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  • Islas Porfírio Silva

O desenvolvimento de doutrina no pensamento de São Vicente de Lérins - Parte I

Introdução à Regra Cânone, suas características, e a possibilidade de uma visão "desenvolvimentista" na teologia do monge de Lérins.


Vicente de Lérins, um escritor eclesiástico formado no conhecimento dos dogmas da igreja, educado nas Sagradas Escrituras e a quem lhe é atribuída santidade, compôs um estudo logo após o Terceiro Concílio Ecumênico (431) sob o pseudônimo de Peregrinus para combater os ideais dos hereges de forma suficientemente clara e precisa. Esta obra, intitulada Commonitorium, visava distinguir a fé autêntica das inovações heréticas adotando um critério tríplice [I] que transformou seus escritos em um precioso monumento dogmático da literatura patrística.


Este critério gira em torno de uma regra sobre como encontrar uma medida da verdade que seja inquestionável e infalível sempre associado à ideia de universalidade, unidade e antiguidade. Vicente de Lérins fez questão de deixar claro que a obrigação de todo cristão é guardar a fé. [II] Sendo assim, ele entendeu que o perigo da corrupção doutrinária que historicamente sempre rondou a Igreja necessitava de uma ação que diferenciava a heresia da ortodoxia para preservar e proteger o que foi entregue de uma vez por todas através do depósito de fé. Este é o papel da chamada “Regra de Vicente de Lérins” ou “Cânone Vicentino” descrita no Commonitorium:


Além disso, na própria Igreja Católica, todos os cuidados possíveis devem ser tomados para que mantenhamos aquela fé que foi crida em todos os lugares, sempre e por todos.(In ipsa item Catholica Ecclesia magnopere curandum est ut id teneamus quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est.)[Commonitorium, 2,6] [III]

A partir da aplicação deste aforismo, Vicente entendeu que as interpretações e sentidos expostos pelos hereges seriam, em teoria, contidos ao distinguir a verdade cristã do erro e acreditando na fé sustentada em todos os lugares, sempre e por todos. E, de fato, as palavras ​​do monge são citadas em muitas oportunidades devido a sua simplicidade e objetividade, embora elas também sejam descartadas pelo mesmo motivo. Este padrão estabelecido por Vicente acaba se tornando não aplicável a quase todos os ensinamentos cristãos — a exemplo da Santíssima Trindade [IV] — por ser incrivelmente estreito e perigosamente geral. Por gerar um resultado maior para dúvidas do que para soluções, é possível questionar quais são os reais limites no qual Vicente se referia ao propor esta regra.


A DIFICULDADE DA APLICAÇÃO


Em um sentido de inutilidade (i.e., dificuldade de se obter resultados satisfatórios quando aplicada de forma restrita) é possível dizer que a regra per si seja insuficiente pois consensos como o cânon do Novo Testamento não resistiriam a uma aplicação literal da regra de Lérins.


Nas palavras do monge-teólogo do século quinto, Vicente de Lérins, “sempre se acreditou, em todos os lugares, por todos.” O cânon vicentino, como é chamado, é notoriamente difícil de aplicar em todo o seu rigor a qualquer aspecto da fé: em todas as épocas da Igreja e, não excluindo a época dos apóstolos, houve diferenças e debates. [1]

Esta conclusão também é compartilhada por teólogos protestantes que reconhecem a regra utilizada de forma restritiva como incompleta e estática. Ou seja, mesmo em um ambiente onde a apostolicidade e o primitivismo são supostamente cobrados como garantia de validação de fé, este padrão é difícil de sustentar. De acordo com Carl Braaten, a aplicação literal do cânone de Vicente fere diretamente a dinâmica e a plenitude da verdade cristã:

“A declaração de Vicente de Lérins que a doutrina católica é aquela que se acredita “em todos os lugares, sempre e por todos” soa estranho do pluralismo doutrinário contemporâneo. Não há uma única doutrina sobre a qual isso possa ser dito agora. Além disso, isso negligencia a diferença entre as formas históricas provisórias e as formas escatológicas finais. A verdade nunca é estática, e a plenitude da verdade é algo que os cristãos só podem esperar de um futuro escatológico.” [2]

