero galicano em assembléias em 1723, 1726, 1730, pelos concílios de Avignon 1725 e Ebred, 1727, e por todo o mundo católico.


[3] The Unigenitus of Clement XI: A Fresh Look at the Issues, pág 269.


[4] Creative fidelity: Weighing and interpreting documents of the Magisterium, p. 89.


[5] As posições desses teólogos são mais facilmente encontradas na dissertação “The Authoritative Weight of Non-Definitive Magisterial Teaching”, de Jerome King. A opinião de Brian Harrison encontra-se em sua obra “Torture and Corporal Punishment as a Problem in Catholic Theology, Part II: The Witness of Tradition and Magisterium”, ao qual reproduzimos:


“A condenação de um papa de uma proposta que pode — pelo que ele nos disse — não ser pior do que “escandalosa”, “ofensiva aos ouvidos piedosos”, ou “sedutora de mentes simples”, certamente não pode ser qualificada como uma definição ex cathedra. Para todas essas três censuras menores, é claro que o tipo de julgamento que pode vir a ser reformável; enquanto as definições infalíveis, é claro, são, por sua própria natureza, irreformáveis. (Assumindo que não seja certamente falsa, uma determinada proposta que, no entanto, é suscetível de “escandalizar”, “ofender” ou “seduzir” os fiéis sob certas circunstâncias culturais/históricas pode não ser necessariamente tão nociva sob circunstâncias diferentes).”


[6] A posição de Billot e Journet pode ser mais facilmente encontrada na dissertação de King citada a cima. A opinião de Jhon Joy pode ser lida aqui: https://onepeterfive.com/disputed-questions-on-papal-infallibility-part-5/#_ftnref33.


[7] Handbook of Catholic Dogmatics 1.1, §35. Dogmatic judgments in the narrower sense, or dogmatic censures of teachings, propositions, and book. p. 373.


[8] Ibidem. Pode ser lido em Latim aqui.


[9] História das heresias e suas refutações, p. 457.



[11] O teólogo Jerome King levanta a questão sobre disputas entre os teólogos: Se não existir consenso entre os doutos sobre o caráter herético de determinada proposição, é impossível discernir o que é infalível, portanto o problema ainda irá persistir.


[12] História das heresias e suas refutações, p. 458–459. Sobre as disputas sobre a teologia da graça e o poder temporal da Igreja, ver “The Unigenitus of Clement XI: A Fresh Look at the Issues”.


[13] Jhon Joy levanta uma outra posição defendida por Kleutgen, onde, nas palavras de Joy: “Outros sustentam que essas censuras envolvem um julgamento infalível da falsidade da doutrina, uma vez que uma doutrina verdadeira não poderia ser tão absolutamente censurável.” Mas logo a destarca por “minimizar as qualidades particulares das censuras empregadas.”. No entanto, Kleutgen faz uma distinção entre doutrinas e opiniões teológicas que podem ser verdadeiras, mas quando ditas por um herético ou em um contexto em que uma heresia pode ser favorecida, a Igreja emite julgamentos em vista das circunstâncias. Sendo assim, seu pensamento não difere grandemente ao de Scheeben e outros, portanto decidimos não abordá-lo aqui. A opinião de Kleutgen pode ser lida em inglês aqui: https://www.academia.edu/78270675/Josef_Kleutgen_On_the_Rule_of_Faith_His_theory_of_Ordinary_Magisterium_from_the_1st_edition_of_Theologie_der_Vorzeit



[14] Nós acreditamos que a posição de Scheeben está mais de acordo não só com a linguagem da época, mas também com os pronunciamentos dos Papas posteriores.


[15] New Advent, Unigenitus: https://www.newadvent.org/cathen/15128a.htm


[16] Instruction pastorale de nos seigneurs les cardinaux, archevêques et evêque De l’Assemblée de 1714. pour l’acceptation de la constitution unigenitus, p. 39.


[17] Ibidem, p. 46–47



[19] O Pensamento da Reforma, p. 135–136


[20] Denzinger, p. 587


[21] Isto seria resolvido mais tarde com as declarações mais claras do Concílio quanto às traduções da Escritura. Recomendamos a excelente análise de Dave Armstrong que pode ser lida aqui: https://www.patheos.com/blogs/davearmstrong/2021/05/council-of-trent-anti-bible-or-anti-bad-bible-translations.html.



[23] The Catholic Church and the Dutch Bible, p. 5.


[24] Jansenism and the Bible, p. 222–223.


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