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  • Anderson Hopkins

A Dormição e Assunção de Maria possuem origem gnóstica?


O Liber Requiei Mariae ou Livro do Repouso de Maria é o primeiro documento que registra a crença na Dormição e Assunção de Maria, ainda que seja comumente datado entre meados do III século, alguns defendem que suas tradições podem remontar ao segundo século. A característica peculiar e polêmica do texto são os elementos altamente heterodoxos e desvios extremos das noções comuns da época em que foi produzido (exemplo, a narrativa conta que São José duvidou da gravidez miraculosa de Maria e chega a se perguntar se não a estuprou quando estava bêbado), características que Shoemaker (acadêmico especialista no assunto) definiu como gnósticas em seu livro de 2003. No entanto, como o próprio Shoemaker reconhece, é impossível definir a causalidade que uniu esta doutrina e esse grupo de cristãos:


“A indicação das primeiras narrativas é que elas estiveram em contato com algum tipo de cristianismo gnóstico no início de seu desenvolvimento. No entanto, não é de todo certo que as tradições tenham se originado em tal ambiente: pode ser que elas simplesmente tenham passado por esse contexto em algum momento de sua pré-história, agora desconhecida.”[1]

Esse era o parecer de Shoemaker em 2003, mas os estudos da academia neste problema não iriam se estagnar nessa conclusão. O historiador italiano Enrico Norelli, professor na universidade de Genebra e especialista em literatura apócrifa, critica a análise de Shoemaker. Ele aponta que definir tal grupo como “gnósticos” diz menos sobre o grupo e mais sobre a opinião do historiador:


“Um ponto a favor da proposta de Shoemaker é que ela tenta dar conta da presença evidente de numerosos traços já marginais, para não dizer heterodoxos, no momento em que surgem os textos mais antigos à nossa disposição. Contudo, antes de mais nada, permanece o fato de que, se há certamente valorizações de Maria nos textos gnósticos do século II, que eu saiba, elas estão todas relacionadas com o nascimento de Jesus e não com o fim da vida da Virgem: entre os séculos II e III, eles são, na verdade, teólogos mais cristológicos do que mariológicos. Além disso, dos três elementos destacados por Shoemaker, dois, nomeadamente a insistência no conhecimento esotérico e na cristologia angélica, não são exclusivos do gnosticismo, como Shoemaker corretamente reconhece, e portanto não podem ser usados ​​como argumentos. Quanto ao terceiro, a atribuição da criação do mundo material a um deus diferente da divindade suprema, é certamente típico dos grupos que chamamos de gnósticos (assim como dos marcionitas), mas a sua presença nos apócrifos da Dormição não parecem tão evidentes para mim. Shoemaker baseia-se numa única passagem muito difícil, a do Liber requiei 17, que gostaria agora de examinar novamente…” [2]

Norelli prossegue com uma análise abrangente sobre a interpretação da passagem, ressaltando, mais uma vez, que tudo dependerá das inclinações teóricas do pesquisador para classificá-la como algo “gnóstico”. As pontuações de Norelli foram tão incisivas que mudaram a opinião do próprio Shoemaker:


“Em algumas publicações anteriores, argumentei, com base nessas e em outras passagens do Livro do Repouso de Maria, que esse escrito traz evidências de contato com o cristianismo gnóstico e, portanto, deve ser interpretado especialmente no contexto desse movimento cristão primitivo. Em publicações mais recentes, no entanto, comecei a me afastar dessa alegação, em parte porque a categoria de cristianismo gnóstico tornou-se tão problemática nos estudos contemporâneos sobre o cristianismo primitivo que seu uso nem sempre é muito útil. Além disso, também estou cada vez mais convencido de que talvez seja melhor não tentar prender esse texto a um tipo específico de cristianismo primitivo ou a outro, mas, em vez disso, permitir que sua mistura de ideias genuinamente peculiar se sustente por si só. O Livro do Repouso de Maria parece refletir as crenças de um grupo cristão primitivo quase único que acreditava na salvação por meio do conhecimento esotérico e parece ter adotado um mito da criação com algumas semelhanças impressionantes com o mito gnóstico. E nesse texto, Maria, a mãe de Jesus, é aquela a quem são confiados os mistérios ocultos que salvarão a humanidade - ou pelo menos uma parte dela. Esse é um retrato de Maria que certamente lembra alguns dos textos examinados no capítulo anterior.” [3]