Partindo deste pressuposto, é lógico concluir que Vicente nunca teve a intenção de ser um defensor de uma Igreja doutrinariamente estática. Defender a regra em um sentido totalmente restritivo é defender que o cânon vicentino visava um passado perfeito, onde todos os cristãos criam desde o princípio nos mesmos ensinamentos sem nenhum tipo de controvérsia e em plena paridade. Evidências históricas e o conhecimento da existência passada de diversas heresias constatadas pelo próprio Vicente nos leva a crer que a aplicação restritiva mutila a mensagem que o Commonitorium nos traz. Então, para que esta regra não seja fonte de erro — ou até motivo para tratar Vicente como um autor ultrapassado e inútil — é preciso entender o seu pensamento através das suas próprias analogias e com algumas informações fornecidas pelo próprio na sequência do seu livro.


Por conclusão lógica, se existe uma regra então deve existir uma força aplicadora. Basicamente podemos considerar duas frentes para a aplicação correta da regra vicentina contra os hereges: a suficiência (material) das Sagradas Escrituras de forma primária e fundamental e, logo após, a Igreja através de sua Tradição e autoridade que extrai as informações sobre alguma doutrina e as dispõe da forma correta.

“Que se eu ou qualquer outra pessoa desejasse detectar as fraudes e evitar as armadilhas dos hereges à medida que se levantam, e continuar sãos e completos na fé universal, devemos, com a ajuda do Senhor, fortalecer nossa própria crença de duas maneiras; primeiro, pela autoridade da Lei Divina, e depois, pela Tradição da Igreja Católica. Mas aqui alguém talvez pergunte: Uma vez que o cânon da Escritura é completo e suficiente por si mesmo para tudo, e mais do que suficiente, que necessidade há de juntar a ele a autoridade da interpretação da Igreja? Por esta razão — porque, devido à profundidade da Sagrada Escritura , nem todos a aceitam no mesmo sentido, mas um entende suas palavras de uma maneira, outro de outra; de modo que parece ser capaz de tantas interpretações quanto há intérpretes. […] Portanto, é muito necessário, por conta de tão grandes complexidades de tais vários erros, que a regra para o correto entendimento dos profetas e apóstolos seja enquadrada de acordo com o padrão de interpretação eclesiástica e católica.” [2,4–5] (grifo nosso)

Dentre as duas frentes, a Sagrada Escritura se destaca indiscutivelmente como a principal autoridade doutrinária do monge. Mas, em um contexto onde a interpretação das Escrituras está em disputa, é preciso recorrer à Tradição e aos ensinamentos de legítimos representantes da Igreja. Vicente reconhece que as heresias já antigas e/ou difundidas com mais frequência podem ser combatidas através da autoridade dos concílios para garantir que a Revelação não seja distorcida e que as Escrituras sejam interpretadas sempre no mesmo sentido.

“Mas as heresias já amplamente difundidas e antigas não devem de modo algum ser tratadas assim, visto que, com o passar do tempo, há muito tiveram a oportunidade de corromper a verdade. E, portanto, quanto aos cismas ou heresias mais antigos, devemos refutá-los, se necessário, pela única autoridade das Escrituras, ou, pelo menos, evitá-los como já tendo sido condenados pela universalidade dos concílios do Sacerdócio Católico.” [28,71]

Vicente viu na Igreja uma salvaguarda para garantir que a doutrina cristã fosse preservada sob a luz da apostolicidade através das declarações dogmáticas de seus concílios que, por sua vez, representam universalidade, antiguidade e onipresença de uma doutrina. A Igreja não inova, ao invés disso, ela trabalha para manter a imutável ‘regula fidei’ fornecendo a instância concreta e legítima para a aplicação da regra vicentina. Através deste raciocínio, Vicente defendeu como exposição genuína da Revelação termos não bíblicos que dificilmente passariam pelo crivo da regra vicentina de forma restrita tal como “homoousios” (Nicéia) e “Theotokos” (Éfeso). A crença de Vicente em uma hierarquia interpretativa — onde a Igreja é o topo — é exposta com clareza na defesa da existência dos Concílios Ecumênicos.


Em outras palavras, Vicente defende a Igreja como a legítima representante que determina o que se acredita sempre, em todos os lugares e por todos, pois “permanecendo na unidade da comunhão e da fé, [os doutores] foram aceitos como mestres aprovados; e seja o que for que estes tenham sustentado, com uma mente e com um consentimento, isso deve ser considerado a doutrina verdadeira e católica da Igreja, sem qualquer dúvida ou escrúpulo.”(29,77). Assim explica Guarino:

“Primeiro e mais importante, o cânone não é apenas sobre o passado remoto. É verdade que Vicente nos encoraja a olhar para o consenso da antiguidade. Mas quando é precisamente a antiguidade? Se começa com a era apostólica, há um distinto ‘terminus ad quem’ [V]? Nenhum término desse tipo é invocado por Vicente. […] Vicente está insistindo que já existe uma maneira — sempre enraizada nas Escrituras como o fundamento inabalável — para garantir que o ensino apostólico continue imaculado. Para Lérins, os Concílios de Nicéia e Éfeso, as reuniões formais dos mestres reunidos em toda a Igreja, representam por si mesmos o julgamento consentido de uma antiguidade.” [3] (grifo nosso)

Sabendo então que na ótica de Vicente de Lérins a Igreja é a força que determina a correta interpretação das Escrituras e aplica com precisão a regra que ele próprio determinou, surge a principal questão levantada deste texto: como a imutabilidade e a integridade do depósito de fé pode ser conservado enquanto ao mesmo tempo se admite progresso?


A DISTINÇÃO ENTRE O VERDADEIRO E O CORRUPTO


O depósito da fé não mudou e nunca mudará, a verdade é imutável. Porém, com uma infinidade de heresias surgindo e criando problemas para a Igreja primitiva, Vicente se viu forçado a reconhecer uma continuidade que recebe progresso ao longo do tempo já que a aplicabilidade literal e isolada de sua regra cânone não era eficaz. Ele precisava entender com mais clareza o que distinguia as mudanças ilegítimas de doutrina (heresias) de mudanças legítimas a exemplo das introduzidas pelos concílios ecumênicos. Para expor com precisão esta distinção, Vicente classifica as mudanças em duas frentes:

“Mas alguém dirá, talvez: Não haverá, então, nenhum progresso na Igreja de Cristo? Certamente; todo o progresso possível. Pois quem há de ser, tão invejoso dos homens, tão cheio de ódio a Deus, que procuraria proibi-lo? No entanto, com a condição de que seja um progresso real (profectus), não alteração da fé (permutatio). Pois o progresso exige que o sujeito seja ampliado em si mesmo e, alteração, que seja transformado em outra coisa. A inteligência, então, o conhecimento, a sabedoria, tanto dos indivíduos quanto de todos, tanto de um homem quanto de toda a Igreja, deve, no decorrer das eras e séculos, aumentar e fazer muito e vigoroso progresso; mas ainda apenas em sua própria espécie; isto é, na mesma doutrina, no mesmo sentido e no mesmo significado.” [23,54] [4] (grifo nosso)

Esta distinção em duas hipóteses cria um leque de possibilidades e derruba os limites que classificam a regra cânone como estática e restritiva. O profectus pode ser classificado como um avanço legítimo de algo que já sabido como verdadeiro mas ainda não explicitado com toda a sua plenitude. É a base fundamental do desenvolvimento que preserva o depósito de fé e é guiado pela salvaguarda do Espírito Santo. O permutatio, diferente disto, se propõe a ser uma mudança ortodoxa com a diferença de que ele é uma distorção, um desvio do depósito e da fé original. Na conclusão de Vicente de Lérins, a Igreja, em sua plenitude e como guardiã, trabalha na admissão e reconhecimento do profectus enquanto ao mesmo tempo combate com firmeza a prática do permutatio para que assim a fidelidade com a apostolicidade seja preservada.


O progresso pode existir desde que a identidade e o princípio sejam cuidadosamente mantidos. O progresso, para que esteja dentro dos limites do profectus, deve preservar o mesmo ensino, o mesmo sentido, a mesma ideia. O conjunto de analogias que Vicente utiliza para explicar o reconhecimento de um progresso genuíno é biológico e prontamente sugere os processos do crescimento físico.