Além disso, vale notar que, dentre as características pretensamente gnósticas do texto, não encontramos aquela desvalorização do corpo e da matéria. Nesse sentido, como apontado pelo o doutor Daley, tradutor do livro “On the Dormition of Mary: Early Patristic Homilies”, em uma entrevista com William Albrecht, a Dormição e Assunção são crenças anti-gnósticas[4]. Também é preciso ressaltar a presença de elementos ortodoxos no texto: Ele ressalta a autoridade apostólica de Paulo. Por que isso é importante? Em primeiro lugar, é um argumento para localizá-lo no século II, onde o debate sobre a autoridade de Paulo ainda fervilhava em alguns grupos, e, em segundo lugar, para demonstrar que o documento foi produzido em um caldeirão de ideias que misturava aspectos ortodoxos e heterodoxos do Cristianismo.


ADENDO:


Pelo fato do Liber Requiei Mariae ressaltar a poderosa intercessão de Maria pelos condenados, alguns argumentam que esta seria a verdadeira origem da ideia. Para responder isso, deixo o parecer de Norelli:


“A ideia da intercessão de Maria deve ter pré-existido este tipo de história, aliás foi ela quem a tornou possível, no sentido de que queríamos estender esta intercessão aos falecidos. Na verdade, aparece no Livro do Repouso, tanto mais enfatizado porque entra em vigor após o fracasso dos esforços anteriores dos anjos na mesma direção.”[5]

Informação extra observada pelo Nicolas Lima:


"Acho que seria valioso que o iminente artigo pontue um fator que foi colocado em última instância por Shoemaker: o Esoterismo per si não é um elemento discrepante para com o Depósito da Fé, ainda mais quando nos conscientizamos que a Igreja durante o seu limiar primitivo necessitava ter um ciclo iniciático e doutrinas que substanciam a Mistagogia doutrinal dos Padres Apostólicos. São Justino Mártir, na Primeira Apologética (150 d.C), concebe o Batismo como um rito iniciático sob o qual o mistério da Salvação reluziria nos Catecúmenos através da Koinomia Mística. Se fomos reutilizar à risca os critérios que os ceticistas tanto dissecam para repudiar o valor doutrinário do Requiei Mariae, não sobrará nem mesmo as Didascalias. No fundo, isso é implicação ideológica e enviesada."

REFERÊNCIAS


[1] SHOEMAKER. The Prehistory and Origins of the Dormition and Assumption Traditions, em: Ancient Traditions of the Virgin Mary's Dormition and Assumption. Disponível em: https://academic.oup.com/book/27239/chapter/196842985


[2] NORELLI, Enrico. La letteratura apocrifa sul transito di Maria e il problema delle sue origini, em: Il Dogma dell'assunzione di Maria. Problemi attuali e tentativi di ricompensione. Atti del 12° Simposio Internazionale Mariologico (Roma, 6-9 ottobre 2009), p. 133. Disponível em: https://www.academia.edu/5261203/La_letteratura_apocrifa_sul_transito_di_Maria_e_il_problema_delle_sue_origini


[3] SHOEMAKER, Stephen J. Mary in Early Christian Faith and Devotion, 2016. p.114-115



[5] NORELLI, Enrico. La letteratura apocrifa sul transito di Maria e il problema delle sue origini, em: Il Dogma dell'assunzione di Maria. Problemi attuali e tentativi di ricompensione. Atti del 12° Simposio Internazionale Mariologico (Roma, 6-9 ottobre 2009), p. 160. Disponível em: https://www.academia.edu/5261203/La_letteratura_apocrifa_sul_transito_di_Maria_e_il_problema_delle_sue_origini

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