“O crescimento da religião deve ser análogo ao crescimento do corpo, que, embora no decorrer dos anos se desenvolva e atinja seu tamanho total, ainda permanece o mesmo. Há uma grande diferença entre a flor da juventude e a maturidade da idade; no entanto, aqueles que antes eram jovens ainda são os mesmos agora que envelheceram, de modo que, embora a estatura e a forma externa do indivíduo tenham mudado, sua natureza é uma e a mesma, sua pessoa é uma e a mesma. Os membros de uma criança são pequenos, os de um jovem são grandes, mas a criança e o jovem são a mesma coisa. Os homens quando adultos têm o mesmo número de juntas que tinham quando crianças; e se houver algum a quem a idade mais madura tenha dado à luz, estes já estavam presentes no embrião, de modo que nada de novo é produzido neles quando velho, que já não estivesse latente neles quando crianças. Isso, então, é a verdadeira e legítima regra de progresso …” [23,55]

O progresso verdadeiro deve ter uma relação com o depósito de fé tal qual uma árvore tem para com a semente. Para auxiliar no entendimento desta analogia, uma interessante e similar voltada para a Igreja como um todo escrita por J.R.R. Tolkien diz o seguinte:

A “minha igreja” não foi pretendida por Nosso Senhor para ser estática ou permanecer em perpétua infância, mas para ser um organismo vivo (semelhante a uma planta), que se desenvolve e muda o exterior pela interação de sua vida e história divinas legadas — as circunstâncias especiais do mundo no qual se encontra. Não há semelhança entre o “grão de mostarda” e a árvore adulta. Para aqueles que vivem nos dias do crescimento de seus galhos, a Árvore é a coisa, pois a história de uma coisa viva é parte de sua vida, e a história de uma coisa divina é sagrada. O sábio pode saber que ela começou com uma semente, mas é inútil tentar desenterrá-la, pois ela não mais existe, e a virtude e os poderes que a semente possuía residem agora na Árvore. [5] (grifo nosso)

Assim, em uma análise mais profunda da obra de Vicente de Lérins, é possível reconhecer a existência de um crescimento orgânico em paralelo à rejeição da Igreja para qualquer tipo de inovação. Este é o caminho raciocinativo que fez o monge admitir abertamente que o objetivo da Igreja sempre foi preservar o que sempre se acreditou, podendo ou não designar um artigo de fé pela característica de um novo nome — assim como em Éfeso ou Nicéia — ou modelar uma doutrina para que a sua plenitude fosse buscada. Este é, dentro da própria conclusão de Vicente, a verdadeira imagem de sua regra.

Mas a Igreja de Cristo, guardiã cuidadosa e vigilante das doutrinas depositadas a seu cargo, nunca muda nada nelas, nunca diminui, nunca acrescenta, não corta o necessário, não acrescenta o supérfluo, não perde o que é seu, não se apropria do que é alheio, mas enquanto lida fiel e judiciosamente com a doutrina antiga, mantém este único objetivo cuidadosamente em vista: se há algo que a antiguidade deixou sem forma e rudimentar, então pode modelá-lo e poli-lo, para consolidá-lo e fortalecê-lo, e se alguma já foi ratificada e definida, para mantê-la e guardá-la. Finalmente, que outro objetivo os Concílios sempre visaram em seus decretos, do que estabelecer que o que antes se acreditava na simplicidade? […] pelos decretos de seus Concílios — isso e nada mais — desde então relegou à posteridade por escrito o que ela havia recebido daqueles de outros tempos compreendendo uma grande quantidade de matéria em poucas palavras, e muitas vezes, para melhor compreensão, designando um antigo artigo de fé pela característica de um novo nome. [23,59] (grifo nosso)

TIMÓTEO, GUARDA O DEPÓSITO IMUTÁVEL


Dentro das características da teologia de Vicende de Lérins, é necessário entender inicialmente os objetos que fazem parte deste progresso tão claramente exposto no Commonitorium. O primeiro deles é o que detém a importante característica da imutabilidade: O depósito da fé ou Depositum Fidei. Para Vicente, a Igreja recebeu uma grande dádiva e é sua missão preservá-la. Dádiva esta que o monge justifica diversas vezes em sua obra utilizando estes versículos:

Timóteo, guarda o depósito, evita o palavreado vão e ímpio, e as contradições de uma falsa ciência, pois alguns professando-a se desviaram da fé. (1Tm 6,20–21) [VI]

Todo o conteúdo da carta de São Paulo é dirigida a um dos mais fiéis de seus discípulos ao lado de Tito, Timóteo, e é diretiva para organização e conduta da comunidade confiada a ele. E, é claro, para que a sã doutrina fosse preservada e a fé apostólica não fosse corrompida por mentiras e falsidades. O Depósito traz a ideia de preservação tanto para o conteúdo da fé quanto para a tradição e depositário desta fé tem a função de transmitir de forma intacta toda a doutrina cristã que lhe foi confiada. Quando falamos de fé a ser guardada, São Paulo diz:

Expondo estas coisas aos irmãos, serás bom transmissor de Cristo Jesus, nutrido com as palavras de fé e da boa doutrina que que tens seguido. Rejeita, porém, as fábulas ímpias, coisas de pessoas caducas. (1Tm 4,6–7)

E de tradição a ser guardada, diz:

Portanto, irmãos, ficai firmes; guardai as tradições que vos ensinamos oralmente e por escrito. Nosso Senhor Jesus Cristo e Deus, nosso Pai, que nos amou e nos deu a eterna consolação e a boa esperança pela graça, animem os vossos corações e vos confirmem em tudo o que fazeis e dizis em vista do bem. (2Ts 2,15–17)

Vicente conhecia bem o significado deste depósito e fez dele a base para a criação de sua regra. Ele entendia que o ato de transmitir o que lhe foi confiado é uma característica fundamental para toda a história futura da Igreja e não apenas uma orientação pessoal a Timóteo. Além disto, Vicente defendia a ideia de que toda e qualquer heresia partia de uma mente particular — pretensa gnose — sendo assim impossível estabelecer qualquer vínculo ao Depósito. A continuidade da fé precisa ser mantida para que o patrimônio da revelação seja preservado.

Sendo assim, existe alguém tão audacioso a ponto de pregar qualquer outra doutrina além daquela que a Igreja prega, ou tão inconstante a ponto de receber qualquer outra doutrina além daquela que recebeu da Igreja? […] Fique com o depósito. Qual é o depósito? Aquilo que foi confiado a você, não o que você mesmo inventou: não é uma questão de inteligência, mas de aprendizado; não de adoção privada, mas de tradição pública; um assunto trazido a você, não apresentado por você, no qual você é obrigado a não ser um autor, mas um guardião, não um professor, mas um discípulo , não um líder, mas um seguidor. Fique com o depósito. Preserve o talento da Fé Católica inviolada, não adulterada. Aquilo que foi confiado a você, deixe-o continuar em sua posse, deixe-o ser transmitido por você. Você recebeu ouro; dê ouro por sua vez. Não substitua uma coisa por outra. Não substitua impudentemente por chumbo ou latão. Dê ouro verdadeiro, não falsificado. (9,26 e 22,53)

ONDE ENCONTRAMOS ESTE DEPÓSITO?


Para que algo seja guardado e transmitido, antes ele precisa vir de algum lugar. Vicente de Lérins é muito enfático ao afirmar que encontramos este Depósito nas Sagradas Escrituras. Para ele, o cânon da Escritura é completo e suficiente por si mesmo para tudo, e mais do que suficiente, para provar a existência e o conteúdo deste depósito. O problema da heresia que foge dos limites do depósito passa a existir a partir do momento em que a Escritura tem a sua interpretação em disputa, como já foi explicado anteriormente. Vicente entendia que a interpretação poderia vir de qualquer lado, sendo ela correta ou não, já que isto era um subterfúgio para que heresias fossem justificadas teoricamente sob a autoridade das Sagradas Escrituras.

Mas alguém dirá: Que prova temos de que o Diabo costuma apelar para a Sagrada Escritura? Que ele leia os Evangelhos onde está escrito: Então o Diabo o levou (o Senhor, o Salvador) e o colocou sobre um pináculo do Templo, e disse-lhe: Se você é o Filho de Deus , lance-se abaixo, pois está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito, para que te guardem em todos os teus caminhos. […] E se alguém perguntar a um dos hereges que dá esse conselho, como você prova? Que fundamento você tem para dizer que eu deveria rejeitar a fé universal e antiga da Igreja Católica ? Ele tem a resposta pronta, pois está escrito; e imediatamente ele produz mil testemunhos, mil exemplos, mil autoridades da Lei, dos Salmos, dos apóstolos, dos Profetas, por meio dos quais, interpretados em um princípio novo e errado, a alma infeliz pode ser precipitada da altura da verdade católica ao mais baixo abismo da heresia. (26,68 e 69) (grifo nosso)

É muito óbvio que a Escritura por si mesma não se interpreta e, mesmo com a sua suficiência, ela necessita de uma autoridade que exerça essa função para que a mensagem seja transmitida. Vicente tinha esta consciência e, para que esta controvérsia fosse resolvida, ele defendia com rigor a suficiência material das Escrituras. Ou seja, toda a informação necessária para a preservação do patrimônio da revelação e para a formulação de práticas e doutrinas estão nas Escrituras mas somente podem ser devidamente interpretadas e esclarecidas sob a salvaguarda e autoridade da Igreja através de seu Magistério e Tradição. A Igreja é a responsável por trazer a interpretação correta diante de uma disputa, preservando assim o depósito no qual São Paulo orientou Timóteo a guardar.


Dissemos acima que sempre foi costume dos católicos, e ainda é, provar a verdadeira fé dessas duas maneiras: primeiro pela autoridade do Cânon Divino, e depois pela tradição da Igreja Católica. Não que o Cânon por si só não seja suficiente para todas as questões, mas visto que a maioria, interpretando as palavras divinas de acordo com sua própria persuasão, assume várias opiniões errôneas, portanto, é necessário que a interpretação da Escritura divina seja regida de acordo com o único padrão de crença da Igreja, especialmente naqueles artigos sobre os quais repousam os fundamentos de toda a doutrina católica. (29,76) (grifo nosso)

NOTAS


I — Tríplice porque possui três elementos indispensáveis para a aplicação do critério.


II — Vicente explica que o depósito é a revelação definitiva vinda de Cristo. Revelação esta que foi recebida, não inventada, no qual o cristão tem o dever de ser guardião (sic. Commonitorium 22,53). Para deixar esta ideia aparente, Vicente apela ao mandamento de São Paulo: “Ó Timóteo, guarda o bem que te foi confiado! Evita as conversas frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa ciência.” [‘O bem que te foi confiado’ expressa o depósito da fé e da tradição] I Timóteo, 6.


III — Todas as referências ao Commonitorium a partir deste trecho são por capítulo e tópico de acordo com a enumeração de ‘De Nicene and Post-Nicene Fathers,’ Second Series, Vol. 11. Editado por Philip Schaff e Henry Wace. (Buffalo, NY: Christian Literature Publishing Co., 1894.) Disponível em: http://www.newadvent.org/fathers/3506.htm


IV — Apesar da herança herdada de Nicéia feita sob a ótica das Escrituras para que a Santíssima Trindade fosse reconhecida, não se pode garantir a doutrina com base no consenso dos escritores mais primitivos como a Regra de Vicente aplicada de forma literal tenta supor. Isto já colocaria em contradição as evidências históricas com a característica de universalidade e consenso.


V — Expressão latina que significa o ponto que determina o fim de uma ação. Guarino utiliza o termo para levantar um questionamento sobre o ponto na história onde supostamente Vicente de Lérins definiu o término da apostolicidade.


VI — Todos os versículos utilizados são da Bíblia de Jerusalém.


REFERÊNCIAS


1 — NICHOLS, Aidan. The Shape of Catholic Theology, p.165.


2 — BRAATEN, Carl E. Principles of Lutheran Theology (Fortress Press, 1983), p.55.


3 — GUARINO, Thomas. Vincent of Lerins and the Development of Christian Doctrine (Baker Academic, 2013), 5


4 — Versão em latim disponível em: VINCENT LIRINENSIS (5th cent. A.D.), “Adversus profanas omnium novitates haereticorum commonitorium cum notis”. [http://www.thelatinlibrary.com/vicentius.html#2]


5 — TOLKIEN, J.R.R. Letter 306, to Michael Tolkien, October 11, 1968.

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